A
informação é um bem econômico poderoso na sociedade pós-industrial. O seu modo
de criação, manipulação e divulgação tem poder para ditar os rumos da economia
e da política e molda os comportamentos sociais em nível local e global.
Tamanha é sua centralidade, sob os aspectos tecnológico e econômico, que a
sociedade contemporânea é caracterizada como a “sociedade da informação”, ou
como prefere Manuel Castells, como “sociedade em rede”, porque constituída de
redes de produção, poder e experiência cuja expansão aos poucos absorve e
supera as formas sociais preexistentes (1999, v. III, p. 431-432).
Convivemos
com uma enormidade de informações, difundidas pelas mídias escrita, televisiva
e, sobretudo, eletrônica e essa quantidade massiva de informações, pode causar,
paradoxalmente, a desinformação e a ignorância gerais. Sendo assim, se de um
lado o acesso e o intercâmbio de informações são ferramentas úteis à
emancipação, tornar-se fonte de desinformação e de manipulação
A
“manipulação sibiliana” (Demo, 2000, p. 37) pode ser uma das características
imanentes à comunicação humana, em si ambivalente (idem, p. 39), porém,
chegou-se nessa era a um estágio tamanho de relativização dos fatos e da
verdade, que é cada vez mais difícil se ter o controle dos dados e apurar se
estão fundados em evidências. Se o uso acentuado de redes sociais tem o condão
de multiplicar, em escala sem precedentes, fake news, a mídia de massa também
tem papel no processo de manipulação e, na expressão habermasiana, na
colonização do mundo da vida, ao definir qual será a abordagem da realidade
social a partir do que é definido pela cúpula dos jornais, revistas e meios
audiovisuais, em si verdadeiros conglomerados mercantis.
Nesse
sentido, este artigo pretende problematizar em que medida a “pós-verdade” pode
enfraquecer a democracia enquanto modelo que pressupõe a ação comunicativa de
seus cidadãos para influir nos rumos do sistema político.
Democracia e esfera
pública
A
esfera pública é um conceito-chave na teoria democrática habermasiana e pode
ser entendida, em linhas gerais, como estrutura de comunicação enraizada no
mundo da vida responsável por levar ao sistema político questões originadas na
esfera privada e nas esferas informais da sociedade civil (Habermas, 2003, v.
II, p. 91). A esfera pública, portanto, tem a ver com o “espaço social” em que
os cidadãos têm a possibilidade de criticar, defender as suas ideias,
refletindo sobre o seu posicionamento sobre o mundo e, inclusive, mudando
convicções, para se chegar ao entendimento mútuo e exercer influência sobre as
decisões burocráticas. Esse conceito é fundamental para a teoria deliberativa
da democracia na medida em que “o processo da política deliberativa constitui o
âmago do processo democrático” (2003, v. II, p. 18), de modo que o princípio do
discurso é também um princípio de democracia, ao conferir força legitimadora ao
processo de normatização (elaboração de leis e decisões políticas) realizado
pelo sistema político.
Habermas
se refere à Cohen para indicar os postulados do processo de deliberação, hábil
a legitimar as decisões do sistema político. Seriam as regras aplicáveis a
todas as deliberações[1]: (i) serem realizadas de modo crítico; (ii) inclusivas
e públicas; (iii) livres de coerções externas, cabendo aos participantes apenas
o respeito aos pressupostos da comunicação e às regras do procedimento
argumentativo; (iv) livres de coerções internas, garantindo assim a igualdade
entre os participantes (2003, v. II, p. 28-29). Vê-se, a partir destas regras o
quão difícil é atingir uma deliberação de fato comunicativa. Pressupõe-se que o
debate seja feito por pessoas iguais, sem assimetrias de informação, que
aceitem as obrigações resultantes do debate, livres assim para aceitar de forma
pacífica o resultado da deliberação, ainda que o consenso dela resultante não
seja exatamente a sua vontade. Requer-se também que sejam admitidos como
interlocutores quaisquer interessados no debate de temas, questões e problemas
que serão postos em discussão. Desafio extremamente complexo, ainda mais em uma
sociedade em que a polaridade nas posições políticas ganha cada vez mais força
e o melhor argumento, papel secundário.
Não
obstante, temos que a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo
(Habermas, 2003, v. II, p. 92), a deliberação pública e o intercâmbio racional
entre cidadãos iguais são a base da própria democracia. Nesse espaço, a atuação
de grupos de interesse seria exposta a críticas, e as opiniões públicas
lançadas graças ao uso declarado de dinheiro ou do poder organizacional –
portanto, estratégicas – “perderiam credibilidade tão logo essas fontes de
poder social” se tornassem públicas (2003, v. II, p. 96-97). Nessa perspectiva,
o agir estratégico sempre seria uma forma de colonização do mundo da vida.
Vale
destacar, todavia, que há autores que admitem a natureza ambivalente da
comunicação humana e, deste modo, afirmam que o agir estratégico seria uma de
suas características inerentes e não uma patologia. Nesse sentido, seria
necessário considerar que a validade do discurso não se restringe a um contexto
em que todos os participantes atuem comunicativamente de forma pura – tanto
quem fala, como quem recebe -, pois o ambiente social possui normatividade
historicamente construída, sendo possível que o melhor conhecimento seja
utilizado para construir desinformação (Demo, 2000, p. 39).
A
ideia de esfera pública também não é isenta críticas. Teóricos latinos, além de
outros autores que pensam a democracia “pós-terceira onda”, identificam no
conceito de esfera pública habermasiana uma resposta parcial à tensão entre
complexidade e soberania popular, posto que, para eles, as decisões
comunicativamente acordadas não podem ser meramente traduzidas em influência
política (Habermas, v. II, p. 95), mas sim em decisões políticas propriamente
ditas. Dentre as traduções da ideia de esfera pública ao contexto político
vivido no Brasil, destaca-se a noção de participatory publics, desenvolvida por
Leonardo Avritzer (Avritzer, 2002).
Não
obstante as críticas ao modelo habermasiano de comunicação na esfera pública
(que para seus críticos desconsidera a ambivalência da comunicação humana e que
a atuação estratégica é inerente a ela), bem como à própria noção de esfera
pública (que teria papel emancipatório limitado, diante do fato de que produz
apenas influência e não decisões efetivas do sistema político), é possível
verificar que Habermas reflete de maneira crítica sobre as limitações da esfera
pública enquanto espaço de diálogo e emancipação, sobretudo quando aborda a
influência negativa dos meios de comunicação de massa sobre a politização da
esfera pública.
De
acordo com Lubenow (2012, p. 206-207), Habermas apresenta certo ceticismo em
relação às possibilidades oferecidas por esferas públicas dominadas pelos meios
de comunicação de massa, as quais, em razão desta colonização, têm fluxo
comunicacional fraco e com pouca capacidade de influir em processos de decisão
do sistema político. Essa relação entre mass media e esfera pública já é uma
preocupação na obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública”, de 1961, em que
Habermas traça uma ligação entre imprensa comercial (caracterizada como empresa
de economia privada destinada a gerar lucro) e formação e a estrutura da esfera
pública.
Esse
diagnóstico negativo da esfera pública, convertida em um meio despolitizado,
dominada pelos meios de comunicação de massa, evidenciou os problemas estruturais
da esfera pública que se torna incapaz de ser o fundamento de uma teoria da
legitimidade democrática e, portanto, de legitimação do próprio sistema
político. Desse modo, a hipercomplexidade do mundo contemporâneo, que exigiria
exercício constante de crítica e capacidade de análise pelo público, é
simplificado pelo poder da imprensa, que tem o papel de diminuir as incertezas
do mundo e formular verdades.
Os
condicionantes postos por Habermas em seu Direito e Democracia são no mínimo
utópicos, considerando o caráter excessivamente manipulativo da informação
hoje. Daí se entender o ceticismo desse autor no poder emancipatório da esfera
pública dominada pela mídia de massa.
O domínio da
Pós-verdade e o seu caráter antidemocrático
O
verbete “pós-verdade”, do inglês “post-truth”, foi conceituado pelo Dicionário
Oxford, em tradução livre, como “relativo ou referente a circunstâncias nas
quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as
emoções e as crenças pessoais.” Nessa expressão, o prefixo “pós” não tem a
função de diferenciar temporalmente dois períodos ou estados distintos, como em
“pós-guerra” e “pós-graduado”, mas traduz uma negativa ao conceito que o
acompanha, indicando, assim, uma superação da verdade, mesma construção sintática
de “pós-positivismo” e de “pós-moderno”.
Ainda
segundo o Dicionário Oxford, o termo foi utilizado pela primeira vez com esta
conotação no ensaio “A Government of Lies”, do dramaturgo sérvio-americano
Steve Tesich, publicado na revista The Nation em 1992. O termo também foi
utilizado por Ralph Keyes no livro The post truth era: Dishonesty and deception
in contemporary life e retomado pela mídia de forma ostensiva no contexto do
referendo britânico sobre a União Europeia (o famoso “Brexit”) e nas eleições
presidenciais dos Estados Unidos, sobretudo pela condução da campanha política
de Donald Trump, até se converter em um termo comum nas análises políticas,
tanto assim que foi eleita por este dicionário como a palavra do ano de 2016.
Conforme
Ralph Keyes defende em artigo[2], na era pós-verdade, são sublimadas as
fronteiras entre verdade e mentira, ficção e não-ficção. Há um rompimento com a
binariedade do certo ou errado, que é substituída por avaliações fluídas e
terminologias vagas. Esse desprezo pela verdade supera o âmbito pessoal e ganha
escala pandêmica em notícias, propaganda política, jornalismo sensacionalista
(mesmo velado), que promovem virais nas redes que contagiam a opinião pública,
nas ruas. Na discussão política, a realidade é ignorada, o que releva é que as
ideias sejam verossímeis e que os argumentos as defendam de maneira “quase
verdadeira”. E as redes sociais favorecem a replicação das fake news, que são
compartilhadas por conhecidos nos quais os usuários têm confiança, o que
aumenta a aparência de legitimidade das estórias. Desse modo, não é o conteúdo
que dá legitimidade à informação, mas a sua capacidade de difusão e circulação,
por meio do compartilhamento, que produz efeito de verdade. Cuida-se de uma
forma moderna de exercício do poder que, a partir da manipulação da linguagem,
tem capacidade para determinar comportamentos, moldar relações entre atores
sociais, instituições e movimentos sociais.
Conclusão
Se
a pós-verdade é um neologismo recente, fato é que essa expressão nomina um
fenômeno social antigo, que aos poucos altera conceitos tradicionais de verdade
e mentira, certo e errado. Esse conceito indica o quanto a hipercomplexidade
social e a incerteza podem abrir caminho para a atuação oportunista, que cria
informações que não passam, e nem possuem o propósito de passar, pelo teste da
veracidade.
Os
meios de comunicação ganharam um papel de destaque na sociedade da informação
porque a circulação de informação, e não mais a produção de bens materiais, é o
principal mecanismo de produção de conhecimento – e de recursos econômicos –
numa rede digital em constante inovação. São, desse modo, agentes fundamentais
no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade.
Desse
modo, a adoção pela mass media de um padrão de fala que pretere a veracidade,
influi de forma muito negativa na esfera pública, que vê diminuído o seu
potencial crítico. O debate, então, dá lugar a manifestações despolitizadas,
reproduzidas aos milhares sem nenhuma prova. Como o agir comunicativo é o
núcleo do princípio democrático, quando a esfera pública é corrompida, também
se enfraquece o sistema democrático. Por isso é urgente pensar em alternativas
para que a esfera pública recupere o seu potencial crítico e normativo.
A
questão parece ser melhor respondida quando se assume o caráter ambivalente da
comunicação humana, vale dizer, assume-se que a informação pode ser justamente
veículo de desinformação e imbecilização. Assim, passa-se a exercer com maior
controle os fluxos comunicacionais criados justamente para deturpar a verdade e
colonizar o mundo da vida. De todo modo, é necessário entender-se que os
sujeitos não são inteiramente manipuláveis – esse seria um revés da moeda
igualmente irreal – e há uma relação de credibilidade entre mídia e o público.
Se há a quebra de confiança das pessoas na veracidade do que é informado, o
futuro da própria imprensa enquanto meio que traduz a realidade social também
poderá ser abalada. Há um público crítico e uma mídia pensante também. A
possibilidade de emancipação pode nascer daí.
Referências
Bibliográficas
AVRITZER,
Leonardo. 2002. Democracy and the public space in Latin America. Princeton, New
Jersey: Princeton University Press.
CASTELLS,
Manuel, 2000. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A
Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, v. 1 e 3.
CASTILHO,
Carlos, 2016. Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade.
Observatório da Imprensa. Publicado em: 28/09/2016.
DEMO,
Pedro, 2000. Ambivalências da sociedade da informação. Ci. Inf., Brasília, v.
29, n. 2, p. 37-42, maio/ago. 2000.
HABERMAS,
Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003.
____________.
Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volumes I e II. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.
KEYES,
Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. St.
Martin’s Press, 2004
LUBENOW,
Jorge Adriano A Esfera Pública 50 Anos Depois: Esfera Pública e Meios de
Comunicação em Jürgen Habermas em Homenagem aos 50 Anos de Mudança Estrutural
da Esfera Pública. Trans/Form/Ação, Marília, v. 35, n. 3, p. 189-220,
Set./Dez., 2012.
1
Habermas ainda se refere a três regras aplicáveis à deliberações políticas.
Para conhecê-las, veja Habermas, 2003, v. II, p. 30.
2
The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Disponível
em: http://www.ralphkeyes.com/the-post-truth-era/. Acesso em 01.12.2016.
Josie
de Menezes Barros é advogada, mestranda em Direito Administrativo na PUC-SP.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-ago-26/josie-barros-pos-verdade-subversao-principio-democratico
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