Inicialmente,
é imperioso destacar a dificuldade de atribuir um nome a esta pequena
contribuição, tendo em conta que as inconsistências e impropriedades são
férteis e reluzentes quando o assunto é a decisão de primeiro grau proferida na
presente ação, onde figura como um dos acusados o ex-presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva. Pois bem, buscando a precisão e o mínimo de
rigorosidade, elegeu-se – de forma arbitrária, pois ao menos este subscritor
confessa este arbítrio, diferente de outros que protagonizam este malsinado
evento da Justiça Federal Criminal – os itens de número 795 e 804 do presente
decisum, o que segundo meu juízo já servirá de exemplo das (im)propriedades e
(in)consistências. São os que seguem:”795.
Algumas
medidas cruciais, porém, foram deixadas de lado, como a necessária alteração da
exigência do trânsito em julgado da condenação criminal para início da execução
da pena, algo fundamental para a efetividade da Justiça Criminal e que só proveio,
mais recentemente, da alteração da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal
Federal (no HC 126.292, julgado em 17/02/2016, e nas ADCs 43 e 44, julgadas em
05/10/2016). Isso poderia ter sido promovido pelo Governo Federal por emenda à
Constituição ou ele poderia ter agido para tentar antes reverter a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.
E
também:
“804.
Usualmente, se um subordinado pratica um crime com a ignorância do superior,
quando o crime é revelado, o comportamento esperado do superior é a reprovação
da conduta e a exigência de que malfeito seja punido. Não se verificou essa
espécie de comportamento por parte do ex-Presidente, pelo menos nada além de
afirmações genéricas de que os culpados deveriam ser punidos, mas sem qualquer
designação específica, como se não houvesse culpados cuja responsabilidade já
não houvesse sido determinada, como, no caso, aliás, da Ação Penal 470, com
trânsito em julgado. Trata-se de um indício relevante de conivência em relação
ao comportamento criminoso dos subordinados e que pode ser considerado como
elemento de prova”.
No
item 795, naquele momento, o julgador narrava (não se sabe por qual motivo) os
feitos do Governo Lula e suas possíveis falhas, com relação a política do
sistema de justiça criminal, sendo assim o julgador da presente ação, assevera
ter sido uma insuficiência da gestão presidencial, o fato da mesma não ter
empregado esforços para que o instituto da Presunção de Inocência fosse
flexibilizado já naquela época, dando a entender que não foram empenhados
esforços suficientes para o necessário combate a corrupção. Com perdão da
crítica, chega a ser risível a argumentação. A pergunta que fica é: Qual a
necessidade desta narrativa do ponto de vista decisório? Respondo: Nenhuma!
Absolutamente desnecessária.
Por
certo, a decisão do HC 126. 292, de 2016, (que mudou a orientação até então
consolidada na Corte no HC 84.078, de 2009) para dizer o mínimo, o óbvio, o que
não é pouco, feriu além da Constituição da República – art. 5º, LVII – toda a
sistemática internacional de Direitos Humanos, tais como, a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão (art.9º); a Declaração Universal de Direitos do
Homem (art. 11); a Convenção Européia de Direitos do Homem (art. 6.2); o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2); o Estatuto de Roma
(art. 66.1) e, com especial destaque, a Convenção Americana de Direitos Humanos
(art. 8.2).
Enfim,
aquilo que o julgador de Curitiba aponta como “algo fundamental para a
efetividade da Justiça Criminal“, nada mais é do que uma das mais monstruosas
arbitrariedades cometidas no (e pelo) sistema de justiça criminal brasileiro e
que em nada contribui para o aperfeiçoamento das instituições democráticas, ou
seja, cuida-se de um desserviço ao Estado democrático e constitucional, pondo
de lado toda construção histórica e internacional de Direitos Humanos, servindo
apenas para o incremento da seletividade e superlotação prisional.
Melhor
sorte não carrega o item 804 da sentença condenatória. Antes que perguntem vou
dizer, este item trata do tema Ação Penal 470 (Mensalão!!!), pasmem, Mensalão,
a pergunta seguinte é: Mas qual a relação, como diria o outro, dos alhos com os
bugalhos? Respondo: Nenhuma! Absolutamente desnecessária.
No
momento em que o julgador afirma que o ex-presidente disse “nada além de
afirmações genéricas de que os culpados deveriam ser punidos” sublinhou seu
total desconhecimento a elementar condição, em um processo penal democrático,
de que corresponde exclusivamente à parte acusadora – e não a defesa – a carga
probatória válida e suficiente para demonstrar a participação do acusado nos
fatos a ele imputado, não podendo a defesa ser submetida, de modo algum, a uma
“probatio diabólica“, de tal modo que a primeira forma de se garantir a
presunção de inocência é o reforço deste axioma, exigindo assim provas válidas
e suficientes para que seja possível quebrar o estado de inocência, presente em
todas as fases do processo penal. Sendo assim, é flagrantemente
inconstitucional a aplicação de quaisquer presunções que possam “ocasionar una
inversión de la carga de la prueba con infracción de la presunción de inocencia
(STC 105/1988)“[2].
Dito
de outra forma, o fato de o acusado exercer seus direitos constitucionais e
convencionais, afirmando aquilo que deseja e que julga como o mais conveniente
ou de alguma forma não colaborar com o órgão acusatório – ou até mesmo com esta
nova figura jurídica que é o “juízo acusatório” -, frise-se, de forma alguma
pode ser entendida como uma presunção ou mesmo indício de culpa, pois, todos
possuem o direito “de ser tratado como inocente“,[3]ou “o derecho que a todo
imputado asiste a que se presuma su inocencia hasta tanto no recaiga contra él
una sentencia penal firme de condena“[4], sendo este, corolário constitucional
elementar do processo penal acusatório[5].
Desta
arte, somente com estrita obediência aos corolários elementares do Estado de
Direito, respeitando institutos como a garantia do direito de silêncio, a
proibição de produção de prova contra si e a presunção de inocência, somente
assim, poderá se desenvolver o escorreito exercício da jurisdição[6].
Com
efeito, o ponto de início do julgamento justo é assegurar a liberdade do
sujeito contra os eventuais excessos do poder estatal, o que na lição de
QUEIJO, inclui-se “o resguardo contra violência físicas e morais, empregadas
para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração dos delitos,
bem como contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e
dissimulações”[7].
Cabe
destaque que, GIMENO SENDRA[8], entende que caso a sentença penal condenatória
esteja fundamentada em uma prova que tenha ferido a proporcionalidade, esta
infringirá também o princípio basilar da presunção de inocência e,
principalmente, o direito do acusado a um processo que obedeça todas as
garantias[9]. É o que se apresenta neste caso que, como dito, um infeliz momento
da justiça criminal brasileira.
No
mais, quando o Juiz Moro afirma que: “Trata-se de um indício relevante de
conivência em relação ao comportamento criminoso dos subordinados e que pode
ser considerado como elemento de prova” (g.n.), demonstra total e profundo
desconhecimento das diferenças elementares e processuais com relação a fonte,
elemento, meio e função da prova no Estado de Direito, requisito este essencial
para prolação de uma sentença democraticamente aceitável, afinal, toda e
qualquer decisão deve ser proferida mediante provas sob o crivo do
contraditório, elemento central no jogo do processo. Esta colocação subverte a
formalidade e rigorosidade essenciais, transformando o tópico em mero golpe de
cena processualmente sofrível o que é tecnicamente inaceitável e que
necessariamente precisa ser reformado para o bem do Estado democrático e
constitucional de Direito, é o que se espera desta decisão.
Referências
BINDER,
Alberto M..Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani. rev. e
apres. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
CINTRA,
Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo.24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.
GIMENO
SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007.
QUEIJO,
Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo:
Saraiva, 2003.
Notas
[1]
Yuri Felix é professor de Direito Penal e ouvidor do IBCCrim (Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais). Foi
Presidente da Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª
Subseção da OAB/SP.
[2]
GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p.
109-110.
[3]
BINDER, Alberto M..Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani.
rev. e apres. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 85.
[4]
GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p.
108.
[5]
“El derecho a la presunción de inocencia significa, esencialmente, el derecho
de todo acusado a ser absuelto si no se ha practicado una mínima prueba válida
de cargo, acreditativa de los hechos motivadores de la acusación,desarrollada o
constatada y ratificada en el acto del juicio oral, con sujeción a los principios
de oralidad, inmediación, contradicción y publicidad”. In: GIMENO SENDRA,
Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 109.
[6]
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo.24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 84-93.
[7]
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 55.
[8]
“De conformidad, pues, con la doctrina del TEDH (caso Handyside, S 7 de
diciembre de 1976; ‘The Sunday Times’ S 26 de abril de 1979; Sporrong y
Lohnroth, S 24 de septiembre de 1982; Bartoldt, S 25 de marzo de 1985) y
jurisprudencia del Tribunal Constitucional (SSTC 62/1982, de 15 de octubre,
13/1985, de 31 de enero; 37/1989, de 15 de febrero; 50/1995, de 23 de febrero;
166/1999, de 27 de septiembre; 299/2000, de 11 de diciembre; 138/ 2001, de 10 de junio) pueden extraerse del principio
de proporcionalidad, las siguientes notas esenciales: a) todo acto limitativo
de un derecho fundamental ha de fundarse y estar previsto (principio de
legalidad) en una Ley con rango de Orgánica, pues nuestra Constitución exige
que sólo el Poder Legislativo y a través de una Ley con dicho rango (art. 81
CE) pueda autorizar los supuestos en los que, bien el Poder Ejecutivo, bien el
Judicial, hayan de limitar alguno de los referidos derechos fundamentales (STC
207/1996); b) ‘toda resolución que limite o restrinja el ejercicio de un
derecho fundamental ha de estar motivada‘ (SSTC 62/1982, de 15 de octubre;
37/1989, de 15 de febrero; 85/1994, de 14 de marzo; 181/1995, de 11 de
diciembre; 54/1996, de 26 de marzo; 158/1996, de 15 de octubre; 123/1997, de 1
de julio; 236/1999, de 20 de diciembre; 239/1999, de 20 de diciembre, 299/2000,
de 11 de diciembre; 47/2000, de 17 de febrero; 202/2001, de 15 de octubre;
138/2001, de 18 de junio; 14/2001, de 29 de enero; y SSTS 23 de junio de 1992,
23 de julio de 2001 -RJ 2001\7297-, 12 de septiembre de 2002 -RJ 2002\8331-, 3
de junio de 2002 -RJ 2002\8792-); c) ha de observarse el cumplimiento del
subprincipio de necesidad, conforme al cual ‘las medidas limitadoras habrán de
ser necesarias para conseguir el fin perseguido’ por el acto de investigación,
fin o interés que habrá de estar constitucionalmente protegido, siendo
indispensable la práctica del acto limitativo del derecho fundamental para
alcanzar dicha finalidad constitucionalmente protegida (SSTC 13/1985, de 31 de
enero; 66/1989, de 17 de abril; 57/1994, de 28 de febrero; 58/1998, de 16 de
marzo; 207/1996; 18/1999, de 22 de febrero; 47/2000, de 17 de febrero; 70/2002,
de 3 de abril; ATC 177/2001, de 29 de junio; SSTS 8 de marzo de 2004 -RJ
2004\2804-; 12 de septiembre de 2002 -RJ 2002\8331-, 4 de abril de 2002 -RJ
2002\5445-; SAP Guipúzcoa 26 de septiembre de 2003 -ARP 2003\768-; AAP Cádiz 17
de febrero de 2004 -ARP 2004\102); d) ha de existir una adecuación o
‘congruencia entre la medida prevista o aplicada y la procuración de dicho bien
constitucionalmente relevante’, y e) la finalidad perseguida por el acto
instructorio y lesivo del derecho fundamental no ha de poder alcanzarse, sino
mediante dicho acto y no con otro igualmente eficaz, pero no restrictivo del
derecho fundamental (subprincipio de la ‘alternativa menos gravosa‘ para el
derecho fundamental) o no debe poderse comprobar ‘ex post‘ que el mismo
objetivo hubiera podido alcanzarse con un medio no o menos restrictivo del
derecho fundamental (BVerfG 30,292-316-, Gössel; SSTC 66/1985, de 23 de mayo;
178/1985, de 19 de diciembre; 19/1988, de 16 de febrero; 37/1989, de 15 de
febrero; 215/1994, de 14 de julio; 122/2000, de 16 de mayo; 126/2000, de 16 de
mayo; 299/2000, de 11 de diciembre; 169/2001, de 16 de julio; 138/2001, de 10
de junio y SAP Cádiz de 17 de mayo de 1989)”. In: GIMENO SENDRA, Vicente.
Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p. 61-62.
[9]
GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 2 ed. Madrid: Colex, 2007, p.
62.
http://www.pt.org.br/yuri-felix-juizo-de-curitiba-e-o-rigor-processual-confusoes-e-falacias/
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