Graciliano
Ramos afirmava com toda a coerência que sempre cercou sua vida pública e
privada, em anos da ditadura Vargas: “Como a profissão literária ainda é uma
remota possibilidade, os artistas em geral se livram da fome entrando para o
funcionalismo público”. Também pudera: “Vidas Secas” teve uma primeira edição
de trezentos exemplares em 1938; a segunda, de mil, só saiu em 1947 e uma
terceira demorou mais cinco anos para ocorrer. Para sobreviver, ele escrevia
pela manhã, era inspetor de ensino à tarde e, à noite, editor do “Correio da
Manhã”.
Assim
como Graciliano, a maioria de nossos escritores detestava tanto a ditadura
Vargas quanto o fascismo, mas recebiam dos cofres públicos por serviços
prestados. O Ministério da Educação era comandado por Gustavo Capanema que
tinha como chefe de gabinete ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, no
mesmo período em que este escrevia o poema “A Rosa do Povo” (“Este é tempo de
partido, tempo de homens de partidos”). Drummond disse, posteriormente,
justificando-se: “Existe uma diferença entre servir uma ditadura e servir sob
uma ditadura”.
Capanema,
por outro lado, e sob a influência de Drummond, nomeou como inspetores federais
para o ensino público: Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Marques Rabelo,
Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa e Abgar Renault. Quem ganhou com os
intelectuais destes quilates, nomeado para postos-chave no ensino, foram a
infância e a juventude do Brasil.
Para
a presidência do Instituto Nacional do Livro, Capanema trouxe Augusto Meyer.
Para a Biblioteca Nacional, Sérgio Buarque de Hollanda!
O
Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, projeto elaborado sob a consultoria
de Mário de Andrade, recebeu como diretor Rodrigo Mello Franco. Todos eles,
reconhecidamente, intelectuais de esquerda, quando não membros do Partido
Comunista.
O
novo prédio no Rio, onde seria instalado o Ministério de Educação e Cultura,
teve contratados para detalhamento do projeto realizado pelo francês Le
Courbisier, os arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Os murais desse
edifício, um clássico do modernismo, foram pintados magistralmente por Cândido
Portinari.
O
tristemente famoso pela censura aos meios de comunicação e às artes de um modo
geral, o Departamento de Imprensa e Política, o DIP, possuía seus próprios
veículos de comunicação. Enquanto a redação de um bom jornal oferecia um
salário médio mensal de oitocentos mil réis para um editor, o órgão
governamental pagava por “apenas” cinco laudas escritas seus cem mil réis. Não
fica difícil entender por que Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Vinicius de
Moraes, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Gilberto Freyre, Murilo Mendes, Tristão de Athayde, Adalgisa Nery,
dentre outros, escreviam para as publicações oficiais.
O
DIP editava uma revista denominada “Travel in Brazil”. Para dirigi-la contratou
a intelectual modernista Cecília Meirelles.
O
poderoso DIP ainda dispunha de verbas para “neutralizar” a imprensa dita livre.
Pagava subsídios mensais a esses veículos publicitários, sob a forma de verba
de propaganda. Os nove grandes jornais da época, que recebiam noventa por cento
dessa verba, ofereciam empregos estáveis ou bicos para um grande leque de
escritores e jornalistas, dentre eles: Antônio Callado, Otto Lara Rezende,
Francisco de Assis Barbosa, Franklin de Oliveira, Moacyr Wernerck de Castro,
Prudente de Morais Neto, Otto Maria Carpeaux, Mário Pedrosa, Ruben Braga e
Álvaro Lins.
Controlada
pelo DIP, a Agência Nacional com a sua “A Voz do Brasil” teve por redatores
Lúcio Cardoso e Clarice Lispector.
Quando
foi lançada pelo Estado Novo a “Revista de Cultura Política”, ela reunia
diversos intelectuais das mais diferentes tendências político-ideológicas, como
Nelson Werneck Sodré, Marques Rabelo, Luís Câmara Cascudo, Herberto Salles,
Guerreiro Ramos, Peregrino Junior, Prudente de Moraes Neto, Giberto Freyre e
Brito Broca.
Por
outro lado, o Corpo Diplomático do Estado Novo teve a servi-lo intelectuais do
quilate de João Cabral de Mello Neto, Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes e
Ribeiro Couto.
A
fazenda pública criou o Imposto de Consumo (o pai de nosso ICMS). Por sua
probidade, o escritor José Lins do Rego foi nomeado inspetor.
Na
maioria dos casos, a natureza da colaboração não se confundiu com cumplicidade
ideológica ou adesismo ao fascismo. Antônio Cândido, assim como o fizera
Graciliano Ramos, separa de modo claro os intelectuais que “servem” daqueles
que se “vendem”. Quase sempre os nossos escritores e intelectuais se integravam
na máquina governamental na condição de “funcionários subalternos das
superestruturas”, no dizer de Sartre. Eles não tinham o poder de definir
políticas públicas e nem de formular premissas ideológicas.
Ao
contrário daqueles intelectuais, outros como Azevedo Amaral, Cassiano Ricardo,
Almir de Andrade, Menotti del Picchia e Francisco Campos, normalmente
originários do “Grupo Modernista da Anta”, identificaram-se ideologicamente com
o Estado Novo e com o fascismo, participando, aí sim, de sua sustentação
doutrinária.
Após
a derrocada do Estado Novo, o Partido Comunista Brasileiro ganhou legalidade.
Uma grande parte daquela intelectualidade nele ingressou. Citaremos os mais
emblemáticos como:
Escritores
e jornalistas: Graciliano Ramos, Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo
Pereira, Álvaro Moreyra, Moacir W. de Castro, Caio Prado Junior, Dyonélio
Machado, Jacob Gorender, Dalcídio Jurandir, Aparício Torelly, Pedro Motta Lima
, Osvaldo Peralva.
Artistas
Plásticos: Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, Pancetti,
Campofiorito, Giorgi, Abelardo Hora, Israel Pedrosa.
Dramaturgos
e atores: Oduvaldo Vianna, Dias Gomes, Joracy Camargo, Mário Lago e Eugênia
Moreira.
Maestros
e músicos: Francisco Mignone, Guerra Peixe e Arnaldo Estrela
Arquitetos:
Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas.
Alguns
intelectuais, apesar de possuírem o socialismo como ideologia não se ajustaram
ao figurino partidário. Mário de Andrade foi um deles. Ele buscou compatibilizar
inconformismo com sua desconfiança, acreditando que “o intelectual verdadeiro
sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário pessimista, cético e
cínico, em outras palavras, um fora da lei”.
Analisando
a participação dos intelectuais em nosso passado recente e no século XXI,
Carlos Nelson Coutinho enfatiza que não existe uma relação mecânica e direta
entre cooptação e ausência de espírito crítico. “Se isso ocorria sob uma
ditadura, sob a democracia de hoje, todo intelectual, mesmo cooptado pelo
Estado, pode se tiver consciência e um posicionamento de esquerda, adotar
posições políticas e estéticas de clara oposição ao “status quo (2004)”. Ainda
ressaltava que com o pós- modernismo, irmão siamês do neoliberalismo, ocorre
uma despolitização geral da sociedade, e, consequentemente, da cultura: de
questionadora de valores, metamorfoseia- se em mercadoria.
Já
o filósofo Habermas acena que a “sociedade líquida”, parafraseando Bauman, é
tempo de enorme pobreza intelectual. Questionado porque, responde. “O
intelectual existe na justa medida em que as pessoas leem. Com a previsível
falência da leitura, o intelectual é um ser em extinção.”
Referências:
Lippi
e outras, Estado Novo, ideologia e poder. Zahar 1982;
Miceli, Intelectuais a la brasileira, C.
das Letras, 2001;
Rugai e outros, Intelectuais: sociedade e
política, Cortez, 2003.
http://proust.net.br/blog/?p=1344
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