Cresci
com uma lavoura de soja que chegava quase à porta da minha casa. Grande parte
dos meus familiares a cultivaram e ainda a cultivam. Sou oriundo de uma geração
de agricultores e filhos de agricultores cujas identidades e representações de
mundo estão profundamente associadas à soja. Identidades e representações que
se perpetuaram. Peça para uma criança de algumas regiões do interior gaúcho
representar o meio rural em uma imagem e haverá uma grande chance de que
desenhe uma lavoura de soja.
É
muito difícil para mim e para todos que cresceram com esta imagem da soja como
modelo de progresso aceitar a ideia de que este grão pode acabar com a economia
gaúcha (talvez brasileira). Vejo isto na face dos filhos de agricultores que
chegam todo semestre às minhas aulas no curso de agronomia da UFRGS. A reação
da maioria deles, sensata e esperada, é de completa incredulidade. Ora, quem
ousaria afirmar que a soja, que supostamente ‘sustenta a agricultura do
estado’, poderia ser, na verdade, o problema e não a solução? Tento lhes
explicar minhas múltiplas razões. Aqui não tenho condições de explorar cada uma
delas em detalhes. Vou apenas destacar as principais.
A
primeira e mais debatida no meio político tem a ver com o fato de que a soja é
uma das commodities de exportação mais beneficiadas pela Lei Kandir. Em
vigência desde 1996, esta lei desonerou as exportações de bens primários e
semielaborados do pagamento de ICMS. Por causa dela, o RS acumula uma perda de
arrecadação de quase R$ 50 bilhões. Cabe lembrar que a dívida pública do Estado
chegou a R$ 67,6 bilhões no final de 2017.
Uma
segunda razão é o efeito da expansão da soja em termos de especialização
produtiva. Por um lado, isto aumenta a vulnerabilidade dos agricultores em face
das oscilações do mercado internacional e das intempéries climáticas (todos se
perguntando quando será a próxima seca). Por outro, repercute no modo como a
soja substitui outros produtos de maior valor agregado, repercutindo em redução
do potencial de crescimento econômico.
Na
mesma extensão de área o cultivo de soja tem rendimento econômico inferior a
vários produtos agrícolas. No entanto, o que se vê em toda parte são
agricultores vendendo as vacas, arrancando os pomares e retirando até mesmo
suas casas para plantar soja. Não impressiona, portanto, o aumento do preço dos
alimentos nos supermercados, sobretudo das frutas, verduras e legumes.
A
expansão da soja tem um efeito indireto, portanto, no poder de compra dos
consumidores. Na medida em que os agricultores, desestimulados a plantar
gêneros alimentícios básicos, se voltam para a soja, os consumidores não apenas
vêem os preços dos alimentos aumentar, mas também são empurrados para uma parafernália
de produtos industrializados baratos e ultraprocessados.
Aqui
a discussão sobre os efeitos da sojicização vai longe. Poderíamos, por exemplo,
associar a expansão da soja à crise de saúde pública decorrente do consumo
destes produtos industrializados. E também poderíamos acrescentar nesta equação
o fato de que a soja contribuiu decisivamente para tornar o Brasil o maior
consumidor mundial de agrotóxicos (que, ademais, também se beneficia de redução
de impostos).
Berço
do processo de sojicização da economia gaúcha, a região noroeste do RS se
destaca no que se refere ao problema dos agrotóxicos. Oriundo desta região, mas
tendo migrado muito cedo, ainda hoje tenho uma memória olfativa do cheiro do
veneno. O vento levava o produto da lavoura até a casa. Sabíamos que era melhor
não ficar exposto. Mas ninguém dizia nada sobre colher e comer um pé de alface
após a aplicação do veneno na lavoura que estava logo ao lado.
A
expansão da soja também afetou outros cultivos tradicionais. Na última década a
área de milho cultivada no RS foi reduzida pela metade. Os produtores de
suínos, aves e leite já sentem os efeitos do problema. A especialização na
produção de soja pode inviabilizar estas cadeias produtivas. Por conta disso,
nos próximos anos empresas agroindustriais poderão reorientar seus
investimentos para outros estados, mais próximos dos locais de produção desta
matéria-prima.
Nos
últimos anos a soja também invadiu as áreas de produção de arroz e carne. O
pampa gaúcho, um bioma único no mundo, está ameaçado pelo monocultivo da soja.
Apenas isto já seria uma razão suficiente para nos preocuparmos e regularmos o
uso das terras agrícolas. Mas, se isto não bastar, preocupe-se ao menos com a
origem, a qualidade e o preço da carne que você consumirá nos próximos anos.
No
caso do arroz, item básico da dieta alimentar brasileira, a entrada da soja se
dá em um contexto de crise da produção rizícola. Fala-se na rotação de cultivos
entre soja e arroz como solução para a crise. O risco, contudo, é a
substituição. E a pergunta que todos se fazem é porque as políticas públicas
apóiam mais a soja do que o arroz e o feijão (que, aliás, estamos importando).
Mesmo dentre as políticas para a agricultura familiar, como o PRONAF, a soja
abocanha mais da metade do crédito de custeio agrícola.
Por
que não apoiar outras cadeias de maior valor agregado como leite e derivados,
frutas e hortaliças, queijos e vinhos? Muitos dirão que os agricultores plantam
soja porque já não existe mão de obra no meio rural para outras atividades. É
verdade. Mas talvez também tivéssemos que considerar a possibilidade de que já
não existe mão de obra no meio rural porque se incentivou a especialização
produtiva e a concentração da terra. Pergunte a um agricultor ou um trabalhador
rural se ele teria intenção de sair da terra se ele tivesse condições de ali
permanecer de maneira diga, com acesso a bens e serviços. Ou seja, a falta de
mão de obra é a conseqüência e não a causa do problema.
Mesmo
assim, provavelmente alguém vai dizer: o preço da soja está muito alto, ou
seja, não existe alternativa mais rentável. O preço da soja não está alto. O
que está alto é o dólar. Na verdade, o preço caiu nos mercados internacionais.
Depois da explosão de 2008, repetida em 2012, o preço despencou nas bolsas de
valores internacionais. Os agricultores brasileiros somente seguem recebendo um
valor muito elevado porque a taxa de câmbio compensa esta queda.
No
entanto, o câmbio também fez aumentar o preços dos insumos, das sementes ao
óleo diesel. Se somarmos a isso o preço da terra e a remuneração do trabalho
dos agricultores, não será difícil perceber que a maioria dos sojicultores
opera com uma rentabilidade por área relativamente baixa (o que demanda aumento
contínuo da escala). Muitos destes agricultores sabem que estarão endividados
se, por exemplo, uma nova estiagem atingir o RS durante a safra. Assim como os
governadores, apenas rezam para que não haja uma grande seca.
Nos
pequenos municípios do interior do estado crescemos ouvindo a máxima de que ‘a
cidade vai bem quando a colônia vai bem’. Também é verdade. A dinâmica
econômica dos pequenos municípios é muito pautada pela produção agropecuária.
Mas isto não se sustenta se a renda agropecuária estiver concentrada nas mãos
de poucos e grandes produtores. A expansão da soja está expulsando as pessoas
do meio rural, aumentando a concentração da terra e da renda. Os pequenos
municípios não tardarão a sofrer as conseqüências deste processo.
Enfim,
a expansão desenfreada da soja não apenas coloca a economia gaúcha em sérios
riscos, mas também reproduz a ideia de um mundo rural sem gente. Não estamos
apenas substituindo arroz, carne e leite por soja. Estamos substituindo as
pessoas. Estamos acabando com a ideia do rural como um espaço de vida, de
sociabilidades, de patrimônios culturais e alimentares.
Não
cabe culpar os produtores de soja – embora um deles em particular, aquele que
está sentado na cadeira do Ministro da Agricultura, mereça algum crédito por
isso tudo. A maioria está amarrada a uma complexa rede econômica que envolve
empresas, bancos, assistência técnica, comerciantes e propaganda. Não é fácil
se desvencilhar desta rede e encontrar outras alternativas.
Mas
cabe argüir quando e como o Estado vai criar incentivos para os produtores de
alimentos, de leite, de arroz, de carne, de frutas etc.? Quando vai apoiar a
pequena e a média indústria do modo como apoia as commodities agrícolas? Quando
vai ter políticas de apoio à diversificação econômica, a qual sempre foi o
principal esteio do desenvolvimento gaúcho? Quando vai criar alternativas para
os agricultores que querem escapar dos riscos da soja?
O
momento para discutir estas questões é agora. Às vésperas das eleições, será
importante saber o que os candidatos pensam à respeito.
(*) Professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
https://www.sul21.com.br/colunas/coluna-do-gepad/2018/06/a-soja-pode-acabar-com-a-economia-gaucha-e-com-muito-mais/
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