Promulgação
da Constituição de 1988: poucos textos poderão, como esse, dizer que nasceram
da vontade popular
A
Constituição brasileira de 1988 – alquebrada, mas ainda vigente, não obstante o
STF, é triste dizê-lo – é muito mais que um código de observância obrigatória.
Ela é, a um só tempo, símbolo e cristalização da opção política do povo
brasileiro, que, nas ruas, exigiu uma Assembleia Constituinte para decretar, de
uma vez por todas, o fim do ordenamento autoritário.
Poucos
textos poderão, como esse, dizer que nasceram da vontade popular. Vontade que
se manifestou tanto na grande jornada pela convocação da Assembleia
Constituinte, a que resistiam os militares, quanto no acompanhamento quotidiano
da atividade constituinte, evitando que prevalecesse o Centrão, o núcleo duro
da direita.
A
chamada ‘Constituição cidadã’, segundo o batismo de Ulisses Guimarães, não é o
texto de nossos sonhos – qual seria? –, mas é indiscutivelmente o que de melhor
poderíamos costurar, nas circunstâncias. E é, certamente, a mais representativa
de quantas Cartas tivemos na República.
No
entanto, ela está sendo dilacerada pelo Poder Judiciário, exatamente o único
desvalido da soberania popular. Na República, qual a praticamos, o poder
supremo – fonte de todos os demais – pertence ao povo. Na democracia
representativa, a nossa, esse poder é exercido por meio de representantes,
eleitos (art. 1º). Não há, pois, legitimidade fora da representação, que se
manifesta através do voto, em eleições periódicas. Fora desta fonte, tudo o
mais se afigura como esbulho.
À
exceção das rupturas revolucionárias ou golpistas (quarteladas ou não),
inexiste hipótese de legitimidade constitucional fora do voto, de que carecem
os juízes, atrabiliários ou não, autoritários ou não, ensimesmados ou não,
juízes de piso ensoberbados ou noviços alçados às alturas dos tribunais
superiores.
Em
nosso ordenamento, e exatamente em decorrência dessa limitação de fonte e
origem, cabe ao Poder Judiciário, por intermédio do STF, como função precípua
(adjetivo de escolha do constituinte), aquela que por sinal justifica sua
existência, a ‘guarda da Constituição’, o zelo pelo seu cumprimento, a
vigilância sobre sua integridade.
Jamais
sua violação, no que incide corriqueiramente nossa Corte, outorgando a si mesma
poder Constituinte de carece, como acaba de fazer, ao alterar (‘emendar’ como
gostaria o senhor Barroso) a regra que disciplina o processo e julgamento dos
membros do Congresso Nacional (art. 102). Antes, já esbofeteara a garantia
constitucional da presunção da inocência, e revogara a necessidade do trânsito
em julgado para o cumprimento de sentença penal condenatória, remetendo ao lixo
a regra do art. 5º, LVII.
Ainda
antes, com argumentos burocráticos e no ápice de chicanas operadas pela
presidência da Corte na ordenação da pauta dos trabalhos do Pleno, denegara o
pedido de habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
uma vez mais fraudando a Constituição, o que ficou exposto no luminar voto do
ministro Celso de Melo, essa ave rara do liberalismo.
A
incumbência outorgada ao juiz é a de reta aplicação da lei, não lhe cabendo
seja emendá-la, seja criar regra nova, competência privativa dos titulares de
mandato legislativo. Desse papel, usurpado dos representantes do povo, se
valeram o ‘Estado Novo’ e, mais recentemente, os militares. Mas naquelas
ocasiões vivíamos sob o império de ditaduras, que a consciência jurídica
repugnava.
O
ativismo judicial, a violação da separação dos Poderes, o avanço do Judiciário
sobre o Legislativo e o Executivo, postos sob custódia, têm, dentre outras
muitas motivações, a convicção, reacionária, alimentada e difundida pela
cantilena dos meios de comunicação, de que a política (isto é, a política
exercida pelos políticos…) é a fonte de nossos males, e como toda erva daninha
deve ser extirpada.
O
discurso da antipolítica, renovado metodicamente com os eventos da Lava Jato,
já foi formulado em diversos momentos de nossa História, e todos sabemos o que
nos foi imposto em seu rasto. O assassinato é precedido pela desqualificação do
político, anatematizado como corrupto pelo reacionarismo místico-religioso de
procuradores, juízes de piso e ministros, ainda encantados pelas luzes da
notoriedade.
Essa
é a razão ideológica para a ‘emenda’ aplicada ao art. 102 (I, a) da
Constituição, pois esse abuso foi o que praticou o STF – o colégio dos
illuminati onde neste momento pontifica o ministro Barroso – ao eliminar o
‘foro privilegiado dos congressistas’.
A
grande vítima deste ataque, todavia, é a soberania popular.
O
foro privilegiado, no caso dos congressistas, não consiste em prerrogativa
pessoal, do indivíduo, mas em instrumento de defesa do caráter e da essência da
representação popular; a incolumidade do titular da soberania, que não pode ser
ameaçado, limitado ou condicionado no exercício de seu mandato, nem exposto à
sanha de eventuais adversários, de litigantes de má-fé, de juízes a serviço das
oligarquias que dominam a política, principalmente no Brasil profundo.
O
STF, todavia, e por razões óbvias, só viu porta aberta à impunidade – porque
ele mesmo demora a julgar, alimentando a indústria da prescrição – quando os
processos dizem respeito aos membros do Congresso Nacional. Corre tudo como
dantes quando o ‘privilégio’ se aplica aos seus próprios membros, ao
Procurador-Geral da República, aos ministros de Estado, aos comandantes das
Forças Armadas, aos membros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da
União e aos chefes de missão diplomática.
Ou
seja, como dito acima, o projeto é ideológico, o alvo é a política e a vítima é
a soberania popular.
O
nano-ministro, líder do populismo judicante, penalista, punitivista,
demagógico, não se afeiçoa com os fundamentos do Direito, nem cultiva as lições
de seus construtores, pois sua fonte é um emaranhado de estatísticas não
conferidas de processos, ações e julgados, que brande a cada julgamento, para
em nome sempre de um alegado ‘excesso’ de demandas, justificar a supressão de
um direito fundamental.
Diz,
por exemplo, o senhor Barroso (nesse ponto alcovitado pelo ministro Fux), que o
instituto do habeas corpus, que separa as democracias das tiranias, de tão
requerido, está entulhando a Corte. Mude pois o STF o texto constitucional,
restringindo sua aplicação! Não importa quantos direitos quedarão à míngua de
proteção jurisdicional, mas os ministros ficarão mais aliviados em suas fainas.
São muitos os processos nos quais políticos figuram como acusados?
Casse-se,
pois, o chamado ‘foro privilegiado’. Cassado está. Mas os processos envolvendo
parlamentares representam apenas 1% do total que tramita (sem andar) na Casa… O
nosso é um Tribunal que leva, em média, cinco anos para jugar uma ação direta
de inconstitucionalidade, e menos de 5% de suas decisões se devem ao Plenário.
O grosso são decisões monocráticas. E, assim, porque o STF, letárgico, não
julga, revogam-se os direitos para reduzir a quantidade de processos,
pacificando o ócio remunerado dos sábios sabidos, que pouco param em Brasília,
viajando de Seca a Meca, em simpósios e palestras remuneradas (às vezes de
patrocínio pouco ortodoxo), ou mesmo em outras atividades profissionais em dia
e horário de expediente.
Não
há limites para a audácia antidemocrática.
Para
o antigo advogado do Itaú (segundo o colega Gilmar Mendes, porém, seu
escritório de advocacia ainda está em pleno funcionamento, isso é disputa entre
eles… ), a vida parlamentar é cara, donde o melhor é acabar com o Poder
Legislativo: “Num habeas corpus preventivo contra aqueles que questionam a
legitimidade da Corte para exercer um poder majoritário sem votos para tanto,
Barroso argumentava que o acesso ao Congresso tem um custo financeiro alto, que
obriga alianças com interesses particulares.
Já
os juízes, selecionados pela meritocracia (sic), representariam melhor a
vontade da sociedade” (“Os atropelos da história empurrada”, Maria Cristina Fernandes.
Valor, 4/5/2018). Tivéssemos hoje um Congresso, meramente de pé – e não
acocorado – já encontraríamos aí razões suficientes para requerer o impeachment
do ministro.
Ora,
se o ministro quer legislar, que se desfaça da toga que ainda não fez por merecer,
e vá para as ruas disputar no voto uma vaga na Câmara ou no Senado, porque numa
democracia razoavelmente respeitável as questões constitucionais só se resolvem
pelo Poder Legislativo, cujos representantes são escolhidos mediante o voto.
A
quem beneficiaria a desconstrução da política? Ao povo, certamente, não. As
agressões à ordem constitucional servem à alcateia que anseia pela retomada do
autoritarismo, requerido, como sempre, pela casa-grande e seus despachantes,
mas já alcançando camadas significativas de nossa população, como se vê dos
seguidores do capitão fascista, circulando entre aeroportos e quartéis.
O
STF, enfim, não é confiável, e isso traz insegurança tanto ao cidadão comum, o
povo-massa, quanto às instituições. Não só pela proteção de imoralidades
corporativas como o auxílio-moradia (e outros penduricalhos como
auxílio-viagem, diárias, semana de quatro dias, apartamento funcional,
automóvel na porta, ano de sete meses etc.) de juízes, desembargadores,
ministros, procuradores et caterva, mas porque julga com dois pesos e duas
medidas.
O
mesmo STF que impediu a posse de Lula como ministro de Dilma Rousseff – abrindo
caminho ao golpe que vinha a cavalo – não enxergou desvio de finalidade na
nomeação do inefável Wellington Moreira Franco para o ministério do locatário
do Jaburu, embora seja o novo ministro das Minas e Energia, objeto de processos
nos quais é acusado de corrupção passiva.
Dizem
seus críticos, sem atinarem pelas razões, que nossa Constituição é
‘detalhista’. Ora, foi esta a vacina que o Constituinte encontrou para defender
a ordem constitucional de um Poder Judiciário no qual não podia confiar.
E
a História, lamentavelmente, lhe está dando razão.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2018/05/o-stf-contra-democracia.html
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