Entre
o impeachment de Fernando Collor (1992), e o de Dilma Rousseff (2015-2016) o
Supremo Tribunal Federal mudou significativamente a sua forma de atuação.
Mudanças legais, culturais e em práticas institucionais deram um novo
protagonismo ao tribunal e aos seus ministros individuais.
Se
em 1992 ele foi chamado a se manifestar apenas em poucos mandados de segurança,
intervindo na prática apenas para dilatar um prazo processual em alguns poucos
dias. No biênio em que a política nacional foi consumida pelo impeachment da
ex-presidente Dilma, diversos mandados de segurança, reclamações, ADIs, ADPFs e
Habeas Corpus constituem a história de sua judicialização. Assim, o país
testemunhou, dentre outras coisas, a anulação de parte significativa do
processo de impeachment em uma ADPF, a ordem em que votariam os deputados na
autorização da denúncia sendo decidida pelo plenário do Supremo e o presidente
do tribunal, presidindo também o impeachment no Senado, autorizar a votação
separada da perda do cargo e da inabilitação para o exercício função pública de
Dilma Rousseff.
Diante
de dois impeachments, inúmeras ações e muitas decisões depois, seria de se
esperar que no Brasil, com a experiência de crises acumuladas e uma
judicialização intensa do processo de impeachment, haveriam poucas dúvidas
sobre tal instituto. Nada, no entanto, poderia estar mais longe da verdade. São
graves as incertezas que ainda existem e que ameaçam qualquer presidente futuro
do país.
Em
relação aos crimes de responsabilidade: um presidente reeleito pode ser
responsabilizado por atos cometidos durante o mandato imediatamente anterior? O
Supremo pode invalidar um impeachment por atipicidade, caso discorde que um
determinado ato constitui crime de responsabilidade?
Não
há resposta oficial sobre nenhuma dessas questões. A própria câmara decidiu se
limitar a discutir apenas atos cometidos em 2015, se protegendo assim da
alegação de que Dilma não poderia ser responsabilizada pelo que fez em seu
mandato anterior – para alivio de todos os governadores reeleitos. No entanto,
sem uma resposta do Supremo sobre esse ponto não está claro se essa tese seria
acatada ou não pelo atual tribunal e, sem jurisprudência sobre isso, tribunais
futuros poderão referendar o não qualquer posição sem qualquer precedente no
caminho. Já quanto a possibilidade de o Supremo discutir a tipicidade das
pedaladas fiscais cometidas em 2015, tese central da ação que questiona a sua
condenação, o tribunal permanece em silêncio – e possivelmente jamais se
pronunciará sobre isso.
Em
relação ao seu processamento na câmara: qual a extensão dos poderes do
presidente da câmara para arquivar pedidos de impeachment? Deveria se limitar a
verificar requisitos formais, ou pode fazer juízo quando a sua inadmissibilidade?
Diante do arquivamento de um pedido como esse, caberia recurso para o plenário
da Câmara?
Também
sobre isso faltam respostas conclusivas. É fato que inúmeros pedidos foram – e
continuam sendo – arquivados impunemente. No entanto, também é verdade que o
ministro Marco Aurélio determinou liminarmente pelo menos em um caso – contra o
então vice-presidente Michel Temer – que o presidente da câmara não poderia
arquivar o pedido, devendo determinar a criação de uma comissão especial para o
analisar. No entanto, não só essa comissão não foi criada – gerando mais uma
dúvida sobre como proceder quando partidos não indicam membros para a compor –
como sem um referendo do plenário, não está claro se esta posição reflete o
entendimento de apenas um ministro, de uma minoria, ou de uma maioria do
Supremo.
Em
relação ao processamento no Senado: caso a Câmara se manifeste positivamente
quanto a abertura do impeachment apenas em relação a certos fatos, está o
Senado limitado por esse juízo? Uma vez autorizado o seu processamento, o
Senado poderia considerar todos os fatos presentes na denúncia ou o juízo
autorizativo iria além de uma mera autorização, exercendo um limite sobre o
próprio recebimento da denúncia? Para isso, seria necessário que os pontos
fossem votados separadamente, ou ao aprovar o relatório a autorização se daria
nos seus limites estritos? Mais uma vez, não há resposta para nenhuma dessas
perguntas.
Quanto
à condenação no processo: em 1992, o Senado decidiu continuar com o processo
apesar da renúncia de Collor, considerando que, além da destituição – sobre a
qual não fazia sentido decidir apos a renúncia – haveria ainda interesse em se
decidir sobre a inabilitação do presidente, como de fato fez. Decisão
confirmada pelo Supremo ao julgar a ação de Collor questionando sua condenação
e conseqüente inabilitação. Em 2016, o Senado decidiu votar as duas penas
separadamente, determinando a perda do cargo, mas não a inabilitação de Dilma
Rousseff para o exercício de função pública. Podia fazer isso? A decisão foi
questionada, mas o Supremo não se manifestou sobre isso.
Ou
seja, não se sabe exatamente quais atos constituem crimes de responsabilidade,
se o Supremo tem controle sobre a sua tipicidade, se o presidente da Câmara
pode indeferir e arquivar pedidos de impeachment, se a autorização da Câmara
limita materialmente o recebimento da denúncia pelo Senado e, caso decida pela
condenação, se é possível decidir independentemente sobre as duas penas que a
Constituição prevê nessa hipótese.
Em
certa medida, essa situação é resultado da atuação da própria Câmara e Senado,
os quais, ao tentar evitar nulidades futuras, optaram, respectivamente, por não
considerar atos cometidos no mandato anterior, e a se limitar àquilo que foi
autorizado pela Câmara. Com isso, não deram causas a impugnações que poderiam
ter gerado decisões do Supremo sobre essas questões. No entanto, as outras
questões foram todas questionadas e, em alguns casos, continuam pendentes no
tribunal sem qualquer resposta.
A
mesma inércia processual que o impede de decidir sobre temas que não foram
levado ao seu conhecimento, deveria o compelir a decidir sobre aqueles sobre os
quais foi regularmente provocado a decidir. Mas nisso, como em outras coisas, o
tribunal claramente não é verdadeiramente inerte.
Diante
dessa situação de incerteza, caberia ao legislador resolver a questão
promulgando uma nova lei do impeachment, regulando seu processamento e
resolvendo de maneira clara todas essas dúvidas. Incertezas desse tipo em meio
a uma crise política são extremamente perigosas, tanto para quem ocupa a chefia
do executivo, como para o país como um todo. Além disso, regular a questão
propiciaria que qualquer questionamento sobre as regras eventualmente
promulgadas fossem veiculadas em ações de controle abstrato no Supremo,
permitindo – mesmo que não garantindo – segurança jurídica sobre um tema tão
fundamental.
Em
qualquer democracia, segurança sobre as regras do jogo político são essências
para o seu funcionamento saudável, em um país que passou pelo impeachment de
dois dos seus quatro presidentes diretamente eleitos, incerteza sobre as suas
regras é uma verdadeira temeridade.
Thomaz
Henrique Junqueira de Andrade Pereira é professor da FGV Direito Rio,
doutorando e mestre em Direito pela Yale Law School, mestre em Direito
Empresarial pela PUC-SP e mestre em Direito Processual Civil pela USP.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-mai-19/impeachment-nao-sabemos-deveriamos-saber
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