A
presunção de inocência está inscrita dentre os direitos fundamentais da pessoa
humana e surgiu para salvaguardar os direitos individuais do cidadão e limitar
o poder estatal. Inúmeros tratados e convenções internacionais1 preveem esse
direito, a Constituição de 1988 o consagra como garantia individual e cumpre
sua missão de garantir os direitos fundamentais da pessoa investigada e
acusada. O constituinte brasileiro decidiu por fixar o termo final dessa
presunção como o trânsito em julgado; esse é o marco processual e temporal a
partir do qual se pode considerar alguém culpado e, por conseguinte, lançar-lhe
o nome no rol dos culpados, executar uma pena com base na responsabilidade
criminal e se passa a levar em conta a reincidência.
Entretanto,
a forma de pensar o processo penal e, ainda, pragmaticamente, a forma como os
sujeitos processuais devem se portar no processo penal sofreu forte alteração
após a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292 e, posteriormente, os
indeferimentos das liminares nas ADCs 43 e 44, bem assim a decisão em
repercussão geral do ARE 964.246, em que se passou a admitir a execução
provisória (rectius: imediata) da pena após a condenação em 2º grau. Esse fato
mudou significativamente as estratégias do jogo que as partes no processo devem
traçar, em razão de o posicionamento estar sendo adotado pelos juízes de 1º e
2º instância e pelo Superior Tribunal de Justiça, mesmo tendo sido tomada sem
seguir os protocolos esperados de uma decisão a que se emprestou repercussão
geral, ou seja, sem o necessário debate no plenário físico do STF, como bem se
pronunciou o ministro Marco Aurélio Melo2, e sem a oportunidade de participação
plural da sociedade e das outras instituições do sistema de Justiça.
Importante
registrar que a execução antecipada ou provisória da pena, quando ainda está em
trâmite recursos sem efeito suspensivo perante a segunda instância (por
exemplo, embargos de declaração) ou recursos extravagantes perante os tribunais
superiores, atenta contra a sistemática, a literalidade e a escolha do
constituinte de um devido processo democrático constitucional, cujos meios
inerentes ao contraditório e ampla defesa incluíram o acesso ao debate perante
o STF e STJ e o aguardo de seus julgamentos como condição de aperfeiçoamento e
reconhecimento da culpa, pressuposto da pena.
Diante
da possibilidade de prisão após a condenação na 2ª instância, é necessário que
o jogador se adapte às novas regras deste jogo dinâmico de informações
incompletas e interprete os novos lances a partir das novas ações dos demais
jogadores3. Parte dessas estratégias deve ser construída a partir da análise
dos fundamentos da decisão do ARE 964.246, cuja relatoria, assim como do Habeas
Corpus 126.292, coube ao ministro Teori Zavascki. Em seu voto, o relator
consignou que, após o julgamento de 2° grau, “fica definitivamente exaurido o
exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da
responsabilidade penal do acusado”.
O
falecido ministro entendia, e ainda resta fixado esse entendimento, pois não
ultrapassado, que é “no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a
possibilidade de exame de fatos e provas e [que] os recursos de natureza
extraordinária não (...) se prestam ao debate da matéria fático-probatória,
[pois] ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. O
relator prossegue a análise da delimitação dos recursos para o STJ e o STF,
estabelecendo que seu conteúdo de cognição está restrito ao que denominou de
matéria de direito”.
Finaliza
Teori concluindo que, se são os “fatos e provas insuscetíveis de reexame pela
instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e
até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção
de inocência”, o que leva à possibilidade de se efetivar o decreto prisional
com fundamento na culpa do condenado reconhecida na sentença condenatória ainda
pendente de julgamento eventual recurso sem efeito suspensivo na própria 2ª
instância ou, ainda, nos tribunais superiores.
Com
efeito, inúmeros recursos especiais direcionados ao Superior Tribunal de
Justiça e outros tantos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal não são
conhecidos ou, quando o são, restam completamente inadmitidos sob o argumento
de que é vedado o reexame e a revaloração de provas, repetindo o teor do
disposto na Súmula 7 do STJ e na Súmula 279 do STF.
Curiosamente,
é do próprio relator Teori a afirmação de que é a “estreita via da revisão
criminal” o caminho possível para se desconstituir o decreto condenatório ou
para se rediscutir no âmbito das instâncias ordinárias a matéria
fático-probatória.
Para
o sistema recursal brasileiro, agora atualizado pela citada decisão em
repercussão geral no ARE 964.246 e de resto por sua jurisprudência sumulada,
após as instâncias ordinárias as questões atinentes às provas e aos fatos não
podem ser mais discutidos, apenas através de revisão criminal que logre
infirmar o que está delineado, mas com base nos requisitos específicos da
referida ação de impugnação autônoma.
Essa
questão era um problema, mas não tanto, porque o condenado, que não poderia
rediscutir as questões fático-probatórias antes do trânsito em julgado dos
recursos extravagantes, também não sofria o efeito direto da condenação
provisória — a prisão pena — , podendo aguardar o julgamento final dos recursos
perante os tribunas superiores para, então, rediscutir essas questões.
Entretanto,
após a decisão do STF, essa situação se inverteu. Agora, o acusado já não
consegue aguardar o momento do julgamento final dos recursos especial e
extraordinário, haja vista que pode ser surpreendido, como o é, com a prisão
decorrente da sentença condenatória em 2º grau, mesmo que esta não tenha
transitado em julgado, mas desde que não caibam mais recursos com efeito
suspensivo. Foi o caso do ex-presidente Lula, que, não obstante ainda estivesse
pendente de julgamento embargos declaratórios perante a própria 2ª instância,
foi preso por meio da execução provisória de sua pena.
Segundo
o voto do ministro Barroso no ARE 964.246, a efetivação da execução provisória
da pena significa a consecução de uma tutela eficiente dos bens jurídicos, e
que esse “sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade (...) é
superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da
Justiça”.
Ora,
ensina o eminente professor português Manuel da Costa Andrade que o sistema
penal protege bens jurídicos quando incrimina condutas, mas também protege
quando não as incrimina4. Corolário dessa reflexão é que a proteção penal
eficiente se realiza quando houver a condenação penal necessária e a execução
da correspondente pena, mas também se realiza essa proteção eficiente do
sistema penal quando, uma vez iniciado o cumprimento da prisão do condenado com
base nesta culpa atestada provisoriamente, puder ser afastada a prisão ilegal
através dos mecanismos penais colocados à disposição pelo ordenamento jurídico.
Ora, a confiabilidade no sistema decorre não apenas de o quanto ele pode punir
ou garantir a punição, mas o quanto ele não irá punir errônea, desnecessária ou
excessivamente5.
Sendo
sacrificado o princípio da não culpabilidade, ou seja, admitindo-se uma culpa
provisória e sendo instrumentalizado o sistema penal com a possibilidade de
cumpri-la com a imposição da prisão antecipada do condenado como forma de
garantir proteção eficiente à sociedade, ipso juri, essa mesma admissão abre
espaço para o manejo de instrumentos que possam afastar a culpa provisória e a
execução da pena na hipótese de ilegalidade, no caso, por meio da revisão criminal.
A
não admissão do manejo da revisão criminal se constituiria uma contradição em
termos na interpretação do STF e, especificamente, no entendimento esgrimido
pelo ministro Barroso, para quem a relativização da presunção da inocência e a
decorrente execução provisória da sentença seriam necessárias para afastar uma
proteção deficiente a bens jurídicos constitucionais tutelados pelo Direito
Penal, mas que, ao mesmo tempo e diametralmente, geraria uma proteção
deficiente do direito individual fundamental de submeter ao Poder Judiciário a
apreciação de lesão ou ameaça a direito.
Ora,
em sendo a presunção de inocência e a necessidade de haver trânsito em julgado
uma garantia individual do cidadão contra o Estado punitivo, a relativização
dessa garantia para permitir a prisão provisória da pena, pelos mesmo motivos e
razões, deve ter seus fundamentos utilizados para garantir a proteção do
indivíduo quando essa relativização lhe promova algum ferimento de direitos.
Não
sendo possível ao condenado (provisório) levar questões de fatos e de provas ao
STJ ou ao STF e, mesmo assim, já estar submetido ao efeito mais deletérios da
condenação, que é o próprio cumprimento da sentença condenatória, deve se valer
das mesmas razões para proteger-se, admitindo que as questões que supostamente
já transitaram em julgado, e que não podem ser objeto de debate nos recursos
extravagantes, possam ser rediscutidas mediante revisão criminal.
Senão,
vejamos: (i) os tribunais superiores não admitem os recursos extravagantes para
discutir a questão fático-probatória colocada; (ii) não se vislumbra possível
requerer liminar ao STF e STJ em sede de recurso extravagante que não debaterá
o conteúdo que formará um futuro pedido de revisão; (iii) os tribunais
superiores não admitem o manejo do Habeas Corpus para reexame de fatos e
provas; e (iv) eventual HC seria manejado de forma preventiva à futura revisão
criminal. Nenhuma dessas soluções parece consentânea com as melhores técnicas
processuais ou com a salvaguarda dos direitos fundamentais de que a liberdade
é, junto à vida, o grande bem jurídico tutelado.
Conclui-se,
portanto, que o manejo da revisão criminal nessa hipótese é o único remédio
possível, devendo ser utilizado nos casos de processos findos (artigo 621,
caput) quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei
penal ou à evidência dos autos ou se fundar em depoimentos, exames ou
documentos comprovadamente falsos, ou, ainda, quando, após a sentença, se
descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que
determine ou autorize diminuição especial da pena.
Ensina
Aury Lopes Jr. que a presunção de inocência traz como consequência deveres
processuais que vão desde a proteção à imagem ou privacidade do acusado,
passando pela excepcionalidade da prisão durante o processo6 e se plasmando no
Princípio do Favor Rei, que assegura a proeminência da tese do
acusado/condenado no empate de votações e no caso de existência de dúvida, no
manejo de instrumentos processuais exclusivos e na interpretação mais benéfica
da lei. Na presente hipótese estudada, o Favor Rei opera no sentido de se dar à
expressão processo findo o sentido conferido pela razão de decidir do ARE
964.246, ou seja, se relaciona às questões já alcançadas pela preclusão.
É
inafastável, assim, se reconhecer que os processos já se encontram findos em
relação aos fatos e provas que não podem ser debatidas ou reexaminadas na 2ª
instância ou nas instâncias superiores, reconhecendo-se o cabimento da revisão
criminal. Aliás, certamente a mutação constitucional argumentada pelo ministro
Barroso também abarca essa situação, como decorrência da segurança jurídica e
da efetividade do sistema penal.
Pois
bem, mas o que tem a ver o ex-presidente Lula com a questão da revisão
criminal?
No
último dia 16 de abril, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST) e da Frente Povo Sem Medo ocuparam o tríplex em Guarujá atribuído pelo
Ministério Público Federal — e reconhecido na sentença do juiz Sérgio Moro e no
acórdão da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região — ao
ex-presidente Lula.
O
ex-presidente foi condenado na operação "lava jato" por supostamente
ter recebido o tríplex como pagamento de propina e o ocultado de seu
patrimônio, configurando o crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro,
tendo posteriormente o TRF-4 conformado a condenação e determinado a execução
provisória da pena, ainda sem trânsito em julgado do acordão condenatório e
pendente de julgamento embargos de declaração manejado pela defesa, em consonância
com a Súmula 122 do referido tribunal na esteira do ARE 964.246.
Na
sobredita invasão, o MTST fez filmagens e fotos7 que, pelo menos em uma análise
superficial, mas logicamente a depender de uma perícia para melhor
fundamentação, contrariam as informações e as razões de decisão do juízo da 13ª
Vara Criminal Federal de Curitiba de que houvesse sido feita uma reforma de
mais de R$ 1 milhão8 naquela unidade habitacional, inclusive, relatam os
invasores, ou pessoas que os ouviram, a completa inexistência de instalação de
elevador privativo.
A
sentença de Curitiba se refere à reforma do apartamento e à instalação em
vários trechos, tanto na fundamentação quanto no dispositivo da sentença, por
exemplo:
381.
Os custos da reforma atingiram R$ 1.104.702,00 e incluíram a instalação de
elevador privativo no apartamento triplex, cozinhas, armários, readequação de
dormitórios, retirada da sauna, ampliação do deck da piscina e até compra de
eletrodomésticos.
386.
Também ali encontram-se planta para reforço metálico do térreo do apartamento
triplex, cobertura, no Edifício Mar Cantábrico, a Nota Fiscal 8542 emitida, em
15/09/2014, pela GMV Latino America Elevadores contra a Tallento, no valor de
R$ 798,00, relativamente à venda de óleo para elevador, a Nota Fiscal 8545,
emitida, em 16/09/2014, pela GMV Latino America Elevadores contra a Tallento,
no valor de R$ 47.702,00, relativamente à venda de elevador, a Nota Fiscal 103,
emitida, em 20/10/2014, pela TNG Elevadores contra a Tallento, no valor de R$
21.200,00, relativamente a serviços de instalação de elevador, com três
paradas, na "obra solaris, Guarujá". Esses serviços e obras
contratadas pela Tallento foram incluídos nos preços cobrados desta para a OAS
Empreendimentos.
900.
Mesmo considerando a definição final do acerto de corrupção em junho de 2014,
prosseguiram as condutas de ocultação e dissimulação, inclusive com as reformas
até o final de 2014, pelo menos, ou mais propriamente até a presente data.
Em
uma análise perfunctória da questão, e para demonstrar academicamente a
viabilidade da hipótese aqui estudada, qual seja, quando do “trânsito em
julgado” dos fatos e provas que não podem ser reexaminados nos recursos
extravagantes e diante da prisão decorrente da execução provisória da pena, as
imagens feitas pelo MTST podem servir à defesa do ex-presidente como fundamento
para requerer a revisão criminal, seja porque a sentença condenatória teria se
fundado em depoimentos, exames ou documentos que se revelassem falsos, seja
porque fora descobertas, após a sentença, novas provas de inocência do
condenado, atendendo-se assim aos requisitos legais da ação.
Eventual
revisão criminal manejada pela defesa de Lula teria trâmite no TRF-4 e seria
distribuído a um relator que não tenha pronunciado decisão em qualquer fase do
processo a ser revisado. É possível, ainda, ao relator da revisão conceder
liminarmente ordem de soltura de Lula, a requerimento da defesa — com aplicação
analógica do Código de Processo Civil no tocante à medida de urgência ou,
ainda, a concessão de ofício da ordem de Habeas Corpus (STF - RvC 5.438 RS).
Conforme
exposto, somente a revisão criminal pode resolver a problemática da preservação
da garantia individual de apreciação pelo Poder Judiciário da lesão ou ameaça
de lesão à liberdade, consubstanciada na necessidade de rediscussão acerca de
fatos e provas, quando ainda pendentes recursos perante os tribunais
superiores, sem abrir mão do direito de acesso a estes, fundamentada nas mesmas
razões de decidir que acolheram a execução provisória da pena.
Por
fim, na mesma linha da alegada mutação constitucional referida pelo ministro
Barroso que fundamentou uma interpretação conforme a Constituição ao artigo 283
do CPP, deve-se também aplicar uma interpretação conforme a Constituição ao
artigo 621, CPP, de forma que a expressão processo findo se identifique com os
capítulos da sentença condenatória em relação aos quais já se operou a
preclusão, excluindo-se a possibilidade de que o texto do dispositivo seja
interpretado no sentido de obstar a revisão criminal da sentença condenatória
cujo cumprimento de pena já se tenha iniciado ou esteja da iminência de sê-lo.
Onde
há a mesma razão, mesma deve ser a disposição.
1
A exemplo do precursor artigo 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, do artigo 11.1 da Declaração Universal de Direitos Humanos
de 1948, do artigo 8º, parágrafo 2º da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos - Pacto de San José da Costa Rica.
2
ARE 964.246
3
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short
introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
4
ANDRADE, Costa. Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal: Uma
perspectiva jurídico-criminal, Coimbra: Coimbra,1996, p. 31.
5
ROCHA, J. BHERON ; CARLOS, Taís Correia. O STF e a execução provisória da pena
após sentença condenatória em segunda instância: o caráter solipsista da
decisão em confronto com o princípio do acesso à Justiça. In Sistemas de
justiça constitucional [Recurso eletrônico on-line] organização Rede para o
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano Brasil. José Ribas Vieira et
ali (coor.). Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. P 516/534.
6
LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 2, p. 47-48.
7
Algumas podem ser vistas em
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-mtst-escancarou-a-fraude-do-jornal-nacional-e-suas-imagens-exclusivas-do-triplex-por-kiko-nogueira
8
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-as-imagens-do-triplex-vistas-por-outros-angulos-desmontam-a-farsa
Jorge Bheron
Rocha é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo
Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.
https://www.conjur.com.br/2018-abr-23/bheron-rocha-lula-solto-liminar-revisao-criminal2
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