Atualmente
são desenhadas relações de poder que nos apontam para determinada verdade e que
se constituem não pela força, mas pela inscrição de uma espécie de “caligrafia
de morte” nos nossos corpos. Sob uma ordem do discurso, o silêncio rasga nossas
vozes num gesto abrupto onde a palavra é desarticulada até se transformar em
grito silencioso. Complexa, a realidade é um infinito jogo de relações de
poder.
É
no interior desse jogo que os indivíduos se reconhecem. Indivíduos que são
colocados numa rede de práticas que evidenciam a relação e o envolvimento entre
os corpos que agem, a produção de identidades e a linguagem. Isso, em outras
palavras, significa dizer que os seres humanos ao falarem, o fazem sempre
apoiados em algo que já está presente em seus corpos antes da fala.
Cada
discurso ambiciona um corpo. Corpo que acolhe os usos, os costumes, a memória,
a cultura e todos os outros códigos que permitem ao indivíduo reconhecer-se num
outro. Discursos que pretendem fazer dos corpos um alfabeto dócil, que buscam
marcar uma circunscrição territorial da palavra, onde as regras narrativas
vinculam-se a si próprias como matrizes de legitimação, constituindo, assim,
algo como uma forma narcísica. Essa composição discursiva entalha-se nos corpos
sem qualquer possibilidade de interpretação.
Fechado
em si mesmo, esse discurso nada oferece e tais questões confrontam-se
diretamente com o problema pensado pelo filósofo francês Michel Foucault acerca
da relação entre o saber e o poder. “Não é verdade que o conhecimento possa
funcionar ou que se possa descobrir a verdade, a realidade, a objetividade das
coisas, sem colocar em jogo um certo poder, certa forma de dominação, certa
forma de submissão. Conhecer e dominar, saber e comandar, são coisas que estão
intimamente ligadas”, dizia.
A
partir de uma ligação íntima, esses regimes de poder desenvolvem formas de
organização do espaço que se definem sob uma vontade de disciplinar e
normalizar as relações entre os indivíduos. Ligado a uma noção de
governamentalidade onde se desenham certas figuras de espacialização do poder,
o processo de disciplinarização e normalização dos indivíduos realiza-se
através de meticulosos processos de vigilância e controle sobre o corpo
individual. Procura-se criar com isso, sob um mecanismo infinitesimal e microfísico,
corpos dóceis.
Ora,
nesse tecido de relações, o próprio corpo é um elemento fundamental, uma vez
que a articulação entre o saber e o poder se define pela tecnologia política
que, voltada aos corpos, torna-se “efeito-objeto” de um processo de racionalização
instrumental. O corpo humano, nesses termos, existe no interior, através e para
um sistema político.
Intrinsecamente
articulada com certa ordem do discurso, a organização dos espaços se configuram
apenas como possibilidade de dominar os corpos através de uma esquadria dos
gestos e dos movimentos dos indivíduos. Se no século XVII o corpo do rei
constituía o núcleo de um sistema político onde a presença física do soberano,
necessária ao funcionamento da monarquia, possuía em si mesma uma realidade
política, no século XVIII o poder foi além; foi exposto ao corpo, penetrando
nele. Isso supõe a coexistência quase paradoxal entre, por um lado, o processo
que neste século se inicia de libertação política dos indivíduos e das
sociedades e, por outro, um processo de esquadrinhamento disciplinar dos
corpos.
A
ideia de um corpo social, constituído pela universalidade das vontades, surge
como um fantasma que atravessa o sistema político do século XIX. Segundo
Foucault, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade
de certo poder exercendo-se sobre os corpos individuais. Ora, criando uma forma
biopolítica de poder, a modernidade implementa um complexo processo de
localização espacial da ordem do discurso; ordem que, mais uma vez, se concretiza
nos corpos: “nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal do que o
exercício do poder. Do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o
investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante,
meticuloso”, dizia Foucault.
A
íntima articulação entre os mecanismos do saber e do poder dá origem a uma soma
de sofrimentos e revoltas inaudíveis. A forma “grito” é tornada inacessível
precisamente pelo filtro do saber instituído. No interior das instituições que
definem a loucura, por exemplo, a ordem do discurso cria formas de sofrimento
que rasgam, nos corpos insubmissos, a legitimidade da palavra ou do grito. No
asilo, por sua vez, desenvolvem-se dispositivos através dos quais a palavra é
desarticulada até não poder transformar-se em grito. O indizível, por fim, se
enraíza no corpo, e um silêncio sem sombra se faz matéria.
É
preciso que as vozes de um número incalculável de sujeitos falantes ecoem e se
faça falar uma inumerável experiência. Não é desejável que o sujeito falante
seja sempre o mesmo. É preciso fazer falar todas as espécies de experiências,
dar ouvidos aos excluídos, aos moribundos, pois são eles que efetivamente
enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas. A tarefa da
contemporaneidade é dar ouvidos a todas as vozes.
No Pragmatismo
Político
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