Reflexões
sobre o pronunciamento de Luiz Inácio Lula da Silva pouco antes de se
apresentar à PF
Lula
fala ao povo reunido no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no dia de sua prisão
Dos discursos e seus
ecos
Seja
pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por
instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas
para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História
como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.
Num
amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica,
como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner
Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na
ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e
as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis
somente para o trabalho braçal.
Menção
obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela
(“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos
poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que
mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther
King (“Eu tenho um sonho”).
O
celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da
carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento
discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio
presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto
de 1954.
Com
a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido
anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo
significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então
ameaçada, de estadista.
Na
atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma
Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido
necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para
sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo
que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de
que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade
para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar
sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma
história que se encerraria de maneira infausta para ela.
“A
partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”
Eis
que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade
inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus
ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.
Reafirmando
que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de
sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a
Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos
pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo
desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!
Mas
o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do
Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há
que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um
rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula
provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários
rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também
sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela,
e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma
Rousseff.
O
pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio.
Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda
a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da
filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso
X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer
parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o
movimento do mundo.
A
psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural
é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e
definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas,
estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são
passíveis de transformações e têm funções.
Pode-se
insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um
movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa
disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara
dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a
sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos
para a edificação de um outro país.
Num
mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era”
para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa
equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora
minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”
Vindo
de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro
político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o
pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a
construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!
#LulaLivre
Por Rosane
Borges***, especial para os Jornalistas Livres
***Rosane
Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos
livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo”
(2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).
https://jornalistaslivres.org/2018/04/lula-o-discurso-e-a-historia/
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