domingo, 11 de março de 2018

PRIMEIRO A SENTENÇA, DEPOIS O JULGAMENTO. Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato


O estado de exceção no Brasil não precisa mais de disfarce. A reversão da democracia em nome de uma plutocracia do setor financeiro, respaldada pelo Judiciário com apoio irresponsável da imprensa/empresa, consagrou o veto ao princípio expresso no primeiro artigo da Constituição Federal. O poder não emana mais do povo, mas contra ele.

As decisões judiciais – a negação do habeas corpus preventivo de Lula pelo STJ é apenas a mais recente – vêm escrevendo uma história que é contada de trás para frente. Historicamente, para retirar do povo o poder de decidir sobre seu destino, se lançava mão dos instrumentos que o andar de cima sempre teve de se autoperpetuar, da força da grana à força pura e simples.

A perda, ainda que tímida, do protagonismo conservador histórico na sociedade brasileira, que começa com os recentes governos populares do PT, reacendeu os instintos autoritários e antidemocráticos da elite. Como o comando do sistema político eleitoral foi perdido, e a expressão das urnas começou a se aproximar da maioria da sociedade, deixou de ser viável apostar nas eleições ou no desgaste no campo do parlamento. Foi preciso mudar as regras do jogo. Ou virar o tabuleiro.

O Judiciário brasileiro e todo o sistema de Justiça se tornou o novo instrumento de reconquista e manutenção de poder. Começou tentando inviabilizar as administrações populares, com foco no desgaste da esquerda. No estágio seguinte, avançou contra a legitimidade do resultado das urnas, ancorando ambições golpistas com a capa da institucionalidade vicária. Algo como um Estado não democrático de direito. Por fim, jogou até mesmo o direito no lixo. O Estado de exceção não é nem democrático nem de direito. O conceito de ditadura judicial não é de todo equivocado.

No entanto é preciso ficar atento para uma operação simbólica que parece anestesiar parte da cidadania brasileira, que ainda espera algum grau de racionalidade da Justiça. Especula-se sempre sobre as novas etapas, confia-se numa iluminação súbita do Supremo, acredita-se, como cantou Caetano Veloso, “que o império da lei a de chegar ao coração do Pará”. Não vai. Pelo menos por conta própria.

O STF é apenas a consagração de uma história que mescla o vezo bacharelesco e antipopular com a plasticidade em torno dos projetos hegemônicos de poder. Não houve episódio ditatorial no país sem, no mínimo, a conivência dos tribunais. O papel da Justiça não pode ser legitimar o arbítrio, sob qualquer argumento. Há momentos em que romper é condição de progresso. Quem respeita a tirania, decai.

As manifestações recentes das instâncias colegiadas, de segundo e terceiro graus, combinando resultados de sentenças até a exatidão dos dias de pena, presidindo tribunais de exceção, trancando a pauta para impedir o julgamento de questões essenciais para a vida institucional brasileira, tudo isso reitera o papel conjuntural de uma instância que deveria ser estruturante.

A sedução pela celebridade, os excessos verbais e a defesa de privilégios são outras características que permeiam a vida pública da Justiça brasileira. Afastada dos interesses do país, sem sensibilidade para a vida das pessoas comuns, com sede absoluta de protagonismo em questões que não lhe dizem respeito, o Judiciário brasileiro é hoje um poder contra a nação.

A crônica antecipada da retomada do poder por uma fração de classe, com o impeachment da presidenta eleita legitimamente, a condenação da principal liderança popular do país, a tentativa de inviabilização de sua candidatura e a caução de medidas despóticas em todos os setores, criou uma realidade distópica e surreal.

A situação do Brasil, com seus tribunais cheios de mesuras procedimentais, lembra uma passagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Célebre por inverter a lógica e afirmar o absurdo, a personagem da Rainha ordena: “Primeiro a sentença, depois o julgamento”. Nada mais próximo das decisões dos rábulas brasileiros. A sentença, todos sabem, está dada pelos donos do poder. Cabe apenas chamar ao palco a farsa do julgamento. E contar com o eco da mídia.

Resta voltar à Constituição, o mais radicalmente possível, em sua primeira página e inspiração. Todo poder ao povo. Não como dádiva, nem como crença. Mas virando a mesa. Enquanto houver mesa.






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