O
estado de exceção no Brasil não precisa mais de disfarce. A reversão da democracia
em nome de uma plutocracia do setor financeiro, respaldada pelo Judiciário com
apoio irresponsável da imprensa/empresa, consagrou o veto ao princípio expresso
no primeiro artigo da Constituição Federal. O poder não emana mais do povo, mas
contra ele.
As
decisões judiciais – a negação do habeas corpus preventivo de Lula pelo STJ é
apenas a mais recente – vêm escrevendo uma história que é contada de trás para
frente. Historicamente, para retirar do povo o poder de decidir sobre seu
destino, se lançava mão dos instrumentos que o andar de cima sempre teve de se
autoperpetuar, da força da grana à força pura e simples.
A
perda, ainda que tímida, do protagonismo conservador histórico na sociedade
brasileira, que começa com os recentes governos populares do PT, reacendeu os
instintos autoritários e antidemocráticos da elite. Como o comando do sistema
político eleitoral foi perdido, e a expressão das urnas começou a se aproximar
da maioria da sociedade, deixou de ser viável apostar nas eleições ou no desgaste
no campo do parlamento. Foi preciso mudar as regras do jogo. Ou virar o
tabuleiro.
O
Judiciário brasileiro e todo o sistema de Justiça se tornou o novo instrumento
de reconquista e manutenção de poder. Começou tentando inviabilizar as
administrações populares, com foco no desgaste da esquerda. No estágio
seguinte, avançou contra a legitimidade do resultado das urnas, ancorando
ambições golpistas com a capa da institucionalidade vicária. Algo como um
Estado não democrático de direito. Por fim, jogou até mesmo o direito no lixo.
O Estado de exceção não é nem democrático nem de direito. O conceito de
ditadura judicial não é de todo equivocado.
No
entanto é preciso ficar atento para uma operação simbólica que parece
anestesiar parte da cidadania brasileira, que ainda espera algum grau de
racionalidade da Justiça. Especula-se sempre sobre as novas etapas, confia-se
numa iluminação súbita do Supremo, acredita-se, como cantou Caetano Veloso,
“que o império da lei a de chegar ao coração do Pará”. Não vai. Pelo menos por
conta própria.
O
STF é apenas a consagração de uma história que mescla o vezo bacharelesco e
antipopular com a plasticidade em torno dos projetos hegemônicos de poder. Não
houve episódio ditatorial no país sem, no mínimo, a conivência dos tribunais. O
papel da Justiça não pode ser legitimar o arbítrio, sob qualquer argumento. Há
momentos em que romper é condição de progresso. Quem respeita a tirania, decai.
As
manifestações recentes das instâncias colegiadas, de segundo e terceiro graus,
combinando resultados de sentenças até a exatidão dos dias de pena, presidindo
tribunais de exceção, trancando a pauta para impedir o julgamento de questões
essenciais para a vida institucional brasileira, tudo isso reitera o papel
conjuntural de uma instância que deveria ser estruturante.
A
sedução pela celebridade, os excessos verbais e a defesa de privilégios são
outras características que permeiam a vida pública da Justiça brasileira.
Afastada dos interesses do país, sem sensibilidade para a vida das pessoas
comuns, com sede absoluta de protagonismo em questões que não lhe dizem
respeito, o Judiciário brasileiro é hoje um poder contra a nação.
A
crônica antecipada da retomada do poder por uma fração de classe, com o
impeachment da presidenta eleita legitimamente, a condenação da principal
liderança popular do país, a tentativa de inviabilização de sua candidatura e a
caução de medidas despóticas em todos os setores, criou uma realidade distópica
e surreal.
A
situação do Brasil, com seus tribunais cheios de mesuras procedimentais, lembra
uma passagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Célebre por
inverter a lógica e afirmar o absurdo, a personagem da Rainha ordena: “Primeiro
a sentença, depois o julgamento”. Nada mais próximo das decisões dos rábulas
brasileiros. A sentença, todos sabem, está dada pelos donos do poder. Cabe
apenas chamar ao palco a farsa do julgamento. E contar com o eco da mídia.
Resta
voltar à Constituição, o mais radicalmente possível, em sua primeira página e
inspiração. Todo poder ao povo. Não como dádiva, nem como crença. Mas virando a
mesa. Enquanto houver mesa.
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