Este
artigo é o resumo parcial de um fio condutor que percorre meu último livro, lançado
em setembro pela editora Leya com o título A elite do atraso: da escravidão à
Lava Jato. Na publicação, busco enfrentar o desafio ambicioso de formular uma
gênese histórica alternativa à narrativa hoje dominante, seja na direita, seja
na esquerda do espectro político, da sociedade brasileira contemporânea. Como
já defendi em outras obras,1 minha tese é a de que o liberalismo conservador é
a narrativa oficial do Brasil moderno, inclusive para a esquerda colonizada
intelectualmente pela direita. Os pais fundadores dessa leitura são Sérgio
Buarque e Raymundo Faoro. A partir da entronização desses autores como
referência universitária para a formação de todas as elites e, como
consequência dessa consagração, também de tudo que a grande imprensa diz sobre
o país, passa a existir um grande consenso inarticulado e pré-reflexivo que
contamina praticamente tudo que se formule sobre o país no nível mais explícito
dos argumentos.
É
necessário quebrar a hegemonia dessas ideias arcaicas e conservadoras para que
a teoria e a prática política brasileira possam mudar de modo efetivo. A
histeria acerca da corrupção política, por exemplo, identificada pela população
e pela imprensa como o maior problema nacional, advém do domínio dessas ideias.
A identificação de uma suposta elite todo-poderosa no Estado, e não no mercado,
suprema tolice que possibilita a virtual invisibilidade da ação predatória dos
oligopólios e da intermediação financeira, também é fruto dessa hegemonia. De
resto, toda a cantilena da corrupção como herança cultural portuguesa, do
advento de um patrimonialismo pré-moderno cujo racismo implícito já critiquei,2
serve para que supostas “heranças culturais” pensadas como “heranças de sangue”
fiquem no lugar de uma análise científica dos conflitos sociais e da gênese da
desigualdade social. A tese dominante do patrimonialismo, como leitura
hegemônica sobre a sociedade brasileira, foi a responsável por tomar a
corrupção política como aspecto central e a desigualdade social como questão
secundária. É essa inversão absurda de perspectiva e de prioridade que o livro
pretende corrigir.
Essa
tese do patrimonialismo ocupa o lugar da centralidade da escravidão entre nós e
representa uma estratégia de tornar invisível a própria herança desta. Embora
no livro eu reconstrua a escravidão e seus efeitos desde o Brasil Colônia, aqui
a limitação de espaço me obriga a inquirir acerca de sua feição mais moderna.
Como se constrói, no século XX, uma sociedade que reproduz todas as iniquidades
do ódio, humilhação e desprezo contra os mais frágeis que caracterizam a
escravidão?
Minha
tese é que isso foi realizado como programa político conduzido conscientemente
pela elite econômica, em primeiro lugar a elite paulistana, como forma de
assegurar para si a condução ideológica da sociedade e limitar a ação política
dos setores populares mesmo em um contexto de sufrágio universal. A astúcia da
elite foi perceber, já no início do século XX, quando uma classe média começa a
despontar de modo incipiente nas grandes cidades brasileiras, que, se os pobres
poderiam ser oprimidos pelo cassetete e pelo fuzil dos policiais, a classe
média exigia uma estratégia alternativa. Ao contrário da violência material,
aplicada indiscriminadamente contra os pobres, contra a classe média a
violência teria de ser “simbólica” para produzir cooptação e “convencimento”.
A
perda do poder político para Getúlio Vargas vai ser o ponto de inflexão dessa
estratégia. Nesse momento, a elite econômica paulistana vai procurar se
utilizar de seu “poder material” para construir as bases do seu “poder
simbólico”. A ideia-guia foi construir uma hegemonia ideológica como forma
tanto de reconquistar o poder político como de limitar o poder dos eventuais
inimigos de classe alçados ao controle do Estado.
A
classe média não é uma classe necessariamente conservadora. Também não é uma
classe homogênea. O Movimento Tenentista, conhecido como o primeiro movimento
político comandado pelos “setores médios” no Brasil, revela bem essas
características. Ainda que tenha sido protagonizado por oficiais militares de
baixa e média patente (daí o nome “tenentismo”) a partir dos anos 1920, o
movimento refletia já a nova sociedade mais urbana e moderna que se criava. A
parte rebelde da instituição militar era uma expressão desses novos anseios.
A
oposição ao pacto conservador da República Velha, com suas eleições fraudadas e
restritas, era o ponto de união entre os tenentistas. Dentro do movimento, no
entanto, conviviam desde as demandas liberais por voto secreto e por maior
liberdade de imprensa até o desejo de um Estado forte como meio de se contrapor
ao mandonismo rural. Parte do grupo se radicalizou politicamente na Coluna
Prestes, cujo líder, Carlos Prestes, seria o fundador do partido comunista
brasileiro. Parte do grupo se alinhou desde a Revolução de 1930 com Getúlio
Vargas, enquanto outra parte exerceu ferrenha oposição a ele todo o tempo. O
nosso primeiro movimento político com claro suporte e apoio da classe média já
mostra a extraordinária multiplicidade de posições políticas que essa classe
pode abrigar.
Quando
Sérgio Buarque elegia o “patrimonialismo” das elites que habitam o Estado como
o grande problema nacional, ele não estava dando vida, portanto, a nenhum
sentimento novo. A “corrupção do Estado” era uma das bandeiras centrais do
tenentismo. Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como
efeito da captura deste pela própria elite econômica que o usa para defender e
aprofundar seus privilégios. Isso teria levado a uma conscientização coletiva dos
desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seus privilégios.
Não
foi essa a interpretação que prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que
havia perdido o poder político, ainda que mantido o econômico, agiu de modo
astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente os sinais do novo tempo.
A truculência do “voto de cabresto” estava com os dias contados. No lugar da
“violência física” deveria entrar a “violência simbólica” como meio de garantir
a sobrevivência e a longevidade dos proprietários e seus privilégios.
Com
o Estado na mão dos inimigos, a elite do dinheiro paulistana descobre a “esfera
pública” como arma. Se não se controla mais a sociedade com a farsa eleitoral
acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle
oligárquico tem de assumir novas vestes para se preservar. O domínio da
“opinião pública” parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.
O que estava em jogo aqui era a captura agora intelectual e simbólica da classe
média letrada pela elite do dinheiro, formando a “aliança de classe dominante”
que marcaria o Brasil daí em diante.
Como
se construiu esse projeto no alvorecer do século XX?
A
USP, a universidade do estado de São Paulo, foi criada por essa mesma elite
desbancada do poder político e pensada como a base simbólica, uma espécie de
think tank gigantesco do liberalismo brasileiro a partir de então, desse
projeto bem urdido de contrapor a força das ideias generalizadas na sociedade
contra o poder estatal, desde que este seja ocupado pelo inimigo político, à
época representado por Getúlio Vargas.
Sérgio
Buarque é menos o criador e mais o sistematizador mais convincente do moralismo
“vira-lata” que irá valer, a partir de então, como versão oficial pseudocrítica
do país acerca de si mesmo. Como o “Estado corrupto” passa a ser identificado
como o mal maior da nação, a elite do dinheiro ganha uma espécie de “carta na
manga” que pode ser usada sempre que a “soberania popular” ponha no governo,
inadvertidamente, alguém contrário aos interesses do poder econômico.
Com
base nesse eixo intelectual eivado de prestígio, essa concepção se torna
dominante no país inteiro. Toda a vida intelectual e letrada vai respirar os
novos ares. Isso não significa obviamente dizer que a USP não tenha produzido
coisa distinta do liberalismo conservador das elites. Florestan Fernandes e sua
atenção aos conflitos sociais realmente fundamentais provam o contrário. Existe
uma tradição nesse sentido também por lá. Mas essa tendência é menos poderosa
que a versão dominante, posto que sem a network com as editoras, as agências de
financiamento, a grande imprensa e seus mecanismos de consagração; além de ela
própria ter assimilado aspectos importantes da tradição conservadora elitista
como a aceitação implícita ou explícita da tese do patrimonialismo.
Desde
essa época o “liberalismo conservador”, baseado no falso moralismo da “higiene
moral” da nação, vai ser a pedra de toque da arregimentação da classe média.
Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também nas outras
classes. Em alguma medida esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média
ele está em “casa”. É que as classes sociais estão sempre disputando não apenas
bens materiais e salários, mas também prestígio e reconhecimento, ou em uma palavra:
legitimação do próprio comportamento e da própria vida.
As
classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural, têm de
justificar, portanto, seus privilégios. O capital econômico se legitima com o
“empreendedorismo” de quem “dá emprego” e ergue impérios, e com o suposto bom
gosto inato de seu estilo de vida, como se a posse do dinheiro fosse mero
detalhe sem importância.
A
legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é
invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde seu trabalho
prévio de “formar vencedores”, ela é a classe por excelência da meritocracia e
da superioridade moral. Estas servem para distingui-la e para justificar seus
privilégios em relação tanto aos pobres como aos ricos. É que, se os pobres são
desprezados, os ricos são invejados. Existe uma ambiguidade nesse sentimento,
em relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento.
A
suposta superioridade moral da classe média dá à sua clientela tudo aquilo que
ela mais deseja: o sentimento de representar o melhor da sociedade. Não só é a
classe que “merece” o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia
da meritocracia propicia, mas também a classe que tem algo que ninguém tem, nem
os ricos, que é a certeza de sua “perfeição moral”.
Como
na imensa maioria dos casos não possui os meios para se envolver nas grandes
negociatas que manipulam milhões, a classe média não tem sequer, na prática, o
dilema moral de se deixar ou não corromper. Como justificação e legitimação da
própria vida, o esquema moralista é, portanto, perfeito. Em relação aos
poderosos, a classe média pode se ver sempre como “virgem imaculada” e
moralmente perfeita.
A
elite do dinheiro soube muito bem aproveitar as necessidades de justificação e
de autojustificação dos setores médios. “Comprou” uma inteligência para
formular uma “teoria liberal moralista” feita com precisão de alfaiate para as
necessidades do público que queria arregimentar e controlar. Esse tipo de
“compra” da elite intelectual pela elite do dinheiro não se dá apenas nem
principalmente com dinheiro. São os “mecanismos de consagração” de um autor e
de uma ideia seguindo, aparentemente, todas as regras específicas do campo
científico.
Mas
a quem pertencem os jornais, as editoras e os bancos e empresas que financiam
os prêmios científicos? Desse modo, sem parecer “compra”, o expediente é muito
mais bem-sucedido. Depois, usou sua posição de proprietária dos meios de
produção material para se apropriar dos meios simbólicos de produção e
reprodução da sociedade. É aqui que entra a relação que existe até hoje entre
imprensa, universidade, editoras e capital econômico.
Todo
o discurso elitista e conservador do liberalismo brasileiro está contido em
duas noções que foram desenvolvidas na USP – a universidade criada pela elite
antiestatal paulistana – e depois ganharam o Brasil: as ideias de
“patrimonialismo” e de “populismo”.
Se
o patrimonialismo torna invisível a base real do poder social ao estigmatizar o
Estado e seus ocupantes sempre que as eleições ponham alguém não palatável pela
elite da rapina econômica na disputa eleitoral, o populismo estigmatiza
qualquer pretensão popular.
A
noção de “populismo”, atrelada a qualquer política de interesse dos mais
pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério
fundamental de qualquer sociedade democrática. Afinal, como os pobres,
coitadinhos, não têm mesmo nenhuma consciência política, a soberania popular e
sua validade podem ser sempre, em graus variados, postas em questão.
O
“voto inconsciente” corromperia a validade do princípio democrático por dentro.
A proliferação dessa ideia na “esfera pública” por meio da sua
“respeitabilidade científica” e depois pelo aparato legitimador midiático, que
o repercute todos os dias de modos variados, é impressionante. Os best-sellers
da ciência política conservadora comprovam a eficácia dessa balela.3
As
noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno
midiático diariamente, são as ideias-guia que permitem à elite arregimentar a
classe média como sua “tropa de choque” sempre que necessário. Elas, afinal,
são as guardiãs da “distância social” em relação aos pobres, que é a pedra de
toque da aliança antipopular construída no Brasil para preservar o privilégio,
acesso aos capitais econômico e cultural, de 20% contra os 80% de excluídos em
alguma medida significativa.
O
segundo ponto da justificação da classe média para baixo, em relação às classes
populares, é o ponto mais interessante e que a transforma definitivamente na
marionete perfeita da elite do dinheiro. A classe média brasileira possui um
ódio e um desprezo pelo “povo” cevados secularmente. Essa é talvez nossa maior
herança intocada da escravidão, nunca verdadeiramente compreendida e criticada
entre nós. Para que se possa odiar o pobre e humilhá-lo, tem-se de construí-lo
como culpado de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e
ameaçador. Se possível, deve-se humilhá-lo, enganá-lo, desumanizá-lo,
maltratá-lo e matá-lo cotidianamente. Era isso que se fazia com o escravo e é
exatamente a mesma coisa que se faz com a “ralé de novos escravos” hoje em dia.
Transformava-se o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema, como “coisa
de preto”, e depois se espantava que o negro não enfrentasse o trabalho
produtivo com a mesma naturalidade que os imigrantes estrangeiros, para quem o
trabalho era símbolo de dignidade. Dificultava-se de todas as formas a formação
da família escrava, e nos espantamos com as famílias desestruturadas dos nossos
excluídos de hoje, mera continuidade de um ativismo perverso para desumanizar
os escravos de ontem e de hoje.
Os
escravos foram sistematicamente enganados, compravam a alforria nas minas e
eram escravizados novamente e vendidos para outras regiões, eram brutalizados,
assassinados covardemente. A matança continua também agora, com os novos
escravos de todas as cores. O Brasil tem mais assassinatos – de pobres – que
qualquer outro país do mundo. São 60 mil pobres assassinados por ano no Brasil.
Existe uma guerra de classes hoje declarada e aberta. Construiu-se toda uma
percepção negativa dos escravos e dos seus descendentes como feios, fedorentos,
incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo de forma irônica, povoando o
cotidiano com ditos e piadas preconceituosas, e hoje muitos se comprazem em ver
a profecia realizada. Não se entende a miséria permanente e secular dos nossos
excluídos sociais sem esse ativismo social e político covarde e perverso de
nossas classes “superiores”.
O
ódio secular às classes populares parece-me a mais brasileira de todas as
nossas singularidades sociais. Como os preconceitos são sociais, e não
individuais, como somos inclinados a pensar, todas as classes superiores no
Brasil partilham desse preconceito. Ainda que, mais uma vez, ele esteja
verdadeiramente “em casa” na classe média. Ainda que a classe média seja muito
heterogênea, toda ela, sem exceção, inclusive o autor que aqui escreve, é
portadora em maior ou menor grau desse tipo de preconceito. De alguma maneira
“nascemos” com ele, o introjetamos e o incorporamos, seja de modo inconsciente
e pré-reflexivo, seja de modo refletido e consciente, como ódio aberto. Mesmo
quem critica os preconceitos os têm dentro de si, como qualquer outra pessoa
criada no mesmo ambiente social. O que nos diferencia é a vigilância em relação
a eles e a tentativa de criticá-los de modo refletido em alguns, e não em
outros. Mas todos nós somos suas vítimas.
*Jessé
Souza é sociólogo e autor, entre outros livros, de A elite do atraso: da
escravidão à Lava Jato (Leya, 2017), lançado em setembro e do qual este artigo
foi extraído.
[Publicado
na edição 122 do Le Monde Diplomatique Brasil – setembro 2017]
https://www.geledes.org.br/o-problema-do-brasil-e-o-odio-ao-pobre/
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