No
início deste ano - em que se comemora os 200 anos do nascimento deste cérebro
prodigioso que foi Karl Marx - poderemos aproveitar os eventos que certamente
ocorrerão ao longo de 2018 para revisitar sua obra, aprofundar o conhecimento
de sua valiosa contribuição teórica e prática ao movimento revolucionário dos
trabalhadores e trabalhadoras do mundo inteiro. E, ao mesmo tempo, poderemos
analisar como a repercussão de suas descobertas científicas - em colaboração
com Friedrich Engels - se estendem até nossos dias.
Nos
primórdios de seu desenvolvimento intelectual, Marx se envolveu com um estudo
acadêmico voltado fundamentalmente para a filosofia, a teologia e o direito,
sendo que em matéria de economia e política ele ainda se revelava um noviço.
Foi neste contexto que ele concluiu sua tese de doutorado na Universidade de
Jena, em abril de 1841, com sua tese sobre as filosofias da natureza em
Demócrito e Epicuro. Mas logo percebeu que suas pretensões de trabalhar nas
lides universitárias haviam sido dificultadas pelo reacionarismo que tomava conta
daquela sociedade.
Um
dos biógrafos de Marx, Francis Wheen, foi virulentamente acusado de fazer não
um trabalho histórico, acadêmico, mas um trabalho com viés jornalístico sobre a
vida do biografado. Esta era uma maneira muito comum, entre a intelectualidade,
de desqualificar uma obra. Crítica essa que ele enfrentou se declarando sim um
jornalista, como era o caso do objeto de seu livro. Neste trabalho, Wheen
defende a tese que escrever para jornais é uma disciplina muito útil, pois ela
força o cidadão a se engajar com o aqui e agora, obrigando a testar suas
teorias contra a realidade da vida, e aplicar sua compreensão da história aos
acontecimentos concretos, tendo de escrever de forma clara para atingir as
consciências das pessoas comuns.
De
fato, como retrata Wheen em seu livro, Marx é muito referenciado como filósofo,
economista, historiador, revolucionário ou sociólogo – e mesmo como matemático
– mas dificilmente é lembrado como jornalista. Diante daquele ambiente de
conservadorismo dominante, ele resolveu escrever seu primeiro artigo para a
imprensa alemã em fevereiro de 1842, para um jornal de Dresden, o Deutsche
Jahrbücher.
O
tema do artigo era sobre a questão da censura à imprensa, polemizando
fortemente contra as instruções normativas de restrição à liberdade de imprensa
assinadas pelo Rei Frederico Guilherme IV. Seu artigo foi prontamente censurado
e o jornal fechado logo em seguida por um decreto do Parlamento Federal. Marx,
então, foi tentar a sorte como colaborador de um jornal chamado Gazeta Renana.
Inclusive, neste primeiro de janeiro de 2018, lembramos sua criação em 1842, na
cidade de Colônia, por iniciativa de setores da burguesia da Renânia. Este
jornal se propunha lutar contra o Governo monárquico de Frederico Guilherme IV
que assumira o trono prussiano em 1840, capitaneando aquela onda conservadora
que atingia todos os setores da Prússia naquela época.
Em
um artigo para esta Gazeta Renana, Marx escreveu em 1842 que “desde que a
verdadeira filosofia tornou-se a quintessência de seu tempo, o tempo deverá
chegar em que a filosofia não apenas internamente por seu conteúdo, mas também
externamente por sua forma, deverá entrar em contato e interagir com o mundo
real do dia a dia”. Esta reorientação de seu trabalho exigiria um grande
esforço de autoeducação de sua parte.
O
próprio Marx chegou a admitir, anos depois, que “como editor da Gazeta Renana
experimentei pela primeira vez o embaraço de participar de discussões sobre os
então chamados interesses materiais” como está registrado em um livro editado
por James Ledbetter intitulado “Karl Marx e seus artigos para o jornal New York
Daily Tribune”.
Um
dos artigos mais famosos deste período e que bem espelha essas suas
preocupações foi uma longa reportagem que escreveu para a Gazeta, em que procurava
desvendar o que estava por trás de uma nova lei que tratava dos “roubos” de
lenha em florestas privadas na Renânia. Uma antiga tradição camponesa permitia
que os moradores das redondezas apanhassem galhos e gravetos para o aquecimento
de suas lareiras e fogões. Com a nova lei, todos os que fossem pegos catando
madeira nas florestas estavam condenados a ser presos. Pior ainda, aqueles que
fossem pegos cometendo esse “crime”, teriam que pagar pela lenha coletada aos
proprietários das florestas. Aliás, quem assistiu ao filme que está em cartaz
atualmente sobre a vida do jovem Marx vai lembrar destes fatos que aparecem
logo nas primeiras imagens da película.
Ao
elaborar esta reportagem, Marx foi obrigado a pesquisar profundamente sobre
aquela situação concreta de exploração dos camponeses pelos ricos proprietários
de terras. Assim, talvez pela primeira vez em sua trajetória, ele teve de
estudar questões de classe, propriedade privada e o papel do Estado.
Em
seu último artigo para a Gazeta Renana, Marx escreve que “se toda a violação de
propriedade, de forma indiferenciada, sem determinação mais precisa, é roubo,
toda a propriedade privada não seria roubo? Não excluo, por minha propriedade
privada, qualquer terceiro dessa propriedade? (…) Nós pessoas pouco práticas,
exigimos para a multidão pobre e despossuída política e socialmente o que esses
lacaios obedientes e dóceis que são esses pretensos historiadores apresentaram
como a verdadeira pedra filosofal a fim de transformar qualquer medida impura
em ouro jurídico puro. Reivindicamos para os pobres o direito consuetudinário
e, mais precisamente, um direito consuetudinário que não seja local, mas um
direito consuetudinário que seja o direito consuetudinário dos pobres em todos
os países. Vamos ainda mais longe e afirmamos que, segundo sua natureza, o
direito consuetudinário só pode ser o direito dessa massa despossuída, a mais
baixa e elementar. (…) Um senso instintivo do direito afirma-se, portanto,
nesses costumes da classe pobre; sua raiz é positiva e legítima, e a forma do
direito consuetudinário é aqui tanto mais conforme à natureza quanto a própria
existência da classe pobre continua sendo até hoje um simples costume da
sociedade burguesa, classe que ainda não encontrou, no círculo da organização
consciente do Estado, um lugar apropriado. (…) A crueldade é típica das leis
que ditam a covardia, porque a covardia só pode ser enérgica na medida em que é
cruel. Ora, o interesse privado é sempre covarde, porque seu coração e sua alma
são objetos externos, que sempre podem ser arrancados e avariados, e quem não
tremeria diante do perigo de perder seu coração e sua alma? Como legislador
egoísta seria humano, se o inumano, um ser material estranho, é seu ser
supremo? (…) Esse materialismo depravado, esse pecado contra o espírito santo
dos povos e da humanidade é consequência imediata da doutrina pregada pela
Preussische Staatszeitung (uma espécie de Diário Oficial do Estado prussiano
N.A.) ao legislador, segundo o qual somente se devem considerar o bosque e a
floresta na legislação a respeito da lenha, e devem-se resolver os problemas
materiais específicos de forma não política, isto é, sem relação com a
racionalidade do Estado e a moralidade políticas”.
Alguns
anos depois destes acontecimentos, em 1848, um jornalista editor do New York
DailyTribune, Charles A. Dana, foi enviado a Colônia para a cobertura de vários
episódios revolucionários mais ou menos simultâneos que ocorreram na Europa
naquele ano. Neste período, uma grande quantidade de camponeses se
transformaram em trabalhadores fabris, vários monarcas foram derrubados por uma
nascente classe intermediária criada pela revolução industrial, ao mesmo tempo
em que assistimos uma série de descobertas científicas, tecnológicas, uma
verdadeira onda de choque impactou a Europa, a Ásia, as Américas e a África.
Durante esta viagem, Dana foi apresentado a um poeta radical chamado Ferdinand
Freiligrath, que por sua vez o introduziu a Karl Marx, que a esta altura estava
com quase 30 anos de idade, e já havia publicado junto com Friedrich Engels o
Manifesto do Partido Comunista. Apesar de não existir nenhum registro deste
encontro, sabe-se que 3 anos depois aquele mesmo editor do Tribune, Dana,
enviou uma carta a Marx convidando-o para elaborar uma série de artigos sobre
as repercussões dos tumultuosos acontecimentos na Europa do final da década de
quarenta e início da de 1950.
O
jornal New York Daily Tribune foi fundado em 1841, com uma linha editorial
progressista — antiescravista, antibelicista, antitabagista, anti-bebidas
alcoólicas, anti-grandes conglomerados comerciais, anti-bordéis, anti-casas de
jogo – como foi caracterizado por G.G. Van Deusen em um livro sobre o fundador
do jornal, Horace Greeley. Com esta orientação o jornal acabou angariando
muitos leitores chegando a circular com 200 mil exemplares nos Estados Unidos,
ou seja, era considerado o maior jornal do mundo naquela época. Com seu
crescimento seus proprietários resolveram montar uma equipe de correspondentes estrangeiros,
para a qual Marx foi convidado a escrever.
Sem
dúvida esta circunstância foi muito providencial para a situação de grande
dificuldade econômica que a família de Marx enfrentava. Ele aceitou a tarefa
mesmo sabendo que seria um fator de dispersão de seu foco no trabalho de
elaboração de sua obra principal, O Capital. Foi nesta situação que alguns
artigos assinados por ele foram escritos por Engels, a seu pedido.
As
relações de Marx com seu editor nos Estados Unidos, no entanto, não foram
tranquilas. Até um presidente dos Estados Unidos - John F. Kennedy, um dos
principais responsáveis pela tragédia da Guerra do Vietnã - em uma conversa com
grandes proprietários de jornais, fez referência ao trabalho jornalístico de
Marx de forma jocosa: “Vocês devem lembrar que em 1851 o New York Herald (sic)
Tribune, sob a direção de Horace Greeley, empregou como seu correspondente em
Londres um obscuro jornalista chamado Karl Marx. Sabemos que Marx, este
correspondente estrangeiro, estava quebrado, com sua família doente e
subalimentada, e que constantemente apelava a Greeley e seu editor Charles Dana
por um aumento em seu salário de 5 dólares por mês, um salário que ele e Engels
taxaram de forma ingrata de “um desprezível descaramento pequeno-burguês”. Mas
quando todos os apelos foram desconsiderados, Marx procurou outros meios de
subsistência e fama, acabando por encerrar seu relacionamento com o Tribune e
devotando todos os seus esforços em tempo integral à sua causa, deixando um
legado para o mundo das sementes do leninismo, do estalinismo, da revolução e
da Guerra Fria. Se ao menos este jornal capitalista de Nova Iorque o tivesse
tratado de forma mais carinhosa, se ao menos Karl Marx tivesse permanecido como
um correspondente internacional, talvez a história tivesse sido diferente”.
O
jornalismo praticado por Marx em uma década de contribuições regulares para o
jornal New York Tribune, se distinguia dos jornalismo tradicional de várias
formas. A primeira, lembrada pelo organizador de uma seleção de artigos
publicados por James Ledbetter, foi sem dúvida o desprezo pelo uso de citações
de fontes das altas esferas da sociedade. Ele não era um confidente de
diplomatas e mandarins, não vivia de participar em importantes jantares e
colóquios secretos. Mas procurava estudar todos os aspectos do assunto tratado,
após intensas pesquisas na Sala de Leitura do Museu Britânico (Reading Round
Room) e em outras fontes qualificadas em vários países. Buscava a independência
acima de qualquer questão, não temendo denunciar poderosos e reis. Não se
tratava de ir atrás do furo jornalístico, mas de desvendar os aspectos
históricos daquele acontecimento em tela.
Os
editores de Marx, sabedores de suas ideias socialistas e comunistas, faziam
questão de observar na introdução de alguns artigos que “O senhor Marx tem
opiniões muito consolidadas de sua parte, com as quais algumas delas são bem
diferentes das que acreditamos”. Além disso é preciso dizer que o jornal foi
vítima de uma das crises do capitalismo que o próprio Marx bem reportou no ano
de 1857. Em 1861, durante a guerra civil nos Estados Unidos, o Tribune foi
obrigado a demitir todos os seus correspondentes estrangeiros, menos Karl Marx.
Em 1862, entretanto, seu editor Dana escreveu-lhe uma carta pedindo-lhe que
encerrasse sua colaboração com o jornal. Em 1864, já terminada sua atividade
com o jornal americano, Marx — em nome da Associação Internacional dos
Trabalhadores - enviou correspondência ao presidente Abraham Lincoln
cumprimentando-o por sua reeleição e pela vitória da luta contra a escravidão
nos Estados Unidos. Você poderá ter acesso à relação dos artigos de Karl Marx
publicados na internet através do site:
https://www.marxists.org/archive/marx/works/subject/newspapers/new-york-tribune.htm
Questão
mais sensível deste período de trabalho regular de Marx para o jornalismo neste
jornal americano, sem dúvida, foi o fato de que o trabalho jornalístico o
retirava de seu foco mais importante que era sua obra-prima de economia
política. No texto de introdução do trabalho “Contribuição à Crítica da
Economia Política”, em 1859, Marx deixa claro a seus leitores sobre “a
necessidade imperiosa de ganhar a vida, que reduzia o tempo à minha
disposição”. E completava: “Minha colaboração com o New York Tribune já
completa oito anos até agora, um jornal líder anglo-americano, que me impôs uma
excessiva fragmentação de meus estudos…Desde que uma parte considerável de
minhas contribuições consistiam de artigos que tratavam de importantes
acontecimentos econômicos na Inglaterra e no Continente Europeu. Fui compelido
a me tornar íntimo de detalhes práticos que, falando claramente, estavam à
margem da esfera da política econômica”.
Aqui
já nos referimos ao trabalho de Marx na Gazeta Renana e no Deutsche Jahrbücher,
além do New York DailyTribune. É preciso registrar que em 1848 Marx aceitou o
convite para dirigir a Nova Gazeta Renana, em Colônia, um jornal diário.
Escreveu artigos para vários outros órgãos de imprensa na Alemanha, na França
(Vorwärtz!, foi considerado o jornal mais radical da Europa) e na Inglaterra,
com destaque para o jornal do movimento Cartista inglês, The Peoples’s Paper, o
jornal alemão Die Presse, e o Neue Oder Zeitung. Para o New York DailyTribune
Marx e Engels escreveram 487 artigos, sendo 350 de Marx, 125 de Engels e 12
textos escritos a quatro mãos. A publicação completa de todos estes artigos
para o Tribune ocupam 7 volumes dos 50 editados como as obras completas de Marx
e Engels (que ainda estão incompletas). Ou seja, há muito ainda o que estudar
sobre os trabalhos de Marx como jornalista.
Referências
KARL
MARX, Dispatches for the New York Tribune: Selected Journalism of Karl Marx –
Edited By James Ledbetter com prefácio de Francis Wheen, Londres, 2007 –
Penguin Books
KARL
MARX, ou o Espírito do Mundo – Jacques Attali, São Paulo, 2007 – Editora Record
THE
AGE OF REVOLUTION, 1789—1848, Eric Hobsbawn, New York, 1962 – Vintage Books
O
LEITOR DE MARX, org. José Paulo Netto, Rio de Janeiro, 2012 – Civilização
Brasileira
MARX
ENGELS ET LE JOURNALISME RÉVOLUTONNAIRE, Trinh Van Thao, Paris, 1978, Éditions
Anthropos.
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