O
círculo de giz caucasiano - ou seja, a aliança de ferro e fogo entre as forças
políticas conservadoras, o poder econômico, a mídia ensandecida, o Ministério
Público e o Poder Judiciário – que desde os primeiros dias de 2015 se organiza
e opera visando à destruição política de Luiz Inácio Lula da Silva (menos por
ele, mais pelo que representa para as grandes massas), não é fato novo na
política brasileira, monótona na repetição de suas tragédias, incorrigível na
persistente intolerância da Casa Grande a tudo que possa sugerir progresso
social e emergência econômica e política popular, numa História na qual o povo
foi sempre um exilado, tolerado apenas como massa de manobra para a conciliação
comandada do alto pela classe dominante.
O
grande projeto das forças que nos governam desde sempre, e governam
independentemente do caráter dos governos, tem sido assegurar-se de que, na
democracia representativa permitida, a opção eleitoral, qualquer que seja,
precisará conservar o mando do poder econômico e suas alianças conjunturais. Toda
vez que esse mando é ameaçado, mesmo que o agente possa ser um dos seus, a
direita e as forças ditas liberais não titubeiam em fraturar as instituições
democráticas. Afinal, quase tudo por elas é admitido, principalmente a troca
dos nomes dos governantes, mas é inaceitável a mudança de governo, nomeadamente
quando ameaça com a ascensão daquelas forças destinadas pelo pacto dominante à
simples figuração.
A
releitura desse processo em episódios passados nos ajudará a compreender a
conjuntura que estamos vivendo desde as eleições de 2014 e a inaceitada vitória
de Dilma Rousseff.
Em
1950, a candidatura de Getúlio Vargas (o ditador derrubado em 1945),
simbolizava a emergência das massas, o governo das forças trabalhistas, de par
com um nacionalismo que compreenderia o monopólio estatal do petróleo e um
desenvolvimento econômico autônomo. Propostas inaceitáveis pelo establishment.
A reação revelou-se imediata e radical, e para formulá-la foi nomeado o
jornalista Carlos Lacerda (um Bolsonaro alfabetizado), que a ditou em artigo na
Tribuna da Imprensa (1º/6/1950): “O Sr. Getúlio Vargas senador não deve ser
candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar
posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Há
alguma diferença essencial entre esse dictak e o que ameaça a candidatura Lula?
Com
aquele discurso, Lacerda vocalizava os interesses e os projetos da classe
dominante de então – os interesses da plutocracia paulista associados aos
projetos dos trustes internacionais, que dialogavam com os setores mais
atrasados das Forças Armadas, naquela altura useiras e vezeiras em intervenções
na política e na vida institucional, distorção que acompanha toda a vida
republicana até a grande ruptura de 1964.
Não
se fez necessária a “revolução” brandida por Lacerda. Como sabemos, Vargas foi
eleito, tomou posse, governou aos trancos e barrancos e purgou todos esses
feitos com sua deposição e suicídio na madrugada de 24 de agosto de 1954
(traído pelo seu vice), acusado de corrupção pela direita fóbica, e de “lacaio
do imperialismo” pelo Partido Comunista daqueles tempos.
O
que se segue é sabido, mas convém recordá-lo para melhor compreendermos a
natureza do golpe de 2016, ainda em andamento, e para nos precatarmos ante o
que, cozido hoje, está por nos ser servido amanhã.
Com
a queda de Vargas assume a presidência da República o vice, Café filho, uma
antecipação de Michel Temer, marionete conduzida pelos cordéis articulados pela
direita, capitaneada na política pela UDN, na imprensa por O Globo e Estadão, e
entre os militares liderada pelo brigadeiro Eduardo Gomes (ministro da
Aeronáutica) e general Juarez Távora (Chefe da Casa Militar), artífices do
golpe. Ocorre que a nova força dominante já encontraria a disputa eleitoral de
1955 a caminho, com dois candidatos nas ruas: Juscelino Kubitscheck (governador
de Minas Gerais) e Ademar de Barros (ex-interventor em São Paulo). Sem
condições de impedir o pleito, a alternativa era manipulá-lo, afastando da
disputa o adversário afagado pelos eleitores, JK.
Repetia-se,
assim, em 1955, pelas mesmas razões, a sentença que se abatera em 1950 sobre
Vargas, e que se abate hoje sobre Lula.
Tudo
foi feito para impedir, primeiro, a candidatura de JK, inclusive com a edição
de um “Manifesto” dos ministros militares proclamando a inconveniência de sua
candidatura. Viabilizada esta, porém, lança-se a direita de corpo e alma na
candidatura do Marechal Juarez Távora, que seria derrotada nas eleições. É o
que se tenta agora, mas desta feita sem esperanças eleitorais, com a
candidatura do governador Geraldo Alckmin.
Por
mil e uma maquinações, mil e um recursos jurídicos e políticos, conspirações
civis e militares, derrotada nas eleições, as forças reacionárias intentam
impedir a diplomação dos eleitos. Diplomados Juscelino e seu vice João Goulart,
após longa batalha judicial, a direita e o governo fantoche articulam,
finalmente, mais um golpe de Estado, na hora H sustado pela dissidência do
Marechal Henrique Lott, ministro da Guerra. É o episódio que a História
registra como o contragolpe de 11 de novembro de 1955, que, garantindo a
legalidade, assegurou a posse dos eleitos.
Precatada,
logrando impedir a governança de Dilma Rousseff, a direita abriu caminho para o
golpe de 2016, e na sua sequência aplica-se na implantação de um regime de
exceção fundado na ação antipopular, antidesenvolvimentista e antinacional, o
governo de uma súcia de corruptos comandada pelo próprio vice perjuro feito
presidente. Esse governo, para realizar seu projeto, precisa projetar-se no
tempo após extinto, e para tal persegue um objetivo crucial, qual seja: deter,
por quaisquer meios, mas de preferência por aqueles meios que conservem diante
da opinião púbica um verniz de legalidade, a destruição de Lula, que começa
pela tentativa de impedimento de sua candidatura, ante a impossibilidade de
derrotá-lo nas urnas. O fato objetivo, culpabilidade ou inocência de Lula, é
questão secundária – para seus adversários anunciados mas igualmente para o
Ministério Público e o Poder Judiciário, seus juízes de piso e seus ministros –
pois a condenação transformou-se numa necessidade para a sobrevivência do
atuais mandatários do poder extorquido do povo.
A
explicação dessa fase do golpe de 2016 está estampada em matéria do Estadão assinada
por Danilo Cersosimo (20/12/2017):
“O
Barômetro Político Estadão-Ipsos de dezembro continua a registrar tendência de
alta na aprovação do ex-presidente Lula, que atinge agora 45% (era de 24% há
exatamente um ano). Sua desaprovação, que era de 72% em dezembro do ano
passado, está agora em 54%”.
Mas
não é só, pois, relembrando a solidão da direita em 1950 e em 1955, o
governador Geraldo Alckmin “viu novamente sua desaprovação subir – de 67% para
72% – e sua aprovação retroagir de 24% para 19%, cessando momentaneamente uma
pequena tendência de alta que parecia se configurar”.
Em
1955 as tentativas de bloquear a caminhada de Juscelino despertaram a reação
não apenas das forças progressistas, suas aliadas, mas de consideráveis
segmentos democráticos e liberais, mesmo de forças conservadoras comprometidas
com a ordem constitucional, e o maior símbolo dessa resistência foi o advogado
Sobral Pinto.
Em
1961, com o veto dos militares à posse de João Goulart, as forças populares se
organizaram na grande “cadeia da legalidade” que unificou o País na defesa da
Constituição. A posse foi assegurada, mas, num acordo de cúpula, os poderes do
presidente da República foram castrados com a aprovação da emenda
parlamentarista.
Desta
feita, tudo está planejado. É preciso impedir a candidatura Lula, com sua
condenação, com sua prisão, com sua impugnação; se o candidato superar essa
gincana, deverá ser derrotado nas eleições. Eleito (se eleições tivermos), só
tomará posse se o Congresso aprovar emenda que visa ao “presidencialismo
mitigado”, a fórmula imoral e inconstitucional redigida por Gilmar Mendes
(sempre ele) e articulada por Michel Temer. Num de seus artigos, a Emenda
Constitucional proposta pelo líder do governo no STF prevê (parágrafo único do
art. 82): “Ninguém poderá exercer mais de dois mandatos presidenciais,
consecutivos ou não”. Mais casuísmo, mais desfaçatez, é impossível.
Romero
Jucá, em artigo que assinou e a Folha publicou (20.12.17), diz claramente da
disposição da súcia de valer-se de todos os meios possíveis para conservar-se
no poder: “Não enfrentamos esse tsunami todo para aceitar de bom grado
propostas que tentam devolver o Brasil ao início do século.” Ele quis dizer:
“Não colocamos um golpe em andamento, com todo o custo correspondente, para permitir
que a esquerda retome o poder na primeira oportunidade.”
A
alternativa ao golpe e à sua perpetuação, ensina a história republicana, é a
mobilização popular.
É
a mobilização que cabe a todos os democratas, porque, a partir de agora, com o
golpismo anunciado pelo comportamento heterodoxo (mas nada surpreendente) do
Tribunal da 4ª Região, não se trata, mais, de defender Lula, tão-só, muito
menos de defender seu partido: trata-se, acima de tudo, de defender a
legalidade democrática, sem a qual todos perderemos, mas perderão
principalmente os trabalhadores. A história volta para as mãos dos movimentos
sociais.
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