Nem
vou me alongar para falar da “motivação” de parte da decisão do juiz de Goiás,
que, para negar progressão de regime de um apenado, disse:
"Todo mundo sabe das péssimas
condições em que se encontram quase todos os presídios do país. Parafraseando o
presidenciável Jair Bolsonaro era só o apenado não roubar, que não iria para o
presídio. Roubou, vai ter que cumprir pena, nos moldes da sentença."
A
decisão – ou essa parte da fundamentação - é autoexplicativa. O quero discutir,
como sempre faço – sem fulanizar – são as razões pelas quais chegamos a isso.
Filtramos o Direito por intermédio da moral e da política. O juiz, no caso,
desnudou-se. Já havia “enquadrado” o MST como organização criminosa. Vontade
(moral) dez, imparcialidade zero. No imaginário brasileiro, passou de ano com
nota cinco. Moral da história: filtramos o Direito por aquilo que achamos que
ele deva ser. Por isso o sucesso de coisas como “manifesto contra a
bandidolatria” (sic) e de “memes” como “direitos humanos só para humanos
direitos” (sic). Um promotor fez palestra (tenho o print) mostrando um slide
com foto de Marx para criticar (na verdade, difamar) o garantismo... Sim, para
ele, o garantismo é coisa de comunista. O Brasil vai ganhar o prêmio ig-nobel,
mesmo. É assim que parcela majoritária do Direito é aplicada no Brasil. E assim
é ensinada. Por intuições, consciência, desejos...menos pelo Direito. Fóruns,
tribunais e salas de aula viraram locus de uma vulgata de teoria política de
poder. O réu tem de torcer para ter um juiz que não tenha esse perfil
ideológico como o do juiz de Goiás. E que não caia na mão de um promotor que
pensa como o da palestra (que, obviamente assinou o famoso manifesto contra a
bandidolatria). Nos tribunais, a mesma coisa. A sorte do réu depende de “onde
caiu”, em que Câmara ou Turma. Como chegamos a isso, esse é o ponto.
Ninguém
é filho de chocadeira. Juízes e membros do Ministério Público (enfim, todas as carreiras)
estudaram em algum lugar, fizeram cursos, cursinhos e quejandos. Venho
denunciando essa problemática há décadas. Pareceres do MP baseados em teorias
exóticas, ausência de secularização (juízes citando a bíblia), embargos de
declaração rejeitados em duas linhas com invocação de algo que não existe no
CPC – o livre convencimento (e se o causídico meter outro embargo, leva multa),
decisões que invertem o ônus da prova, escritórios de advocacia têm sigilo
telefônico violado, processa-se a rodo por organização criminosa, conduções
coercitivas viraram regra, prisões arbitrárias, prazos de preventivas que se
alongam ao infinito e assim vamos indo em direção do abismo. Depois não venham
se queixar. O Direito vem sendo aplicado a partir de livres convencimentos (e
põe livre nisso, como foi o caso do juiz de Goiás).
Claro.
Basta olhar o que vem sendo ensinado e o nível da bibliografia utilizada nas
salas de aula e nos cursinhos de preparação. Aliás, como disse a estudante, já
nem livros são utilizados. É só vídeo aula, resumos e resuminhos. E metáforas
infames.
Isso
dá um tratado. Mas há alguns elementos simbólicos que conseguem mostrar a
profundidade do buraco em que nos metemos. Quando uma professora doutora usa de
metáforas como a do silicone para explicar o que é emenda constitucional e
livros sobre “como chutar” em concurso fazem sucesso e até aulas de sushi
jurídico vicejam nas redes e salas de aula, é porque uma luz mais do que
amarela já se acendeu de há muito. E para massacrar corações e mentes, eis o
toque final, que, ao fim e ao cabo, faz o elo de ligação da decisão de Goiás
com o atual ensino jurídico. Vejam o que um professor “ensinou” e a aluna
(penso que é aluna) postou no instagram, como “dica” para fortalecer a
nesciedade do ensino do Direito:
Hoje eu trouxe pra vocês uma dica super
especial que eu aprendi com um professor ‘fera’ de Direito Constitucional, o
Prof. (...). Olha a letra dessa música, que genial. Vou soltar minha voz, hein:
Difusamente: qualquer juiz inocente,
qualquer Tribunal competente, em qualquer ‘processin’.
Concentradamente: o Hans Kelsen não mente,
STF que topa até liminar na ADIN.
Abstratamente: ‘GCC’ dá entrada, ‘PPP’
impetrando, quatro mesas pra ADIN.
ADI safada, na Hora H não pode ser
retirada,
AGU defende a impugnada, e cabe amicus
curiae sim.
Vou falar da ADIN: erga omnes sim,
Vou falar da ADIN, que vincula ‘tudin’.
Pronto.
Queixem-se ao bispo. A mim, não. Há mais de 25 anos alerto para o estado da
arte do ensino e da operacionalidade do Direito. E chamo a atenção para o fato
de que a doutrina virou caudatária de julgados. E que praticamos um realismo
tosco e retrô.
Há
mais de vinte anos procuro mostrar que de há muito começou a chover na serra. A
enchente cobre, agora, a tudo e a todos. A pergunta é: Como não nos demos
conta? Como?
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2017-out-22/lenio-streck-juiz-cita-doutrinador-bolsonaro-estoquemos-comida
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