O
golpe de 31 de agosto de 2016 completou um ano. Dele, ainda nos esforçamos por
desvendar a natureza labiríntica. De modo mais imediato, está claro o amplo
desmonte da rede de proteção social criada nos governos Lula e Dilma. Esforço
precioso, mas muito insuficiente frente aos nossos 500 anos de injustiça, é
alvo da sanha ensandecida de quem quer congelar por vinte anos o gasto social.
Dilma,
em seu “julgamento” no Senado, enuncia discurso tristemente profético, ao
recusar-se, com dignidade, ao silêncio obsequioso, que lhe recomendariam os
“articuladores habilidosos” de todas as épocas: “O que está em jogo são as
conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres
e da classe média, a proteção às crianças, os jovens chegando às universidades
e às escolas técnicas, a valorização do salário mínimo, médicos atendendo a
população, a realização do sonho da casa própria”.
Os
cortes no Bolsa Família, do orçamento da educação superior e da ciência e
tecnologia, o fechamento das farmácias populares, a ameaça aos hospitais
federais, o fim da política de valorização real do salário mínimo, a devastação
do Minha Casa, Minha Vida, a destruição do Ciência Sem Fronteiras e do Pronatec
são provas incontestes de que Dilma estava certa.
Esses
são os ataques diretos ao povo brasileiro. Outra ofensiva, contudo, está
direcionada à soberania do país. Tal investida revela, quase sem nenhuma
nuance, duas características peculiares (porém indivisíveis) do golpe de 16.
De
um lado, temos o claro objetivo de atender interesses econômicos estrangeiros.
O Brasil é uma potência. Amplo território, amplo mercado consumidor interno,
incontáveis riquezas. Muito a ser explorado, mercantilizado, especulado. Por
isso mesmo, ameaça ao Império e a sua geopolítica. O banco dos BRIC foi ofensa
imperdoável. A aspiração a uma diplomacia soberana foi alvo de espionagem e
ofensiva direta, como nos revelam Snowden e os Wikileaks. Quebrar a nossa
economia é quebrar também nossas aspirações à liderança num mundo multipolar.
De
outro lado, opera a mentalidade colonizada da elite brasileira, que se recusa a
assumir o papel de dirigente de um projeto soberano. Veem-se como prepostos,
como representantes daqueles outros países nos quais, quem sabe, aspiravam ter
nascido. Herdeiros da nobreza “criolla” dos tempos do Tratado de Tordesilhas.
Estrangeiros em sua terra. Pavões dos portos, como já os diagnosticava
Levi-Strauss nos Tristes Trópicos.
Tal
mentalidade colonizada é solo fértil para as mais esquizofrênicas visões de
mundo. Como as que apostam na recessão econômica e no desemprego como meio para
alavancar o desenvolvimento. Ou que veem no mercado força motriz para a
igualdade social…
Todas
essas características emergem na criminosa proposta de privatização da
Eletrobrás, anunciada neste mês de agosto (que desgosto!).
Comece-se
pela expectativa do governo Temer de obter aí R$ 20 bilhões. Esse valor
representa menos da metade do valor investido na usina de Belo Monte. Ridículo.
Uma verdadeira pechincha para empresas estrangeiras, em particular as chinesas.
O
sistema Eletrobrás possui 47 usinas hidroelétricas, 114 térmicas e 69 eólicas,
a maioria desses investimentos já inteiramente amortizados. Como lembra Luís
Nassif, esse é um empreendimento de quase R$ 400 bilhões, pagos desde 1953 pelo
consumidor brasileiro. Tudo isso posto a perder.
O
caráter amortizado do empreendimento Eletrobrás revela uma de suas virtudes.
Implica que o preço da energia, praticada ao consumidor, representa apenas os
custos de operação e manutenção do sistema.
Pois
isso também irá ruir com a proposta de Temer. Como bem indicado pelo professor
da PUC-RS, Ronaldo Custódio, em recente audiência na Câmara dos Deputados, o
pretenso novo modelo do setor elétrico brasileiro cria um ambiente de livre
compra de energia. Na prática, esta passa a valer em função de seu custo
futuro. Forma-se uma bolsa de energia, com o preço praticado variando a partir
de critérios meramente especulativos.
É
indecentemente óbvio o que isso representa para o consumidor: tarifas mais
caras.
De
outra forma, o modelo proposto em nenhum momento formula exigências de
investimentos futuros, preferindo acreditar que a livre comercialização da
energia trará, por mágica, o financiamento para novos empreendimentos.
Mais
uma vez, registre-se o que isso significa para o consumidor brasileiro. Não há
garantias de que, no médio e longo prazo, haja suprimento suficiente no
oferecimento de energia. Em outras palavras, risco de um novo apagão do setor
elétrico brasileiro.
Na
prática, temos que a energia deixa de ser tratada como um bem e um serviço
público, parte de uma estratégia nacional de soberania, para funcionar como uma
outra qualquer mercadoria – regulada não pelo Estado, mas pelos interesses do
mercado.
Necessário,
em situações como essa, olhar para os gigantes liberais, e ver como eles tratam
questões semelhantes. Tome-se os Estados Unidos. Lá, 73% da capacidade
energética de fonte hídrica é de controle estatal. Na Europa, por sua vez, há
um movimento pela reestatização de serviços relacionados aos setores de água e
energia.
Igualmente
na contramão do mundo, a opção do novo marco energético brasileiro aponta para
o uso de fontes não-renováveis de energia como lastro. Mais uma vez segundo o
professor Ronaldo Custódio, os atributos técnicos e físicos exigidos são um
estímulo à geração termelétrica (em especial a partir do gás natural) e uma
restrição à geração renovável.
Não
espanta, portanto, o vigor com que o governo vem defendendo o decreto que
extinguiria a proteção ambiental à Reserva Nacional de Cobre e seus Associados
(Reica), na Amazônia. O desapreço pela causa ambiental e sustentabilidade aqui
ganha cores nítidas. Temer fala em levar riqueza para a região. Riquezas haverá
sim, mas para as multinacionais que puderem explorar os recursos naturais lá
existentes, sem qualquer tipo de pena nem pela floresta amazônica nem pelo
futuro da humanidade.
Em
um ano de golpe, o que o Brasil faz é entregar a água, o ar, o conhecimento e o
patrimônio que temos acumulado. Em um ano de golpe, de certo modo fazemos
cumprir o que Marx dizia: tudo o que é sólido desfaz-se no ar.
Tudo
o que é sólido para o Brasil vem se desfazendo com Temer. Ontem os programas
sociais, hoje a Eletrobrás, a Amazônia, logo mais a Petrobras, o pré-sal, o
Banco do Brasil.
Nós
precisamos derrotar o golpe. Derrotar o golpe para construir um futuro à altura
do Brasil. Nós somos um dos mais importantes países do mundo, um dos povos mais
criativos, mais diversificados, uma das nações mais ricas do mundo em recursos
naturais.
A
dimensão mais criminosa do golpe é a de impedir o Brasil de se tornar o país
que o Brasil pode ser. Sigamos na luta, portanto.
A
Eletrobrás é nossa. O Brasil é nosso.
http://midianinja.org/margaridasalomao/um-ano-de-golpe-e-de-destruicao-da-patria/
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