No
debate ocorrido em São Paulo, nesta quinta-feira (21), o estudioso de Antonio
Gramsci, o filósofo italiano Gianni Fresu, mostrou como o pensamento daquele
teórico, morto a exatos 80 anos, é a continuidade e avanço de temas importantes
para Lênin, assim como permitem a compreensão da estratégia para o processo
revolucionário, ainda que tantos esforços tenham sido feitos por setores à
direita e à esquerda, para tornar o autor um mero reformista social-democrata.
Antes
de destacar os pontos que definem a atualidade do pensamento gramsciano, Fresu
aponta um eixo fundamental daquela obra, que é a biografia do teórico entre
1921 e 1926, dramaticamente marcada pela derrota das revoluções no Ocidente,
como o Biênio Vermelho (Itália), a Revolução dos Conselhos (Alemanha), e os
acontecimentos na Hungria. E não somente isso, mas também o despontar de um
período de refluxo que levou à afirmação do fascismo tanto na Itália como na
Alemanha.
Segundo
Fresu, o questionamento de Gramsci está explícito no Caderno 11 do Cárcere.
Apesar das condições favoráveis, em termos objetivos, uma crise que não era
apenas econômica, mas estrutural, uma crise da hegemonia das classes
dirigentes, e contemporaneamente a existência de um contexto subjetivo, marcado
por sublevações populares, lutas dos operários e camponeses, como nunca
aconteceu antes, Gramsci perguntava porque não foi possível traduzir
nacionalmente os valores universais da Revolução de Outubro. Assim, o que
define os Cadernos do Cárcere é o tema da revolução no Ocidente.
Gramsci político,
Gramsci desinteressado
No
entanto, Fresu explica que Gramsci é frequentemente estudado de forma
equivocada, distorcendo este sentido revolucionário. “Com a crise do Partido
Comunista na Itália e a viragem moderada da esquerda, houve uma operação
política sem nenhum fundamento filológico, que se configurou uma fraude
intelectual, ao apontar uma descontinuidade na obra gramsciana”, acusa ele. Até
1926, como dirigente internacional do movimento comunista, Gramsci é
considerado um intelectual criativo, capaz de enfrentar a realidade, mas
comunista. E o Gramsci do cárcere é tratado como um social-democrata, um
liberal, que se afasta progressivamente do seu universo ideológico.
A
categoria de Hegemonia é utilizada para afastar o “Gramsci político” do
“Gramsci desinteressado” que se afasta da tradição da 3a. Internacional. Para
ele, o que confirma a fraude é que, nos cadernos do Cárcere, o autor sempre
define Lênin como o grande teórico da hegemonia, ao descrever o papel de
dominação ideológica e cultural da burguesia. “Acredito que Lênin foi quem mais
enfrentou a questão da hegemonia, e Gramsci foi quem desenvolveu o tema a
partir da bagagem cultural da revolução no ocidente”, defende Fresu.
Para
ele, Lênin recusa o positivismo determinista da 2a. Internacional, que defendia
que todo país só chegaria ao socialismo, apenas se passasse por toda a “via
crucis” do capitalismo ocidental. Antes de industrializar-se e formar uma
classe proletária, nenhum país poderia sequer pensar na possibilidade do
socialismo. Por isso, socialistas daquele período defendiam o imperialismo
colonial como uma necessidade dos povos atrasados, aproximando-se perigosamente
do pensamento racista da época.
É
por isso que, diante da Revolução de Outubro, Gramsci escreve que ela ocorreu
contra O Capital, de Marx, que tornara-se o livro da burguesia, por,
supostamente, confirmar a leitura positivista dos liberais. Lênin, por sua vez,
afirma a subjetividade revolucionária que levou a Rússia a saltar do feudalismo
ao socialismo, sem expressar plenamente o capitalismo ocidental. A leitura
cientificista do Capital considerava inevitável o avanço socialista a partir da
sociedade industrial avançada, num determinismo que se aproximava da evolução
darwinista e da análise progressiva das contradições econômicas. “É Lênin que
rompe com essa visão mecânica do marxismo, afirmando que cada país chegará ao
socialismo a partir de condições nacionais específicas. Desde jovem, Lênin
estuda a realidade econômica da Rússia como um fenômeno profundamente diferente
do Ocidente, estabelecendo a incapacidade da burguesia russa de fazer avançar o
capitalismo naquele país. Desde cedo, não lhe interessavam generalizações sobre
o capitalismo”.
Gramsci
traduz essa análise leninista na Questão Meridional, em que ele elabora uma
análise especifica sobre a formação econômica e social da Itália, como um fruto
do compromisso artificial entre classes sociais que normalmente no processo de
desenvolvimento da história são contrapostas dialeticamente: a burguesia rural
parasitária e a burguesia mais dinâmica industrial. Ou seja, o processo de
modernização desigual entre o norte e o sul italiano moldou a revolução
passiva, evitando a irrupção das classes populares. Daí Gramsci propor uma
aliança entre as classes camponesas do sul e o proletariado do norte, já que o
Biênio Vermelho fracassou justamente por falta de uma coordenação orgânica
dirigida pelo movimento socialista entre ocupações de fábricas e de
latifúndios.
Fresu
mostra que Lênin já descreve esta diferença entre Oriente e Ocidente já em
1898, a partir do desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Em 1918, em plena
guerra civil, Lênin observa que, quanto mais desenvolvidas as forças produtivas,
tanto mais são sofisticados os sistemas de domínio cultural. Fresu diz que na
Rússia foi mais fácil tomar o poder, desde que as classes dominantes não tinham
direção nem hegemonia, enquanto no Ocidente é bem mais complicado levar adiante
um processo revolucionário similar. O próprio Lênin entende a necessidade de
mudar a estratégia no Ocidente, diante do fracasso dos movimentos
revolucionários no início da década de 1920, ao definir a hegemonia como um
fator mais importante para a manutenção da ordem opressora que a dominação
direta. Gramsci avança essa visão ao dizer que nos países em que a hegemonia
cultural é avançada, a solução da crise orgânica não precisa mais da
intervenção militar, pois os intelectuais cumprem o papel de moldar a opinião
pública por meio dos meios de comunicação de massa, tornando aceitável as
relações de domínio. “Nada disso confirma a distância entre Gramsci e Lênin,
mas justamente, sua proximidade. Portanto, a primeira coisa é afirmar a relação
orgânica entre Gramsci e Lênin, assim, a tarefa de apontar uma descontinuidade
entre eles é uma tarefa política de recusar a função histórica da Revolução de
Outubro”, afirmou Fresu.
Atualidade do pensamento
de Gramsci
Fresu
observa o distanciamento entre a política e a sociedade civil, na atualidade,
como um fenômeno estudado por Gramsci. Para ele, o “fio vermelho” da elaboração
intelectual e da luta política de Gramsci é a relação entre dirigentes e
dirigidos, entre governantes e governados, articulada pela contradição entre
trabalho manual e trabalho intelectual, que, embora apresentadas com
naturalidade são fruto da divisão do trabalho. “Assim, a direção política é
tratada como algo tão complexo que precisa ser delegada a especialistas,
enquanto as classes populares tornam-se material bruto nas mão das classes
dirigentes, assim como são usadas como massa de manobra das tarefas dessas
classes”, explica ele, lembrando que a geração de Gramsci é marcada pela 1a.
Guerra Mundial, e o modo como a juventude foi usada como “carne de canhão” para
defender interesses imperialistas.
O
raciocínio vai além das contradições entre intelectual e trabalhador na
sociedade capitalista, mas avança sobre a organização operária, dirigida por
intelectuais burgueses. O intelectual orgânico é, portanto, a recomposição da
fratura entre trabalho manual e intelectual, tornando cada homem um filósofo de
si mesmo, não necessariamente conduzindo o trabalhador manual à dirigente, mas
tornando-o independente do intelectual burguês, criando uma visão autônoma,
livre da influência das classes dominantes. O Partido, então, é o repositório e
expressão da inteligência coletiva dos trabalhadores.
Fresu
observa que vivemos uma fase de crise de hegemonia, com perda de credibilidade
do sistema representativo parlamentar, em que o apartamento entre sociedade
civil e direção política cria uma radicalização das massas populares sem
controle dirigente. São nestes momentos em que ocorre a revolução passiva ou a
viragem autoritária, duas respostas expressas nos tempos de Gramsci pelo fordismo
e pelo fascismo.
Para
ele, a contradição do fordismo estava no fato de que, a tentativa de brutalizar
o trabalhador por meio de atividade mecânica e repetitiva, falhou ao permitir
que ele tivesse tempo pra pensar e organizar-se, conforme dominava sua tarefa
com facilidade. O caráter progressista do fordismo (ainda que reacionário)
implicava em impor uma ordem produtiva a toda a sociedade, já que, nos EUA, não
existia uma classe parasitária como aquelas da Europa, que viviam
exclusivamente de rendas. Não por acaso, as maiores conquistas trabalhistas se
deram no sistema fordista. O fascismo europeu, por sua vez, cria uma função
política e uma tutela a classes que não têm mais função produtiva. Daí, a única
solução para o fascismo ser a guerra e a hegemonia cultural.
Ele
diz que Gramsci é estudado, não apenas pela esquerda, mas por intelectuais de
todo o mundo industrializado, porque antecipou a sociedade dos meios de
comunicação e a função política dos intelectuais.
Deste
modo, o tema da hegemonia deve ser recuperado não apenas para entender o mundo
de hoje, mas também para desenvolver a revolução. Sem hegemonia, a tomada do
poder não resiste por muito tempo. Gramsci defende a formação de um partido que
não apenas represente os trabalhadores, mas seja composto e dirigido por
trabalhadores com uma consciência crítica da sociedade capitalista. Esse
caráter emancipatório do debate sobre a hegemonia, torna o tema revolucionário,
e não socialdemocrata como querem alguns.
A
questão Meridional faz com que Gramsci tenha enorme inserção no Brasil e na
América Latina, ao estabelecer o papel do intelectual do sul da Itália (ele
cita Benedetto Croce) na pacificação das camadas camponesas sem terra e manter
a modernização passiva do norte articulada com a burguesia parasitária do sul.
O mesmo ocorre com os intelectuais burgueses da América Latina na relação com o
imperialismo dos EUA.
Gramsci
rompe com o determinismo e a racialização que dominava os partidos socialistas
e seus intelectuais. Uma hegemonia que defendia a dominação imperialista de
“povos atrasados” e explicava a pobreza no sul da Itália pela racialização e
proximidade com a África, e não pelas condições históricas concretas.
Fresu
ainda lembra que a hegemonia pós-moderna entre intelectuais, hoje, é uma clara
tentativa de apagar o legado da Revolução Russa ao definir o comunismo como a
outra fase do fascismo. O século XX passa a ser uma época de horrores, em vez
do período em que mais se avançou nos direitos dos trabalhadores, e no processo
de descolonização do mundo subdesenvolvido. “A queda do muro de Berlim deu
início a um período, que ainda não terminou, de golpes contra os direitos dos
trabalhadores e de infinitas guerras imperialistas, devido à mudança no
equilíbrio mundial”, encerrou.
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