Somos
uma nação sem solidariedade, mal imaginada, na qual as elites têm aversão ao
povo.
Em
minha palestra na mesa “Uma nação capaz de promover o desenvolvimento?”, no
recém-realizado 14º Fórum de Economia, promovido pela FGV-SP, argumentei que,
na história nacional brasileira, há uma forte e recorrente tendência estrutural
de divórcio entre os sistemas político e econômico e o sistema social. Ou seja,
há um desencontro entre o senhor, o bloco Estado-economia, e o súdito, a
sociedade.
A
separação coloca, de um lado, as oligarquias associadas ao grande capital e, de
outro, o povo, o demos. Por consequência, em quase dois séculos de história do
Brasil independente, nosso regime democrático, quando existente, é
frequentemente mais refreado pela forma ruim do regime dos poucos, a
oligarquia, que impulsionado no sentido da forma boa do regime dos muitos, para
usar os termos da análise política de Aristóteles.
Em
um trabalho instigante, Carlos Lessa observa que o Estado brasileiro surgiu, a
partir da Independência em 1822, em um contexto no qual, apesar de haver um
sistema produtivo agroexportador herdado da colônia, praticamente não se podia
considerar que existia uma nação, uma vez que a mão de obra escrava tornava no
mínimo muito difícil se pensar em uma unidade nacional.
Por
outro lado, outra dimensão essencial da nação enquanto comunidade imaginada, a
soberania, também se revelava fragilíssima desde o nascedouro, pois a
dependência externa, em princípio em relação à Inglaterra, constituiu-se em uma
variável de origem a impedir o controle do Estado sobre a base econômica, ou
seja, a autodeterminação.
A
construção da identidade brasileira não foi feita em oposição a algum inimigo
externo. Em vários momentos, a ameaça foi identificada no inimigo interno, e
não no inimigo externo. Em regra, o Estado tem sido pacífico com os
estrangeiros, mas violento com os integrantes da suposta comunidade nacional,
sobretudo os negros e pobres.
Outro
momento importante da história nacional foi a libertação dos escravos, que imediatamente
se fez acompanhar da queda da Monarquia, erguida sobre a escravidão. Mas a
República herdou a estrutura político-econômica oligárquica, assentada sobre um
sistema produtivo agroexportador e apartadora da massa rural e analfabeta de
qualquer bem-estar e cidadania.
A
partir da Revolução de 1930, a questão do desenvolvimento e, em alguma medida,
a questão social passaram a ser encaradas pelo novo Estado como meios de
construir a nação, diante da penúria do povo e da dependência externa. As
mudanças de então avançaram na construção da nação.
Apesar
da acomodação entre velho e novo, houve alteração de trajetória em alguns
aspectos importantes, particularmente na estrutura organizativa do Estado, no
sistema produtivo e na urbanização. Uma nova coalizão de classes, não mais
exclusivamente composta pelas oligarquias agrárias, forneceu o suporte às
transformações conduzidas pelo Estado, ensejando que Getúlio Vargas alavancasse
uma safra inédita de políticas públicas, que expressava também um incremento da
autonomia relativa do Leviatã em relação aos interesses econômicos e sociais.
O
Estado nacional se afirmou e a estratégia nacional-desenvolvimentista
industrializou o Brasil. Mas a transformação produtiva induzida pelo Poder
Público foi bem mais impactante que a inclusão social, uma vez que amplas
parcelas da população continuaram excluídas do dinamismo econômico.
A
crise do nacional-desenvolvimentismo ajuda a explicar a década perdida no
Brasil, nos anos 1980. A partir de 1994, o Plano Real, ancorado no Consenso de
Washington, equacionou a estabilidade monetária e abriu um processo de reformas
orientadas para o mercado, mas que não resultaram na retomada do crescimento.
Os
governos encabeçados pelo PT, entre 2003 até 2014, tentaram ser uma alternativa
às políticas dos governos de Fernando Henrique Cardoso. Enquanto duraram, as
novas políticas de motivação social-desenvolvimentista avançaram na promoção da
unidade nacional, do mercado interno, da igualdade, da formalização do mercado
de trabalho, da política externa independente etc.
Mas
as mudanças não foram bem-sucedidas na transformação da estrutura econômica, na
sofisticação produtiva, limitando assim o dinamismo do desenvolvimento e a sua
sustentabilidade fiscal. A política macroeconômica continuou desfavorecendo os
investimentos produtivos.
Muito
do que foi conseguido dependeu do boom das commodities. Quando a crise
internacional finalmente chegou e caiu a exportação de produtos de baixo valor
agregado, não tínhamos um modelo alternativo pra prosseguir nas mudanças
includentes.
A
partir de meados de 2014, a recessão foi se desenhando e o período 2015-2016
foi de muita disputa política entre oposição e situação, que resultou na
deposição da presidenta Dilma. O governo Temer inaugura um período novo, de
ofensiva dos interesses ultraliberais. Como resposta à crise, avança-se na
perspectiva do Estado mínimo (reforma fiscal e reforma da previdência), das
privatizações, da desnacionalização, das reformas no mercado de trabalho
(terceirização e reforma trabalhista).
Tais
medidas não têm, no entanto, promovido o crescimento e a inclusão social, ao
contrário. O desemprego é elevadíssimo e
o crescimento, baixíssimo. O País passa a perder protagonismo na comunidade
internacional. Em setembro do ano passado, o presidente Michel Temer criticou
na ONU o nacionalismo exacerbado, mas não defendeu o nacionalismo moderado. É
possível uma nação em desenvolvimento se desenvolver sem um projeto de nação,
que passa por algum modelo de nacionalismo econômico, ainda que não fechado á
globalização?
A
China, a locomotiva da economia mundial atual, é bastante nacionalista. A
esquerda com vocação para o governo precisa equacionar a questão nacional, por
meio de um projeto desenvolvimentista social-democrático e popular, adaptado ao
contexto de globalização, visando à inserção ativa e competitiva na economia
mundial, a elevação da renda per capita das famílias, a inclusão política e a
afirmação dos direitos da cidadania, nas suas diversas facetas.
O
desenvolvimento inclusivo não é apenas um imperativo moral e de justiça social,
é uma questão de segurança nacional, de paz social e é necessário para o
sistema econômico, que depende de mercado de consumo, de renda e de cidadania.
Desenvolvimento
requer liderança política, não meramente liderança individual, mas coletiva. A
experiência histórica do processo de transformação capitalista evidencia que
ele é impregnado de liderança coletiva. Gabriel Cohn observou que Marx e Weber
preocuparam-se com a constituição de um sujeito histórico impactante, portador
de um projeto de ação política que desse um rumo ou um sentido à história.
Marx
destacou as classes sociais, os empresários e os trabalhadores. Weber enfatizou
o papel dos agentes do Estado, ou seja, a burocracia qualificada, mas submetida
à direção dos políticos. Ele destaca a importância do líder carismático, por
exemplo.
Gramsci
pensou sobre a hegemonia, situação política em que há uma força dirigente sobre
a nação, que organiza o consenso. Para ele, o príncipe moderno era o partido
político, que é uma liderança coletiva. A principal liderança coletiva na
história do capitalismo é a coalizão formada entre forças sociais, políticas e
burocráticas, incluindo, obviamente, os partidos.
Entre
as forças sociais, destacam-se os empresários. Em contextos democráticos, com
partidos de esquerda fortes, os trabalhadores também jogaram um papel
importante na modernização social, econômica e política.
As
coalizões dizem respeito à disputa política em torno de determinadas escolhas
de políticas públicas. Essa disputa política e essas escolhas são, sobretudo,
presentes em períodos de crise e de mudança, como mostrou Peter Gourevitch.
As
coalizões estão por detrás da Revolução Industrial, que fez da Inglaterra uma
potência capitalista, assim como nas rotas de modernização, conforme argumentou
Barrington Moore. Elas também explicam o desenvolvimento industrial da
Alemanha, desde sua unificação nacional, o milagre japonês, os diferentes tipos
de welfare state etc.
As
abordagens estruturalistas da economia política argumentam que, no capitalismo,
há uma dependência estrutural do Estado em relação ao capital. As três grandes
rendas, o lucro, o salário e os impostos dependem das relações econômicas,
cujas principais decisões são tomadas pelos empresários. Nesse sentido, há uma
coalizão estrutural entre o Estado e a economia capitalista, que pode assumir
diferentes formas e conteúdos.
Mas,
grosso modo, elas oscilam entre duas grandes tendências, dois grandes modelos
de capitalismo, o intervencionista/desenvolvimentista, por um lado, e, por
outro, o modelo (neo)liberal. Não à toa, há duas grandes teorias econômicas
dedicadas à compreensão e funcionamento do capitalismo: a neoclássica e a
keynesiana. O marxismo apresenta uma teoria crítica fundamental, mas voltada à
transformação socialista.
A
coalizão alternativa à do desenvolvimento inclusivo é a coalizão neoliberal,
que, do ponto de vista ideológico se apoia nos princípios da economia
neoclássica e, em termos socioeconômicos, é composta, em primeiro lugar, pelos
rentistas e financistas. Essa coalizão, cuja origem em escala internacional
remonta aos governos Reagan e Thatcher, está orientando as decisões do Estado
brasileiro desde a posse do governo Temer.
Talvez
a principal encarnação institucional do programa dessa coalizão neoliberal no
Brasil atual seja o documento do PMDB “Uma ponte para o futuro”. O coração e o
cérebro desse programa são os interesses e a racionalidade dos grupos
associados ao rentismo e às finanças. Se olharmos a agenda da CONSIF-CNF e a
agenda do governo, constataremos que elas são idênticas (reforma da
previdência, reforma trabalhista e reforma fiscal no sentido do Estado mínimo).
Essa coalizão também tem implementado medidas de desnacionalização.
A
taxa de investimento público de 2017 deve ser menor que 0,3%. Tem havido queda
da participação do BNDES nos investimentos e aumento relativo de investimentos
com recursos de estrangeiros (IDE). Investimento baixo não alavanca crescimento
e investimento com poupança externa é dependência externa.
Hoje
no Brasil vemos desconstrução do Estado, desnacionalização,
desindustrialização, desemprego alto e aumento da desigualdade, puxado pelo
desemprego, que deteriora o Índice de Gini. Sua trajetória de queda foi
revertida, voltando a subir desde 2016. A política econômica parece ser
inadequada e custosa para alcançar a competitividade e a retomada do
crescimento. Se o Estado e o setor privado não investem, como vamos sair dessa?
Se
os indícios de uma retomada da atividade com a diminuição da capacidade ociosa
progredirem, levarão a que tipo de crescimento, baixo e concentrador de renda,
sem mobilidade social? A austeridade
fiscal está aprofundando o problema fiscal, por ser pró-cíclica. Temos hoje uma
economia fraca, que não gera receita tributária. Estamos privatizando tudo para
fazer receita com a venda de ativos do setor público.
Em
síntese: temos uma forte coalizão política conservadora, no Congresso e na
sociedade civil, destacando-se o capital financeirizado e a burguesia rentista.
O neoliberalismo propõe reformas permanentes, como se o mundo bom sempre
estivesse por vir, desde que reformas infindáveis sejam feitas.
Enquanto
isso, no mundo todo há crescimento baixo e aumento da desigualdade. Cresce a irracionalidade do sistema
econômico. Há no sistema político brasileiro uma separação entre
governabilidade e legitimidade. O presidente Temer é rejeitado pelo modo como
foi investido e pelo péssimo desempenho de sua gestão.
Em
toda a história do Brasil, há um dilema, tanto nos períodos autoritárias como
nos períodos democráticos: de um lado estão o Estado (a política) e a economia
e, de outro, a desigualdade social, ou seja, a sociedade. Temos um sistema
político e um sistema econômico que operam à custa do sistema social. O sistema
político-econômico é de tendência fortemente oligárquica, ao passo que a
sociedade é marcada pela exclusão social.
Uma
nação assim, não solidária, não é promissora em termos de desenvolvimento, de
unidade nacional e de soberania nacional. Precisamos de uma coalizão política
que promova um desenvolvimento inclusivo, econômico e social. A Constituição
Cidadã de Ulysses Guimarães virou coisa do passado. Na aversão liberal ao
populismo oculta-se a aversão ao povo. Enquanto nação, o Brasil é uma
comunidade mal-imaginada. Não à toa emergiu a polarização política.
Por
outro lado, as duas fases mais progressistas em nosso país, quando houve um
melhor arranjo entre os sistemas político, econômico e social e certa
diminuição relativa das tendências oligárquicas foram em períodos democráticos
nos quais a ação estatal foi orientada por ideologias desenvolvimentistas, seja
no populismo de 1945-1964, seja nos governos encabeçados por presidentes
petistas, de Lula a Dilma.
*
É cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na
Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia
https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/a-nacao-das-oligarquias
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