Qual
o segredo da Venezuela? O que explica tamanho ódio do imperialismo
estadunidense e da oligarquia local, que já patrocinaram um golpe fascista em
abril de 2002, um locaute patronal de 63 dias, vários atos de sabotagem e
inúmeras mortes? De onde provem a capacidade de resistência do governo Hugo
Chávez, que desde a vitória eleitoral em dezembro de 1998 enfrenta permanentes
tentativas de desestabilização? O estudo desta rica experiência, marcada pela
originalidade e ousadia, ajuda a decifrar os seus mistérios e a entender o
crescente fascínio que ela desperta junto aos povos latino-americanos. Também
serve de alerta para a urgência da solidariedade à “revolução bolivariana”,
alvo agora de uma nova investida golpista.
O
“referendo revogatório” de 15 de agosto será o próximo teste deste processo de
feições revolucionárias. E o seu resultado não afetará apenas a nação vizinha.
Sinalizará o próprio futuro da luta pela democracia, soberania e justiça social
dos despossuídos da região. Afinal, a “revolução bolivariana” condensa hoje a
rebeldia do continente contra a globalização neoliberal. Se vencer o “sim” à
revogação do mandato de Hugo Chávez, a ofensiva do “império do mal”, liderada
pelo torturador George Bush, ganhará um novo impulso. O resultado será
interpretado pela esquerda claudicante como sinal de que “não há alternativa”
ao neoliberalismo. Se vencer o “no”, as vias abertas na América Latina serão
bem mais promissoras.
Marca da
originalidade
Gilberto
Maringoni, autor de A Venezuela que se inventa [1], foi certeiro ao abrir seu
livro com um poema de Simón Rodrigues (1769-1854), mestre do libertador Simón
Bolívar [2]. “Onde buscaremos modelos? A América espanhola é original.
Originais hão de ser suas instituições e seu governo. E originais os meios de
fundarem umas e outro. Ou inventamos ou erramos”. A experiência da “revolução
bolivariana” tem a marca da originalidade, que desafia dogmas e modelos
pré-estabelecidos. Talvez por isto tenha esbarrado em tantas incompreensões de
setores da intelectualidade progressista e da esquerda mundial, temerosos com a
inexistência de correntes políticas nitidamente socialistas e a forte presença
da componente militar.
Mas,
a exemplo de outros processos revolucionários, a experiência venezuelana tem
suas peculiaridades, decorrentes da história e da cultura deste sofrido povo;
e, mais do que isto, ela está em pleno movimento dialético, evoluindo com o
tempo. Como gosta de enfatizar Hugo Chávez, citando Bolívar, “sou apenas uma
débil palha arrastada pelo furacão revolucionário”. Grosso modo, a revolução
bolivariana emana da resistência ao desmanche neoliberal, expressa na rebelião
popular de fevereiro de 1989, o Caracazo, e no levante militar de fevereiro de
1992, que projetou a figura do jovem tenente-coronel Hugo Chávez; e ganhou uma
dinâmica acelerada com a sua vitória eleitoral em dezembro de 1998, com 56,2%
dos votos.
No
início deste processo não ficaram nítidos os seus contornos. O programa do
Movimento V República (MVR), agremiação eleitoral fundada por Chávez apenas um
ano antes do pleito, era taxativo na defesa da soberania nacional; do uso da
principal riqueza do país, o petróleo, para o bem-estar social; da integração
das nações latino-americana. Mesmo assim, era bastante genérico ao definir os
rumos destas mudanças. A alternativa ao modelo neoliberal, que havia levado à
miséria milhões de venezuelanos, não era nítida nem consistente. Os limites e o
fôlego deste projeto com forte viés nacionalista também não eram previsíveis.
O
próprio Hugo Chávez, que sempre se apresentou como um ferrenho inimigo do
receituário neoliberal, nunca explicitou o seu perfil ideológico. Em entrevista
à socióloga Marta Harnecker chegou a teorizar: “Um capitalismo selvagem, como o
qualifica o papa João Paulo II, não é humanizável. Mas, no caso venezuelano,
com um governo como este, com uma Constituição como esta, com um povo que
despertou como o nosso, com uma correlação de forças como a que temos, sim, é
humanizável” [3]. Ao explicitar as bases teóricas do seu movimento, ele
enfatiza que “a ideologia bolivariana está sustentada por princípios
revolucionários, sociais, humanistas e igualitários... A ideologia bolivariana
é antineoliberal”.
Ainda
segundo Marta Harnecker, atenta estudiosa desta experiência sui generis, o
processo bolivariano pode ser “catalogado ideologicamente como algo indefinido,
porque não assume o marxismo como sua ideologia orientadora. É preciso aclarar,
porém, que embora não se declara marxista, ele tampouco se declara
antimarxista... Chávez busca fundamentar o seu projeto num ideário enraizado
nas tradições nacionais... Trata-se de um núcleo ideológico democrático, que
reivindica a soberania nacional, que é antiimperialista e antioligárquico;
núcleo que, sem dúvida, é necessário enriquecer e aprofundar, mas que já contém
um conjunto de idéias-chaves para potencializar o avanço do processo
revolucionário” [4].
Cautela na
economia
Eleito
em dezembro, Hugo Chávez tomou posse em 2 de fevereiro de 1999 num país
devastado por uma grave crise econômica. A queda abrupta do preço do petróleo
precipitara a recessão. O barril de petróleo, que custava US$ 21,91 em janeiro
de 1997, despencou para US$ 8,74 em dezembro de 1998. Totalmente dependente
deste produto, a Venezuela afundou na pior degradação social da sua história.
No discurso de posse, o novo presidente fez questão de espinafrar a herança
maldita do neoliberalismo ao denunciar a existência de “uma taxa de desemprego
real de 20%, que desmente as cifras oficiais de 11%, uma taxa de subemprego de
50% e um índice de mortalidade infantil de 28 por cada mil nascidos vivos”.
Diante
da situação de vulnerabilidade da nação e do contexto mundial de hegemonia do
neoliberalismo, Chávez optou por uma postura extremamente cautelosa no terreno
econômico. No discurso de posse, ele procurou acalmar o deus-mercado. “Nós
somos gente séria, o governo é um governo sério, que respeitará os acordos que
se assinem e os investimentos internacionais que aqui chegarem... Nosso projeto
não é estatista e nem tampouco vai ao extremo do neoliberalismo. Buscamos um
ponto intermediário, de tanto Estado quando seja necessário e tanto mercado
quanto seja possível. A mão invisível do mercado e a mão visível do Estado”.
Desejava evitar novas turbulências econômicas e estancar a crescente fuga de
capitais.
Este
objetivo pragmático norteou o início do seu mandato. Tanto que ele preservou no
cargo de ministra das Finanças uma antiga servidora do governo neoliberal de
Rafael Caldera. O continuísmo também ficou patente na manutenção da política
cambial, na introdução de duras medidas de ajuste fiscal e, inclusive, no
compromisso de “reforçar o Banco Central em sua autonomia funcional, financeira
e administrativa”. Como observa Maringoni, “os seculares privilégios das castas
abastadas quase não foram tocados, os contratos mundiais firmados anteriormente
são respeitados e o serviço da dívida pública segue sendo pago sem contestação”.
O governo sequer reviu o nefasto programa de privatizações das estatais, que
resultara na entrega das empresas de telecomunicações (Cantv), siderurgia
(Sidor) e aérea (Viasa), entre outras.
Num
primeiro momento, esta postura cautelosa até chegou a tranqüilizar as raivosas
elites locais e levou o imperialismo a acreditar num possível enquadramento do
novo governo. O jornalista inglês Richard Gott registra que, em 1999, “o
embaixador dos EUA em Caracas, John Maisto, passou a maior do seu tempo tentando
convencer Chávez a subscrever o tratado de promoção e proteção do investimento
estrangeiro, que todos os demais países latino-americanos se viram obrigados a
assinar”. O decreto 356 foi baixado em 3 de outubro para “prover investimentos
e investidores, tanto nacionais como estrangeiros, de um marco jurídico
previsível, no qual estes e aqueles possam desenvolver-se num ambiente de
segurança”.
Ousadia na
política
Mas
se no terreno econômico predominou o continuísmo, Hugo Chávez apostou suas
fichas em radicais mudanças no campo político. De forma planejada e ousada,
buscou alterar a correlação de forças no país. Como não foi eleito num processo
de ascenso do movimento social e nem possuía sólidas bases políticas, priorizou
a mobilização popular para destruir as apodrecidas estruturas de poder. Desde
janeiro de 1958, quando foi firmado o Pacto de Punto Fijo, a oligarquia local
exercia rigoroso domínio no país, isolando a esquerda, cooptando o sindicalismo
e compartilhando os aparatos estatais entre a Ação Democrática (AD,
social-democrata) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente
(Copei, social-cristão).
Hugo
Chávez decidiu deflagrar sua “revolução bolivariana” implodindo este edifício
de poder excludente, viciado e corrupto. Num curto espaço de tempo, o novo
governo promoveu seis pleitos nacionais com este intento: um plebiscito para
convocar a Assembléia Constituinte; eleição dos deputados constituintes; nova
eleição para presidente da República e governadores; referendo para aprovar a
nova Constituição; eleição para prefeitos; e um plebiscito sobre a estrutura
sindical. Ao mesmo tempo, costurou uma aliança cívico-militar que aproximou as
Forças Armadas do povo. Numa operação delicada, Chávez se equilibrou entre a
orientação econômica conservadora e a ação política radicalizada visando
reforçar o papel do Estado.
A
sua opção foi distinta de outros processos revolucionários no continente. No
Chile, Salvador Allende adotou de imediato medidas econômicas estatizantes com
base num programa que pregava a transição pacífica para o socialismo. Já a
revolução bolivariana optou por um caminho bastante original, colocando em
primeiro plano as mudanças institucionais. A prudência inicial no campo
econômico foi compensada por uma ação radicalizada no terreno político.
Evidente que esta opção refletia as mudanças na correlação mundial de forças,
com a derrota do bloco soviético, a defensiva estratégica do proletariado e a
ofensiva neoliberal sob o império dos EUA. Chávez gosta de comparar estas
experiências, mas ressalta: “Enquanto a revolução chilena era pacífica e
desarmada, a nossa, com o apoio do Exército, é pacífica e armada!”.
O
imperialismo estadunidense e a oligarquia racista local, temendo perder seus
privilégios, logo acusaram o tranco. A partir das acaloradas discussões na
Constituinte, a oposição reacionária não dá mais trégua ao governo. Há uma
inflexão no quadro político. Na Constituinte, concluída em dezembro de 99, a
maioria bolivariana amplia a democracia, incorporando várias formas de
participação popular – inclusive o inédito “referendo revogatório”, fixado no
artigo 72. A nova Constituição define as bases para a reestruturação do
corrompido Poder Judiciário e altera o nome do país para República Bolivariana
da Venezuela – num ato de enorme simbolismo. Ela ainda amplia os direitos
sociais e incorpora as demandas indígenas. Em 15 de dezembro de 1999, um
referendo popular ratifica a nova Constituição com 71% de aprovação.
Momento de
viragem
Outro
momento de virada se deu em 13 de novembro de 2001, quando o presidente Chávez
anunciou, em cadeia nacional de rádio e TV, um ousado programa de mudanças.
Após intensa consulta à sociedade e a aprovação no parlamento, o governo
ratificou 49 leis – entre elas, da Terra, Pesca e Hidrocarburantes. “O ato
representou um verdadeiro cataclismo nos rumos da administração pública. O
governo intervinha, de uma penada, em inúmeros dos pontos mais sensíveis da
vida nacional, buscando concretizar vários itens da Constituição aprovada dois
anos antes”, comenta Gilberto Maringoni.
Este
pacote de medidas legislativas representou duro golpe na oligarquia. A Lei de
Terras, com seus 281 artigos, afirma na exposição de motivo que “A Constituição
pretende implantar os meios necessários para a eliminação integral do regime
latifundiário, como sistema contrário à justiça, ao interesse geral e à paz
social no campo”. Ela é incisiva contra as terras ociosas, exigindo a
comprovação de seu uso, e fixa duros mecanismos para a sua expropriação. Já a
Lei de Pesca restringe a ação predatória das corporações empresariais,
ampliando de 3 para 6 mil a faixa marítima da pesca artesanal. O seu objetivo
declarado é garantir “os 40 mil empregos diretos e os 400 mil indiretos” dos
pescadores e defender o ecossistema.
Se
estas e outras medidas atiçaram os proprietários, a Lei dos Hidrocarburantes
provocou o ódio da elite parasitária e do imperialismo. Ao centralizar o
controle estatal da atividade petroleira, mexeu na sua mina de ouro. Ela define
que a exportação do petróleo, que antes servia apenas para enriquecer a ínfima
parcela da sociedade, iria propiciar “o financiamento da saúde, educação, fundo
de estabilização macroeconômica e investimento produtivo, de maneira que se
obtenha apropriada vinculação do petróleo com a economia nacional, toda ela em
função do bem-estar do povo”. Com 68 artigos, a lei reduz a autonomia da
poderosa PDVSA (Petróleos da Venezuela S.A.), que sempre foi considerada “um Estado
dentro do Estado” [5].
O
conjunto destas leis significou uma guinada nos rumos da nação e selou o fim da
convivência pacífica com a elite dominante, que promove o primeiro locaute
patronal em dezembro de 2001. Através da mídia panfletária, ela passa a
preparar freneticamente o fracassado golpe fascista de abril de 2002. O país
passa, então, a ser o principal pólo de resistência no continente ao
neoliberalismo e ao imperialismo. Em meio às duras refregas, ocorre uma notável
alteração do programa econômico. Segundo Maringoni, “caso raro, na América
Latina, de uma administração pública que, em meio a intermináveis tentativas de
inviabilização, caminha do centro para a esquerda. De uma dinâmica difusa para
uma maior nitidez de conduta”.
Notas
1-
Gilberto Maringoni. “A Venezuela que se inventa”. Editora Perseu Abramo, SP,
2004. “A melhor obra publicada até aqui sobre o tema”, segundo Emir Sader, este
livro é a principal fonte desta série de artigos.
2-
Simón Bolívar (1783-1830) foi o estrategista da luta contra a dominação
espanhola na América Latina. Oriundo da oligarquia, ele liderou a independência
da Venezuela, sendo eleito seu presidente aos 37 anos. Internacionalista,
dirigiu a guerra de libertação que resultou na fundação da Colômbia, Peru, Equador
e Bolívia. Republicano e abolicionista, em 1816 extingui a escravidão na
Venezuela. Em 1813 é aclamado “O Libertador”. Intelectual de vasta obra, ele
escreveu: “Eu desejo, mais que qualquer um, ver formar-se na América a maior
nação do mundo, menos por sua extensão e riqueza que por sua liberdade e
glória”.
3- Marta Harnecker.
“Hugo Chávez, un hombre, un pueblo”. Editora Mepla, Havana, 2002.
4- Marta Harnecker.
“Venezuela: una revolución sui generis”. Mimeo, janeiro de 2003.
5- Pablo Hernández.
“Petróleo: a razão principal dos EUA para derrubar Chávez”. Vermelho, 03/06/04.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2017/08/venezuela-uma-experiencia-sui-generis.html
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