Em
1973, o clima de agitação nas ruas chilenas demonstrava que algo estava para
acontecer. Enormes manifestações de apoio ao governo popular de Allende eram
contraste às grandes marchas organizadas por seus opositores de direita. O
cenário, que culminaria em um golpe militar, alçando o ditador Pinochet ao
poder, é magistralmente retratado no premiado documentário “A Batalha do
Chile”, do então jovem Patricio Guzmán. E, assistindo às cenas, é impossível
não fazer uma ligação com os fatos que ocorrem na Venezuela de hoje.
As
gravações se iniciam no dia das eleições parlamentares chilenas, em 1973, sob o
governo de Allende, eleito em 1970 pela Unidade Popular (UP), coalizão
esquerdista. O país passava por uma grave crise econômica que resultava em
desabastecimento e era amplamente explorada pela imprensa e pelos
oposicionistas de direita do Partido Democrata Cristão (PDC) e do Partido
Nacional (PN). Manifestantes da oposição saíam às ruas bradando contra o
“marxismo que destruía o país”. Do outro lado, trabalhadores organizados faziam
coro em defesa da UP, que, no governo, propunha reformas de base e uma
verdadeira revolução popular.
O
PN e o PDC não escondiam seu objetivo. Queriam, naquele dia, conquistar 2/3 das
cadeiras do Parlamento, o que lhes daria poder para destituir Allende. E antes
mesmo da divulgação dos resultados, a imprensa já noticiava a vitória da
direita, que logo saiu às ruas em comemoração. Mas o resultado final fica aquém
do esperado, a esquerdista Unidade Popular conquista mais de 43% dos votos e
mela o plano da oposição. No mesmo dia, mesmo com a maioria simples conquistada,
PN e PDC passam a alegar fraude eleitoral, inflando os protestos oposicionistas
nas ruas, que se tornam violentos.
A
partir daí, a oposição adota uma nova postura: não deixaria Allende governar. E
intensifica o terrorismo comercial, criando um desabastecimento artificial cada
vez maior. Em resposta, o governo fortalece as Juntas de Abastecimento e Preço
(JAP), responsáveis por fiscalizar a distribuição de produtos básicos e
denunciar especuladores. Tais órgãos descobrem imensas quantidades de estoque desses
insumos escondidas em estabelecimentos comerciais, servindo à especulação e ao
mercado negro, e os redistribuem entre a população, que forma filas imensas
para compra-los.
No
âmbito político, parlamentares eleitos do PN e do PDC levam à frente sua
promessa de não deixar a UP governar. Usando sua maioria simples, passam a
perseguir Ministros e outras autoridades do Governo, como o Ministro da
Economia, responsável por gerir as JAP, que distribuíam comida para a
população. Nessa caça às bruxas, sem maiores provas, conseguem destituir 2
autoridades e 7 Ministros em apenas 3 meses. A oposição só sossegaria quando,
ao propor a destituição de todos os Ministros do governo, teve de lidar com uma
imensa manifestação popular convocada pela CUT chilena.
Mas
o boicote ao governo não parava aí. Visando a acabar com a crise de
desabastecimento artificialmente criada pela oposição e pelos donos dos meios
de produção, Allende expropria 49 indústrias que boicotavam a própria produção.
O Congresso prontamente reage, aprovando uma reforma que invalida as
expropriações e retira o direito de veto do Presidente do país. Amparado nos
trabalhadores que reclamavam das práticas patronais e apoiavam a medida,
Allende recorre ao Tribunal Constitucional sem sucesso.
Durante
os 6 meses que antecederam o golpe, a oposição parlamentar ainda barraria
vários outros projeto da UP. Sem apresentar qualquer outro plano alternativo de
governo, PN e PDC barrariam a lei que puniria os crimes econômicos que causavam
o desabastecimento do país, a lei que garantiria a participação de operários em
fábricas e tornaria as empresas autogestionárias, a criação de dois Ministérios
e o reajuste de salários.
Ao
mesmo tempo, nas ruas, surgia o grupo fascista “Patria y Libertad” que,
portando escudos e capacetes e contando com a participação de estudantes da
Universidad Católica (os “filhos da burguesia”), agiria para causar distúrbios
e criar instabilidade através da violência. Eram patrocinados por entidades
patronais como a Sociedade Nacional da Agricultura e a de Fomento Fabril.
Tinham o apoio de ex-agentes da CIA e do Departamento de Estado dos EUA. Aliás,
o próprio governo americano já liberou documentos que confessam a participação
dos EUA no golpe chileno.
Nesse
cenário, os ânimos se acirram. Estudantes contrários à reforma educacional,
muitos deles da Universidad Católica, juntam-se à oposição. Por outro lado,
trabalhadores saem às ruas em defesa de Allende. Em 27 de abril, em um ato
convocado pela CUT, ao passar em frente à sede do PDC, a multidão sofre um
ataque com armas de fogo onde um trabalhador morre.
Nesse
período de organização de trabalhadores em torno de sindicatos e em defesa do
governo, as organizações patronais reagem. Donos de ônibus decretam greve
indeterminada, enquanto operários respondem usando caminhões de suas fábricas
para trabalharem. Ao mesmo tempo, as Forças Armadas enviam carta pública ao
presidente para avisa-lo de que agiriam de forma autônoma se ele desrespeitasse
a Constituição.
O
movimento de oposição se intensificaria, então, com a greve dos trabalhadores
da mina de cobre de El Teniente. Foi a primeira grande participação de um setor
proletário na oposição, em uma mina que era responsável por 20% das divisas do
Chile. Vale lembrar que, até hoje, a extração de cobre é a principal atividade
das finanças chilenas e que, dois anos antes, em 1971, o cobre tinha sido nacionalizado
pelo governo de Allende. A greve, porém, tinha adesão de uma minoria, sendo que
pelo menos 60% dos mineradores continuaram trabalhando durante ela. Apesar
disso, a imprensa inflava o movimento grevista e ignorava que a maioria dos
mineradores apoiava o governo.
A
greve não se expandiu para outras minas importantes do país e, apesar de
receber apoio e adesão de comerciantes e donos de transportadoras, perdeu força
e se encerrou em junho. Nas cidades os conflitos aumentavam, mas o
trabalhadores organizados em torno da UP e em defesa do governo popular de
Allende se somavam. Da mesma forma, as manifestações oposicionistas que partiam
da PDC tinham boa adesão.
Após
esgotar todas as formas de impedir que Allende governasse, com lock-outs
patronais, o boicote parlamentar, o uso das mídias tradicionais para propagar
desinformações e o desabastecimento artificial, a oposição finalmente lançaria
mão de seu último recurso. No fim de junho, faria uma tentativa frustrada de
golpe ao tentar atacar o Palácio de La Moneda. Na ocasião, as Forças Armadas
ainda não tinham firmado uma posição golpista, e a tentativa falhou.
Seguiram-se
mais de dois meses de uma iminente guerra civil, quando trabalhadores discutiam
seriamente a hipótese de pegar em armas para defender o governo, até que a
direita desse sua cartada final. Com amplo apoio das Forças Armadas, em 11 de
setembro de 1973, a direita chilena bombardeia o Palácio de La Moneda, causa a
morte de Allende e finalmente concretiza o golpe militar que, em poucos meses,
colocaria o ditador Pinochet no poder.
Todos
sabemos as consequências desse golpe, não muito diferentes das ocorridas no
Brasil na mesma época. Entreguismo, endividamento, inflação e um colapso
econômico ao fim do regime. Hoje, também é possível olhar para trás e perceber
que confiar em instituições da democracia liberal foi um grande erro tático da
Unidade Popular. Quando a primeira tentativa de golpe militar ocorreu,
mostrando que tais instituições não desistiriam de minar o poder popular,
Allende deveria ter seguido o conselho do povo de dissolver o Parlamento e
armar os cordões e as comunas populares. Não o fez por medo de ver o
radicalismo legitimar a intervenção, mas o golpe aconteceu mesmo assim.
Guardadas
algumas peculiaridades, causa espanto, mesmo, as semelhanças que esse cenário
pré-golpe chileno traz com o caso atual da Venezuela.
Assim
como o Chile, que nacionalizou o cobre em 1971, a Venezuela também passou por
um processo de nacionalização do petróleo. Ambos os países possuem,
respectivamente, grandes quantidades desses produtos, e suas economias são
centradas em suas explorações. Na Venezuela, essa estatização, inclusive,
impulsionou a direita a uma tentativa de golpe violenta e frustrada em 2002.
Em
ambos os casos, a medida atraiu a atenção do governo dos EUA, que já admitiu,
por meio da liberação de documentos, a interferência da CIA no golpe chileno e,
hoje, financia abertamente grupos da direita venezuelana.
A
Venezuela, em 2015, viu os partidos de direita conquistarem uma maioria no
Parlamento e, como no Chile de 73, essa oposição jurou publicamente, desde as
eleições, que tinha o único objetivo de derrubar o presidente. Como no Chile,
os venezuelanos também passam por uma grave crise econômica e de
desabastecimento, para muitos, causada artificialmente pelo empresariado
opositor.
Talvez
inspirado nas JAP’s de Allende, Maduro criou os Comitês Locais de Abastecimento
e Produção (CLAP’s) para combater o problema. Alguns desses Comitês, inclusive,
já sofreram atentados pela direita onde foram queimadas toneladas de alimentos.
A
situação venezuelana também se assemelha à chilena quando analisamos a
organização popular nas manifestações. Nos últimos anos, na Venezuela,
formaram-se grupos de direita, que as vezes utilizam até armas de fogo, para
dar um tom mais violento aos protestos contra o governo, assim como fazia o
“Patria y Libertad” no Chile. Por outro lado, ao exemplo chileno, há uma imensa
quantidade de organizações comunais e trabalhistas dispostas a defender o
bolivarianismo venezuelano.
Tanto
no Chile de 73 quanto na Venezuela de hoje, a situação não é simples como a
mídia tradicional tenta demonstrar.
Um
país é formado por uma série de correlações de forças e, como o exemplo chileno
já mostrou, nem sempre um Presidente representa o lado mais forte. Na
Venezuela, a oposição tem os donos dos meios de produção, o capital financeiro
e o apoio americano, e vem recusado todos os chamados ao diálogo que existiram
por parte do governo.
Como
no Chile pré-golpe, políticos da direita venezuelana são donos dos principais
veículos de mídia do país e, desde a vitória de Chávez, os usaram para difundir
informações falsas e denunciar fraudes eleitorais que nunca existiram. Tudo
indica que o interesse popular, porém, continua do lado bolivariano, que
concentra, principalmente, as camadas mais pobres e de trabalhadores do país.
No
Brasil, triste mesmo é acompanhar que parte da nossa esquerda não aprendeu com
antigos erros e parece se amedrontar ao ouvir a primeira crítica de um grande
jornalão.
Como
disse Gilberto Maringoni, não há nuances na Venezuela, nem um muro em que se
possa ficar em cima de modo confortável. Há, sim, a iminência de uma guerra
civil e de uma intervenção externa imperialista as quais a oposição venezuelana
deseja desde que se viu incapaz de retornar ao poder.
A
esquerda brasileira deve se organizar em torno de projetos populares, não de
espantalhos que nada constroem. Devem também reconhecer que enxergar terceiras
vias onde elas não existem significa apenas dar-se o privilégio do conformismo
e do distanciamento. Sua fragmentação e sua obediência a regras criadas pelo
capital sempre levaram a sua derrota.
Que
a morte de Allende não esteja fadada a se repetir eternamente na história
latina.
Almir Felitte é
advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo.
*Artigo baseado no
documentário “A Batalha do Chile”, de Patrício Guzman, e no vídeo produzido
pela QuatroV.
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/03/quantos-allendes-devem-morrer-para-o-povo-latino-perder-vergonha-de-se-defender/
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