No
segundo turno da última eleição presidencial, na fila de espera para votação,
num bairro ocupado pela alta burguesia da cidade de São Paulo, ouvi rapazes
galhofeiros afirmarem que, se Dilma Rousseff fosse reeleita, grupos organizados
através das redes sociais a arrancariam à força do poder! Um ano e meio depois,
sem precisar fazer uso da agressão física, mas não sem deixar de exibir a
prepotência que lhes é peculiar, esses grupos contribuíram para a deposição da
presidenta.
Poucos
dias antes da votação, a revista "Veja", publicada, excepcionalmente,
numa sexta-feira, estampava na sua capa as imagens de Dilma e de Lula ao lado
de uma manchete grafada em letras vermelhas: "Eles sabiam de tudo".
Tratava-se da acusação feita pelo doleiro Alberto Youssef para os promotores da
Lava Jato. Colocava-se em prática a divulgação das delações premiadas para a
grande imprensa, uma estratégia que o juiz Sérgio Moro, em seu artigo
"Considerações sobre a operação Mani Pulite", afirma ter sido
fundamental nessa ação judiciária italiana de combate à corrupção.
Não
me parece necessário repassar todos os fatos da recente história da política
brasileira, porém, está claro que vários grupos organizados através das redes
sociais, alguns deles, coordenados por jornalistas que atuam na grande
imprensa, ganharam força com a divulgação dessas delações, a maior parte delas,
fruto de vazamentos pontuais. Entre as estratégias para aumentar a
popularidade, esses grupos insistiram, e ainda insistem, em apresentar Lula e o
PT como únicos responsáveis, não só pela corrupção e pela crise econômica, mas
por todo mal que possa existir nesse país.
Em
resposta a essa campanha que uniu parte do judiciário, a grande imprensa, a
burguesia e os partidos políticos conservadores, foram às ruas os movimentos
sociais, as centrais sindicais, os artistas, os intelectuais e os estudantes,
num primeiro momento, para lutar pela democracia; num segundo momento, para
lutar pelos direitos trabalhistas ameaçados por aqueles que assumiram o governo
federal após a deposição da presidenta.
UMA
RADICAL POLARIZAÇÃO DAS CONVICÇÕES PASSOU A ACIRRAR OS ÂNIMOS DOS BRASILEIROS
DE TODAS AS CLASSES E IDADES. AS REDES SOCIAIS, FERRAMENTA DE COMUNICAÇÃO E DE
CIRCULAÇÃO DE OPINIÕES QUE NÃO EXISTIA NA ITÁLIA NO PERÍODO DA OPERAÇÃO,
FUNCIONOU COMO UM EFICIENTE MEIO DE DIVULGAÇÃO E DE PROMOÇÃO DAS PRISÕES
COERCITIVAS E DAS DELAÇÕES DA LAVA JATO. EM MUITOS CASOS E DE VARIADAS
MANEIRAS, ESSA POLARIZAÇÃO PROVOCOU MANIFESTAÇÕES DE INTOLERÂNCIA E DE ÓDIO,
SEJA PELAS PRÓPRIAS REDES SOCIAIS, SEJA NOS ENCONTROS DE GRUPOS QUE SUSTENTAM
POSIÇÕES CONTRÁRIAS.
Coincidentemente
ou não, alguns dos elementos utilizados na fermentação desse ódio social
fizeram parte da estruturação do ódio fomentado pelo fascismo hitlerista. Antes
de tudo, salta aos olhos a incorporação da estratégia de apresentar uma única
causa para todos os males sociais. Num livro escrito antes da sua ascensão ao
poder, Hitler argumenta que a capacidade de assimilação de ideias e a inteligência
das grandes massas são muito limitadas, desse modo, toda propaganda deve focar
num único ponto, até que cada indivíduo incorpore e acredite na mensagem que
lhe é apresentada.
Para
o historiador Alcir Lenharo, a eficiência da propaganda nazista provém do fato
de ela ter conseguido convencer a população de que os judeus eram os
responsáveis pelo estado caótico do país. Essa propaganda forjou um espírito
nacionalista que transpassou o horizonte das classes sociais. A Alemanha como
um todo enfrentou uma grave crise econômica após a primeira guerra. No entanto,
a situação dos trabalhadores cujos salários mal lhes permitiam alimentar suas
famílias era muito diferente da situação dos grandes empresários que apoiaram
Hitler desde o primeiro momento.
Palavras de ordem, memes
e posts
Em
cartazes colados nos muros e nas repartições públicas, estratégia chamada de
"Die Parole der Woche" (A palavra de ordem da semana), uma propaganda
semelhante aos atuais "posts" veiculados nas redes sociais (uma
imagem, uma frase, um inimigo), os nazistas tentavam fixar mensagens de ódio
nas mentes de todos. Essas mensagens deveriam reforçar o maniqueísmo que Hitler
imagina marcar a forma comum do povo pensar e se posicionar. Era importante
que, ao incorporarem essas palavras de ordem, as pessoas tivessem a impressão
de estar defendendo suas próprias opiniões.
Pela
interpretação de Gilbert Badia, germanista que viveu na Alemanha nos anos em
que Hitler esteve no poder, a principal característica do fascismo, tanto o
alemão quanto o japonês e o italiano, bem como de muitos regimes totalitários,
foi sustentar medidas políticas e econômicas eminentemente conservadoras. Na
experiência nazista, essas medidas implicaram no aumento da desigualdade
econômica atrelada à maior exploração da força de trabalho.
No
final dos anos trinta, aos grandes empresários alemães, como Gustav Krupp,
então presidente da Associação da Indústria Alemã, interessava não pagar a
conta da crise econômica e deter o crescimento político do partido comunista. Com
o término da segunda guerra, Gustav e seu filho Alfried foram condenados no
processo de Nuremberg por imporem, em suas indústrias, o trabalho escravo a
centenas de crianças encarceradas nos campos de concentração.
Questionado
no processo sobre seu apoio a um governo que praticou tantos horrores, Alfried
Krupp respondeu: "Afirmo que ignorava a matança aos judeus; de todo modo,
quando se compra um bom cavalo não se deve olhar os pequenos defeitos".
Quero
crer que a humanidade não toleraria um novo Holocausto, no Brasil ou em
qualquer outro lugar. Ainda assim, é preocupante o uso de estratégias
propagandísticas que estimulam o ódio social. Não há nenhuma dúvida de que o
combate à corrupção é absolutamente necessário! Talvez, a médio ou a longo
prazo, esse processo consiga promover mudanças relevantes na administração
pública. Todavia, superado esse momento de teatralização da política, é preciso
que os trabalhadores retomem o discurso em defesa dos seus direitos e
participem, realmente, da política.
Especial para
Jornalistas Livres
*Paulo
Henrique Fernandes Silveira, 48 anos, é professor e pesquisador na Faculdade de
Educação da USP. Coordena o Grupo de Estudos sobre Educação, Filosofia,
Engajamento e Emancipação.
https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/311974/O-fascismo-dos-nossos-tempos.htm
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