Tínhamos
saído, pelos critérios da ONU, do mapa da fome, e, vergonhosamente, para lá
voltamos a passos largos. A chamada elite que fez o golpe e seu governo coloca
em prática políticas de Estado destrutivas de direitos elementares, e para
dizer o mínimo, irresponsável, mas, sobretudo, cruel, escreve Walquiria
Domingues Leão Rego, professora titular de Teoria Social no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e autora do livro Vozes do Bolsa
Família - Autonomia, Dinheiro e Cidadania (Ed Unesp, 2013), em artigo publicado
por GGN, 16-08-2017.
Eis o artigo.
Espero
que as pessoas de bem saibam que cortar a Bolsa Família das pessoas
extremamente pobres do Brasil poderá produzir um verdadeiro genocídio, porque
em sua grande maioria, em especial nos sertões, estes brasileiros poderão
morrer de fome e das doenças derivadas da subnutrição. As pessoas atingidas são
normalmente muito pobres habitantes de regiões, de modo geral, dominadas por grandes
propriedades, em que a oferta de empregos é mínima. São brasileiros que
tradicionalmente foram por gerações e gerações abandonados pelo Estado
brasileiro, não tiveram escolaridade e tudo o mais que faz de uma sociedade não
um amontoado de pessoas mais uma nação.
O
Bolsa família e suas condicionalidades, como a obrigação da família de vacinar
as crianças e colocá-las na escola, produziram resultados muito bons. As
crianças, mais bem alimentadas, cresceram, adoeceram menos, e, assim, as taxas
de mortalidade infantil caíram enormemente. A tuberculose infantil quase
desapareceu, antes matava muito as crianças antes de um ano de idade. Afora
outros benefícios que a renda dinheiro, mesmo muito pequena, trouxe às mulheres
pobres em termos de expansão da liberdade pessoal. Ou seja, a positividade do
programa é reconhecida em todo o mundo. Não se pode esquecer que a dinâmica de
um programa imenso como o Bolsa Família exigiu o tempo todo correções no
sentido de torná-lo mais justo e eficiente.
Não
é demais sublinhar que a busca de sua melhoria foi uma constante, Prova disto
foram os aperfeiçoamentos de sua gestão e amplitude distributiva.
O
programa foi-se aperfeiçoando ao longo dos anos, com a criação de programas
transversais como, Brasil Carinhoso, dirigido as mulheres grávidas, com os
cuidados de exames pré natais e o programa de amamentação- Brasil nutriz, ambos
trouxeram benefícios muito grandes a saúde das crianças. Tal fato foi
comprovado por pesquisadores médicos. Por tudo isto, o programa Bolsa Familia
recebeu inúmeros prêmios internacionais, inclusive da própria ONU.
Os
cortes já feitos ao programa pelo governo ilegítimo de Michel Temer tiveram
como justificativa correção de desvios o que representa uma grande mentira.
O
combate as fraudes foram permanentes, houve premiações internacionais por isto.
Não é pouca coisa ter tido muito controle sobre fraudes, que sempre ocorrem,
mas no caso do Bolsa Familia, estatisticamente, foram relativamente raras. Não
é ninharia para um programa-o maior do mundo- em dimensão populacional e
distributiva, que administrava quase 50 milhões de brasileiros, ter garantido
grande transparência tanto no seu modus operandi como nos seus critérios
distributivos.
Cortar
uma família do beneficio exige cuidados na verificação da sua condição de
trabalho e vida familiar, desde que a solidariedade e a responsabilidade moral,
política e administrativa forem os critérios centrais das políticas de correção
de possíveis desvios de cadastramento e execução da política pública. Porquanto,
quem faz pesquisa sabe que a população assistida pelo programa de transferência
estatal de renda só consegue empregos eventuais e muito precários, até porque
esta população é muito destituída de escolaridade e de qualificação
profissional.
Depende
do mês do ano se pode adquirir um trabalho episódico, um bico, como dizem eles,
um “beliscão”, e, assim, naquele período determinado, obter um aumento dos
parcos rendimentos.
Desta
feita. é necessário todo cuidado na averiguação antes de se promover cortes de rendimentos.
Os aumentos da renda, na maioria das vezes, são sazonais e depois de uma
colheita ou outra se pode permanecer um tempo longo sem nenhuma renda.
O
PBF, pela primeira vez na história destas pessoas, na maioria dos casos,
proporcionou continuidade de renda, e, assim, tornou possível a gestão racional
do orçamento familiar. Um aprendizado duro, pois a renda é muito pequena, mas
estava sendo feito e com bons resultados. Por outro lado, se deve analisar os
efeitos coletivos da renda monetária contínua para o país. Isto estimulou muito
os mercados locais, às vezes expandindo-os significativamente.
Certa
vez em conversa com o prefeito de Inhapi, uma pequena cidade no Alto Sertão
alagoano, disse-me ele que o comercio da cidade havia crescido enormemente,
depois da chegada do Bolsa Família. Naquele ano, 2007, havia trazido para a
cidade mais de 250 mil reais ao mês e este aporte de dinheiro, obvio, havia se
convertido em ampliação significativa das receitas da cidade.
Isto
posto, vem a pergunta que se pergunta, como diz Riobaldo. O que justifica
cortar os recursos destas pessoas? Nada, apenas crueldade social para responder
à sanha preconceituosa e mal informada da classe média paneleira. Na verdade,
tornar ainda mais garantido o saque a nação para ampliar os lucros de rentistas
de todos os naipes.
O
feito inacreditável dos cortes é sua absurda lógica. Ora, tais cortes
empobrecerão ainda mais os municípios que abrigam esta população, tornando-a
mais miserável, menos consumidora de bens e serviços. Resultado imediato desta
perversa lógica: aumento do sofrimento social, politicamente evitável com
políticas públicas bem desenhadas e bem debatidas.
Sinto
informar, os cortes já feitos aumentaram o sofrimento, basta ir a estes
lugares, já se vê, se ouve o lamento, como ouvi no último junho, o lamento
pungente de Dona Andrea, nas cercanias de Inhapi, que me disse com muita
emoção. Voltamos a passar fome. Não bastasse isto, percebi semblantes
amedrontados, retornou o medo do destino, o medo de viver sem nenhuma
segurança.
Afinal,
do que se trata é fácil saber, se efetiva mais uma vez uma grande violação dos
direitos mais elementares da pessoa humana, como o direito à vida. Na pesquisa
mais recente, nos sertões nordestinos do Ceará e de Alagoas pude verificar o
retorno da fome e com ela a presença dolorosa de crianças com 9 e 10 anos de
idade pedindo esmolas, nos bares e postos de gasolina.
Pesquiso
nestas regiões há mais de dez anos, estas cenas tinham diminuído muito, em
algumas cidades havia quase desaparecido. Seu reaparecimento, como figuras
“normais" do cotidiano das pessoas, é uma imagem assombrosa de um passado
que não nos deixa passar, como diz o poeta. Tínhamos saído, pelos critérios da
ONU, do mapa da fome, e, vergonhosamente, para lá voltamos a passos largos. A
chamada elite que fez o golpe e seu governo coloca em prática políticas de
Estado destrutivas de direitos elementares, e para dizer o mínimo,
irresponsável, mas, sobretudo, cruel.
Darcy
Ribeiro sempre nos alertou sobre este traço de nossa dita elite. Esta gente
dizia: é escravocrata, desenvolveu durante séculos uma insensibilidade social
pouco vista no mundo. Sua crueldade com os pobres e desvalidos não tem limites.
Não se espere dela nenhum sentimento humanitário. Pensa apenas em rapinar o
país e usufruir de sua rapinagem lá fora. Não possuem nenhuma ética coletiva,
reproduzem em fornadas sucessivas, indivíduos dotados, cada dia mais, do
espírito de ave de rapina, com suas gerências nada republicanas dos fundos públicos,
tornando pratica governamental sua perene torrente de bandalheiras
administrativas, para falar a linguagem do grande Manoel Bonfim. Nossas ruas
voltaram a exibir o dantesco espetáculo de mendigos dormindo ao relento,
esfarrapados, famintos, pedindo esmolas de olhos inchados e esbugalhados.
São
tratados como coisas, como pedras renitentes no caminho dos transeuntes, devem
ser queimados, espancados, ou até mortos pela polícia. Foi assim que fez um
policial em Pinheiros outro dia atrás. Em plena luz do dia executou a tiros o
carroceiro miserável. É assim que se manifesta a aspereza, a desumanidade desta
elite e de seus governos. Sua profunda ignorância das causas da pobreza, o faz
seguir e andar como embriagada pelo ódio aos pobres, vitaminada pela televisão
e pelas revistas de baixo nível, compondo um conjunto sinistro de iniquidade
moral e politica. E a grande mídia, sem nenhuma grandeza, todos os dias zomba,
insulta o povo brasileiro, com suas mentiras sistemáticas, com seu jornalismo
manipulativo que omite a informação dos fatos para propagandear sua tosca visão
de mundo.
Temos
propaganda e não jornalismo. O resultado disto sobre os consumidores desta
pobreza intelectual é a perpetuação da desinformação em todas as classes
sociais, impera uma espessa e profunda incultura que torna a classe média, por
exemplo, incapaz de raciocinar e a conduz ao abraço de morte com as soluções
antidemocráticas no que esta tem de mais grotesco. Ou seja, sua recusa
obscurantista ao argumento fundamentado, e de qualquer reflexão. Hannah Arendt
sempre advertiu sobre os perigos totalitários inerentes a irreflexão. Dizia
ela, que a generalização da não reflexão constitui a pavimentação mais segura
para o triunfo de qualquer regime totalitário. Por isto, torna-se imperativo denunciar
mais este crime do golpismo, efetivado nos cortes aos programas sociais
voltados para combater a imensa desigualdade existente entre nós. Ainda uma
vez, porque nossa chamada grande mídia não analisa o significado trágico dos
cortes de recursos essenciais a vida social minimamente civilizada. Onde está o
direito civil dos cidadãos a verdade informativa?
Economia
de gastos estatais para que e para quem? Vejamos. Quanto custa ao país o
programa Bolsa Família que gasta 0,5 do orçamento nacional. Os juros da dívida
pública, que se constituem em pagamento, ou melhor, em drenagem pura e simples
de recursos da nação para ricos banqueiros e rentistas e é apresentada pelos
analistas financeiros, colunistas cativos de jornais e televisões como fenômeno
natural, inevitável da vida social.
A
naturalização da rapinagem conforma talvez o fetiche mais enevoado da
contemporaneidade brasileira. A operação divida publica expropria dos
brasileiros mais de 40 por cento do orçamento da União. Isto sim drena recursos
da nação. (Lazzarato, M. Governing by Debt.) Os juros pagos altíssimos, a maior
taxa do mundo-- favorecem, com este privilegio a apropriação do orçamento
nacional por pouco mais de 70 mil famílias bilionárias. Este grupo derruba
governos, impõe sua agenda politica e social sem nenhum pudor democrático, pois
não respeita, como se viu, o voto popular. A isonomia das urnas o horroriza.
Tal agrupamento social é um associado decisivo dos poderes midiáticos na
manipulação dos sentimentos públicos, fez de nossa classe média um poço sem
fundo de preconceitos sociais de todos os tipos. Para tanto, compra muito bem
certos jornalistas que se transformaram em verdadeiros jagunços da palavra.
Além
disto, encontra em certa parte da burocracia pública, setores do poder judiciário,
um aliado eficaz na manutenção das brumas de sua dominação politica e
econômica. Formam junto um campo unificado de poder muito duro, difícil de ser
percebido, e, por conseguinte, ser vencido.
O
rentismo constitui hoje o centro do poder efetivo, tem quase o monopólio do
poder de vetar, sem ser visto como tal, a democracia em todas as suas formas e
manifestações. Tal associação de puro domínio se apropria da alma das pessoas,
manipula seus sentimentos mais profundos, as anestesia, as torna indiferentes
ao sofrimento dos semelhantes.
Por
esta razão, não se vê nenhum protesto aos cortes do programa Bolsa Família,
pois cortam a carne dos sem voz pública, dos invisíveis. Nenhuma solidariedade
com o destino de seus concidadãos. Ouçamos a voz liberal de Willian Beveridge,
um dos designers do Welfare State inglês que dizia em seu famoso relatório
apresentado ao parlamento da Inglaterra em 1942, “(...) libertar o homem da
miséria é algo que não pode impor-se à democracia, nem ser a ela oferecido, mas
que deve ser por ela conquistado.”
http://www.ihu.unisinos.br/570783-crueldade-social-como-politica-de-estado-cortes-do-bolsa-familia
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