Um
dos maiores saltos da humanidade foi o momento em que sua esmagadora maioria
passou a aceitar que o planeta não é chato como uma pizza, mas redondo feito
uma laranja. Não nego que, lendo os discursos que defendem uma Terra plana,
torço para que seus apoiadores um dia encontrem a borda da tal pizza e lá
tropecem, caindo no vazio no esquecimento.
Sempre
me lembro disso quando vejo alguém torcer o nariz ao ouvir uma resposta mais
longa diante de uma pergunta complexa. O insatisfeito, incrédulo, lança ao ar
algo como: ''Se gastou tudo isso de tempo para explicar, é porque deve ser
mentira''. Ou seja, só é verdade algo que pode ser detalhado em poucas
palavras, utilizando apenas o conhecimento básico que todos detém sobre o
mundo.
Não
admira que Darwin enfrentou charges comparando-o a macacos em jornais e
revistas. Qual teoria é mais simples de assimilar: que somos resultado de
milhões de anos de seleção natural, em um processo lento e tortuoso, um
processo mal-ajambrado de várias espécies que contaram com o meio ambiente e a
sorte, ou que uma força divina criou tudo a partir de sua imagem e semelhança?
Não
é só uma luta contra a tradição e os costumes. É uma luta inglória. O que é
mais fácil e menos desesperador de entender? A evolução do universo conhecido,
por mais de 13 bilhões de anos, do Big Bang ao surgimento do Homo Sapiens? Ou a
criação de tudo em sete dias?
O
mesmo tem acontecido com o ensino de História, tarefa difícil frente às
campanhas para explicar o mundo de forma rasa. Porque a caminhada humana tem
muitos poréns, contudos, entretantos, veja-bens. Não anda em linha reta, não
tem bandidos e mocinhos bem definidos, tudo depende do ponto de vista. Às
vezes, as explicações para alguns fatos levam páginas e mais páginas e, ainda
assim, são incompletas. E como não são autoexplicativas, demandam treino do
senso crítico e de capacidade de interpretar o mundo.
Mas
ao ver qualidade do revisionismo histórico rastaquela utilizado como argumento
em debates na internet percebemos que isso não é fruto apenas da formação
distorcida. É sacanagem mesmo. De grupos que sabem que suas versões
alternativas para a realidade não colam e apelam para inventar fatos a fim de
cooptar muita gente para seu lado.
Pior
ainda quando vemos Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, atuar em nome
desse revisionismo, tentando defender racistas e neonazistas.
Diante
do exército de zumbis que estamos criando, não me estranharia se, em breve,
comecemos a queimar na fogueira os que defendem que a História seja contada em
sua complexidade, levando em conta os pontos de vista dos vencedores e dos
derrotados. Ou livros que complexificam a trajetória humana virem cinzas em
fornalhas a céu aberto.
Antes,
se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de
montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de ''Fahrenheit 451'', de
François Truffaut (1966), baseado na obra de Ray Bradbury. No filme, livros são
proibidos, sob o argumento de que tornam as pessoas infelizes e improdutivas.
Quem lê é preso e ''reeducado''. Se uma casa tinha livros, ''bombeiros'' eram
chamados para queimar tudo.
Hoje,
se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde desta vez? Algum
grupo fundamentalista islâmico, cristão ou judeu? Racistas no interior dos
Estados Unidos? Neonazistas europeus? África? Coreia do Norte? China? Malucos
de São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?
Um
casal de amigos conta que circulou na lista de WhatsApp de seus filhos
mensagens sugerindo que jogassem fora os livros ''comunistas'' de seus pais.
Relatos de pessoas que foram assediadas por carregarem livros de Marx e,
principalmente, Gramsci não são raros na rede.
No
dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de
diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da
literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões que eles queriam
impor. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud,
entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria. A
Alemanha ''purificou pelo fogo'' as ''ideias imundas deles'', da mesma forma
que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o
sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.
A
opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam
pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o
regime. Hannah Arendt explica. Deu no que deu.
Hoje,
vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes frente à diversidade
humana, a universalização de direito e à própria história.
Colegas
da imprensa me contaram histórias de membros de igrejas e templos do interior
que pediram a seus fieis – após a polêmica envolvendo a divulgação do 3o
Programa Nacional de Direitos Humanos – que destruíssem publicações que
tratassem do tema. E políticos batem palmas para isso. Nesta quinta (17), o
pastor Silas Malafaia afirmou em evento reunindo líderes evangélicos que quem
apostar no ''politicamente correto'' [alcunha pejorativa dada aos direitos
humanos] pode ''seguir seu caminho'' em 2018, longe do apoio deles. João Dória
e Geraldo Alckmin, ao seu lado no evento, consentiram.
Passamos
tanto tempo nos preocupando em garantir que os mais jovens decorassem datas de
''descobrimentos'' e locais de batalhas que não fomentamos o pensamento
crítico. Muito menos mostrar a eles por que é tão fundamental aprender
História.
E
que História não se absorve através de apenas uma única fonte de informação,
mas de várias, e que ela mesma vai ficando mais sólida à medida em que temos
mais elementos para reafirmar ou contrapor as antigas certezas. E de
preferência, fontes que tenham passado pelo crivo de discussões acadêmicas e
sociais e não gestadas no banheiro de alguém.
Um
amigo te disse que o Hocausto judeu na Segunda Grande Guerra nunca existiu?
Isso é um erro grave, porque há milhões de corpos para mostrar o contrario. Mas
se informe por outras fontes antes de tirar uma conclusão – livros,
documentários, reportagens. E lembre-se que nem tudo é uma questão de opinião.
Como não é opinião o fato de que negros e negras no Brasil e nos Estados Unidos
ainda sofrem com a herança de um passado escravista não resolvido.
De
acordo com o sociólogo Bernard Charlot, um saber só tem valor e sentido por
conta da relação que ele produz com o mundo. Não é o livro que tem valor em si,
mas o que a pessoa fará dele. Ou seja, muitos leem mal e porcamente um livro de
História porque acham que não precisam dele para poder seguir sua vida.
Se
o debate público fosse mais qualificado, a pessoa se sentiria motivada a ler
determinados textos até para não ser humilhada coletivamente no Facebook ou no
Twitter ao expor argumentos ruins, preconceituosos e superficiais. Como dizer
que o nazismo é de esquerda por conta do nome do partido alemão (Hitler se
revira no inferno quando alguém o chama de comunista); que a Terra é plana e é
o centro do universo, apesar de séculos de provas científico e imagens; que a
vacinação adoece crianças e serve apenas para a indústria farmacêutica ganhar
dinheiro; que a ação humana não impacta o clima. Isso é um bom pacote de
sandices, mas não resume toda a ignorância.
O
que temos contudo, é que o discurso violento e simplificador – mais palatável e
que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute.
Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio
para ser ouvido, entendido e absorvido. Vale ressaltar que esse discurso não é
de hoje e nem monopólio desta porção tropical do mundo.
Em
um debate qualificado quem usa esses argumentos toscos nem seria ouvido.
Contudo, fazem sucesso na rede. Colam rápido, colam fácil. Pois, vale lembrar,
quanto mais qualificado o debate em um universo que não sente a necessidade de
um debate qualificado, menor a arena para consumi-lo.
Lembrando
que ''qualificação'' não significa elitização, muito pelo contrário. Não é algo
chato, hipercodificado, barroco ou acadêmico e sim que ajude o leitor a
perceber a complexidade do mundo em que vive e o ajude a construir o seu
sentido das coisas.
O
problema é que não se qualifica o debate apenas através de ações individuais.
Você precisa de uma ação em escala, o que teríamos – na minha opinião – através
do Estado – que é o espaço que regula a concepção de educação e os parâmetros
educacionais. Ou seja, precisamos repensar o ensino para melhorar o debate
público.
Mais
do que isso: precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a
sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você saiba a data em que
foi assinada a Lei Áurea, mas não um debate que esclareça porque o 13 de maio
de 1888 não garantiu liberdade e autonomia aos negros e negras deste país. Ou
que defendam que a criança aprenda que a Segunda Guerra Mundial começou quando
a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclama se professores discutem em sala sobre
o que pregavam os capitalistas, socialistas e nazistas envolvidos no conflito.
Não podemos deixar que uma Escola sem Cérebro viralize e emburreça nosso
futuro.
Lembrar
é fundamental para que não deixemos certas coisas acontecerem novamente.
Que
a História do sofrimento humano, que moldou a forma como nos relacionamos com o
mundo e com as outras pessoas hoje, seja conhecida e contada nas escolas até
entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que
nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas
custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/08/18/contra-a-viralizacao-da-ignorancia-temos-que-proteger-o-ensino-de-historia/?cmpid=copiaecola
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