O
Brasil ainda é um país que engatinha no reconhecimento e no tratamento
igualitário de homossexuais. Ações simples envolvendo a Justiça e o Poder
Público ainda são complicadas quando os interessados formam um casal do mesmo
sexo. Por isso a importância de um “Direito LGBTI”. A opinião é da advogada
Ivone Zerger, especialista no assunto.
Em
partes, diz, a culpa vem da omissão do Legislativo sobre o tema. Desde o
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal
Federal, em 2011, nenhuma lei foi editada para garantir expressamente o direito
desse grupo, por exemplo.
Segundo
a advogada, é preciso mudar as leis, mas a resistência a isso será grande,
especialmente do meio político. “Vai ter que mudar a Constituição, lá diz homem
e mulher. O Código Civil diz homem e mulher”, explica.
Mas
não é apenas no setor público que o tema é delicado. Empresas, conta a
advogada, também acabam se complicando ao lidar com questões relacionadas à
orientação sexual e de gênero.
Mas
a solução é simples, de acordo com Ivone Zeger: informação. “Tem que ter uma
política nova de informar, explicando quem é quem, como um transgênero que não
se sente dentro da sua orientação sexual vai poder frequentar aquilo que
entende melhor para si", exemplifica.
Ela
não acredita que seja preciso uma legislação diferenciada para o público LGBTI,
apenas adequações das normas já existentes. Isso porque, os homossexuais,
individualmente, já são protegidos pelas regras vigentes. O problema é em
relação ao grupo na sociedade.
Há
quase 10 anos atuando na área, ela conta que começou ao perceber, por causa de
perguntas que recebia, a existência de um nicho ainda não explorado pela
doutrina.
Leia a
entrevista:
ConJur – O que seria o direito LGBT?
Ivone Zeger – Quando falamos “direito”,
esquecemos que o grande problema é o preconceito. Na verdade, o direito LGBTI
traz o sentido de que essas pessoas têm direitos que não são questões do dia a
dia, do cotidiano profissional, da rotina familiar. Essas pessoas se relacionam
com outras do mesmo sexo e não são aceitas na sociedade A relação homossexual,
por exemplo, como entidade familiar, não
é reconhecida pelo direito.
A
Marta Suplicy, há 25 anos, apresentou um projeto de lei dizendo que pessoas do
mesmo sexo podem ser, ter, fazer, etc. O Congresso olhou para isso? O
Parlamento se preocupa com isso? Ao contrário, temos bancadas religiosas cada
vez mais fortes, que são absolutamente contrárias, que não admitem o
relacionamento de pessoas do mesmo sexo.
ConJur – O famoso “Deus não deixa”...
Ivone Zeger – Deus não deixa, Deus não quer, e
daí por diante. Quando reforçamos a expressão “Direito LGBT”, o fazemos para,
inclusive, reforçar que as pessoas que vivem dentro de um núcleo familiar
formado por um casal de mesmo sexo terão direitos iguais às pessoas que não são
do mesmo sexo e estão num relacionamento.
ConJur – Mas por que um Direito separado?
Ivone Zeger – Por exemplo, a adoção. A partir dos
18 anos, todos podem adotar desde que o adotado tenha 16 anos de diferença do
adotante. Uma pessoa, individualmente, ou seja, solteira, viúva, separada,
divorciada pode adotar sozinha. Mas só pode adotar em conjunto se for casada ou
se estiver em uma união estável. E como fica um casal homossexual? É aí que
entra o direito LGBT. Poucos anos atrás, jamais um casal de homossexuais
poderia adotar — e ainda vemos muitas dificuldades para esses casais porque não
há uma legislação que possibilite.
ConJur – É um preconceito na lei?
Ivone Zeger – Não adianta dizer que "não tem
nada contra homossexuais" quando nossa lei dificulta que tenham filhos,
façam uma inseminação artificial. São pessoas e querem viver a vida, são
contribuintes e pagam impostos.
ConJur – O assunto alcança mais advogados ou
pessoas fora do Direito?
Ivone Zeger – Os livros que escrevo, a princípio,
não são para advogados, são para o público leigo, para o porteiro, o bancário,
o farmacêutico, o médico, o engenheiro. Os homossexuais ainda são vistos como
párias pela sociedade, que tem muita dificuldade em aceitá-los.
ConJur – O Brasil finge que é um estado
laico, principalmente em relação aos LGBTs?
Ivone Zeger –
Obviamente tem a Constituição, que diz claramente o que pode e o que não
pode fazer. E ela diz que o Estado é laico, que é permitido professar qualquer
religião. Não há nenhum senão, mas nós sabemos que, intrinsecamente, as pessoas
têm pré-conceitos. O Estado é laico, mas as bancadas parlamentares, sejam elas
federais, municipais ou estaduais, fazem cantos, sermões e coisas em prédios
públicos.
ConJur – Isso abre precedentes, não?
Ivone Zeger – Se um pode, o outro também vai
poder — e não podemos esquecer que são casas de legisladores. Aí dá para falar
que o Estado é laico?
ConJur – O líder religioso tem o direito de
não aceitar gays dentro da sua igreja?
Ivone Zeger – O líder religioso deve ter uma
série de considerações. Deve ter um discernimento especial a ponto de entender
o outro, principalmente na área da religião, onde é preciso entender o ser
humano nas suas várias concepções. Não gosto da ideia de apartar alguém por
conta da cor, do credo ou da concepção de gênero.
ConJur – O que a letra I representa na sigla
LGBTI?
Ivone Zeger – As siglas foram se modificando com
o tempo, principalmente a letra T, que era transgênero, depois transexual. O
‘I’ é aquele que ainda não se definiu, o intersexual, antigamente chamado pela
medicina de hermafrodita. Como o hermafrodita nascia sem uma definição sexual,
havia, antigamente, uma pressão por essa escolha, então os pais acabavam
optando: “bom, eu queria tanto uma menina, então vamos deixar que seja uma
menina”. Operavam, enfim, deixavam fazer todo um tratamento quando, na verdade,
aquele ser era um ser masculino.
Quando
chegava numa certa idade, obviamente aquela “menina” não se encontrava em seu
corpo. Como os intersexuais nascem sem uma definição sexual — tanto dos órgãos
genitais internos quanto externos —, não necessariamente é colocado o sexo na
certidão de nascimento. Isso acontece para que, no momento adequado, essa
pessoa, ou seus pais, definam.
ConJur – Para um transgênero usar seu nome
social, ele precisa mudar de sexo?
Ivone Zeger – Na verdade não, isso não tem nem
cabimento. Primeiro, é uma questão evidentemente pessoal fazer a redesignação
sexual. Muitas vezes a pessoa não quer, não precisa, ou não pode optar por ter
a terapia hormonal. Mas até pouco tempo atrás, os juízes tinham dificuldade de
entender, de permitir a mudança na documentação.
ConJur – Como Judiciário brasileiro trata o
homossexual? Há muita resistência?
Ivone Zeger – O juiz, de uma forma geral,
naturalmente tem que ter sensibilidade, ou não conseguirá ser um bom julgador.
ConJur – E o setor privado?
Ivone Zeger – Tenho dado muitas palestras para
empresas, porque elas vêm me consultar sobre como devem fazer para administrar
os funcionários transexuais. Uma empresa pode ter problemas na Justiça se o
departamento de Recursos Humanos não tiver noção de que um funcionário
transgênero quer usar o banheiro do sexo com o qual se identifica. Pode
resultar em processos tanto do próprio empregado quanto de colegas dele, por
conta da falta de informação sobre o uso do banheiro. Não adianta mais fechar
os olhos. É um caminho sem volta. O empregador também não pode deixar de
contratar alguém por ser homossexual ou transexual.
ConJur – Como resolver um problema desse?
Ivone Zeger – Minha orientação é sempre a
seguinte: o mais importante é que o RH saiba, tenha conhecimento e informe os
funcionários sobre a situação. A abertura, a informação é o mais importante.
Usando um outro exemplo, uma mulher, biologicamente, que se sente masculina
deverá frequentar o vestiário masculino? Essa mulher pode até se sentir mal
diante das colegas do que no vestiário masculino.
O
mais importante é a transparência da empresa em relação aos funcionários. Tem
que ter uma política nova de informar, explicando quem é quem, como um
transgênero que não se sente dentro da sua orientação sexual vai poder
frequentar aquilo que entende melhor para si. E caberá ao RH resolver algum
problema que surja daí.
ConJur – Além das questões trabalhistas,
qual outro tema recorrente que chegam ao seu escritório?
Ivone Zeger – Adoção e inseminação artificial. É
o que se chama de “barriga de aluguel”, que seria o útero de substituição ou
gravidez de substituição, que são as denominações mais corretas. O Código Civil
é claro dizendo que não é permitido pedir para uma terceira oferecer o útero de
substituição. Também não é permitido fazer um contrato, não vai ser aceito.
ConJur – Não pode ser uma espécie de
serviço?
Ivone Zeger – A pecúnia não é permitida. Nos
Estados Unidos e em outros países isso é aceito, mas aqui só podia pedir para a
mãe ou uma irmã do casal. Mas isso foi ampliado para prima, sobrinha, tia. Foi
estendido dentro da vocação hereditária. Aliado a isso há dificuldade de
encontrar alguém que vá querer fazer isso durante nove meses.
ConJur – E ainda surgem questões
relacionadas a casamento?
Ivone Zeger – Sim, por exemplo, escritura de
união estável, pacto antinupcial, herança, testamento...
ConJur – Testamento para deixar bens para os
parceiros ou aos filhos do casal?
Ivone Zeger – Exato. Apesar da decisão do STF de
que casais homossexuais têm os mesmos direitos dos heterossexuais, esses
direitos não estão elencados. Então é um tipo de “copia e cola” para decidir se
pode casar, se a vocação hereditária é a mesma, se divide entre cônjuge, em
concorrência com herdeiros necessários, que são filhos. Se não tem filhos,
concorre com os pais....
ConJur – E separações?
Ivone Zeger – Temos muita procura para fazer
dissolução de união estável. Muitos adquiriram bens e hoje querem deixar
esclarecido qual posse vai para quem. Então seria uma escritura de
reconhecimento e dissolução de união estável.
ConJur – E há muitos questionamentos na
justiça, mesmo com o testamento feito? Como pais, que vão à Justiça questionar
a divisão da herança por não aceitarem a relação homossexual do filho?
Ivone Zeger – Sim. Isso é o que mais tem. Temos
um caso aqui onde os pais eram nossos clientes, eles não reconheciam que havia
uma união da filha com uma outra mulher. A filha sofreu um acidente de carro e
a companheira era a herdeira em conjunto com eles. Elas não tinham reconhecimento
de união estável, mas a moça foi atrás dos direitos dela e, na dissolução, foi
reconhecido que ela teria que dividir com os pais. Os pais não admitiam, mas
não tinha o que fazer. Elas estavam numa união estável havia mais de 15 anos,
tinham todas as características de uma união estável. A grande preocupação
deles era com a doação que eles tinham feito em vida para essa filha.
Como
era um casal de empresários com uma boa situação financeira, a preocupação
deles era que as doações que foram feitas pudessem ser divididas. Mas essas
doações acabaram voltando para eles. Só que os outros bens que as mulheres
compraram juntas, por exemplo, carro e apartamento, foram divididos entre elas.
Atualmente, se a mesma situação acontecesse, muito provavelmente, essas doações
que foram feitas, a depender do regime de bens, se tornariam uma questão
difícil de resolver. Porque dois meses atrás o STF decidiu que, para herança,
quem estiver em união estável terá os mesmos direitos de quem estava casado.
ConJur – E como isso influencia?
Ivone Zeger – A depender do regime de bens que
foi escolhido, ou não, vai ser a comunhão parcial, vai ter que dividir como se
fosse um casamento e não como era no artigo 1.790 [do Código Civil]. Ele
restringia demasiadamente a sucessão do companheiro. Só dividiria aquilo que
fosse comprado, adquirido na constância da união estável. E agora abriu o
leque, então bens particulares já podem fazer parte da sucessão.
ConJur – Depois do reconhecimento da união
estável para homossexuais, os cartórios foram obrigados a registrar essas
uniões, mas ainda existem casos de cartórios que se negam a isso. Como resolver
essa questão?
Ivone Zeger – Eu fiz, em São Paulo, um dos
primeiros casamentos entre duas pessoas do mesmo sexo. Já deve estar fazendo
mais de dez anos. Nenhum cartório queria aceitar uma escritura de união estável
de duas pessoas do mesmo sexo, até que eu consegui um cartório e ele fez do
jeito que a gente queria. Mas, num cartório de notas, o tabelião pode outorgar
a escritura de união estável. Agora, duas pessoas do mesmo sexo podem redigir
um contrato entre elas, que é um documento que oficializa que elas estão
juntas. Elas vão num cartório de registro de documentos, reconhecem firma e o
cartório de registro de documentos dará fé.
ConJur – E o casamento?
Ivone Zeger – O casamento é outra coisa. O que
antigamente estava acontecendo, logo depois que o STF confirmou que casais do
mesmo sexo podem ter os mesmos direitos, é que os cartórios de pessoas naturais
que fazem casamentos não queriam consumar a união entre pessoas do mesmo sexo.
Então o Conselho Nacional de Justiça exarou uma resolução obrigando os
cartórios a aceitar um casal de homossexuais que quisesse casar. Em 2013, o CNJ
definiu que o cartório de pessoas naturais que faz casamentos não pode negar um
casamento entre pessoas do mesmo sexo.
ConJur – A questão da homofobia não deveria
ser tratada mais como um projeto de conscientização social do que legislativo?
Ivone Zeger – Para pessoas razoáveis, isso que é
absolutamente natural, só que, em uma população tão heterogênea como o Brasil,
se não impuser, designando sanções, fica ao deus-dará. Se com sanção há o
crime, imagine sem sanção... Obviamente prefiro uma conscientização, só que a
dificuldade de aceitação já é tão grande que acho difícil. As pessoas têm muito
preconceito. O preconceito de cor, por exemplo, é uma realidade a ponto de ter
que haver cotas.
ConJur – E além da criminalização da
homofobia, qual outro ponto da legislação que deveria ser tratado
especificamente para o grupo LGBTI?
Ivone Zeger – Não acho que deva ter uma lei
especial, porque, individualmente, são pessoas com direitos como todos, que
pagam impostos e são protegidos pela Constituição. O problema surge em relação
ao comportamento, como no caso dos relacionamentos. O Legislativo teria que se
manifestar, porque até o momento, nós só temos uma decisão judicial [do STF],
que é de 2011.
ConJur – É como se a conversa estivesse
suspensa desde então.
Ivone Zeger – Acho que está todo mundo em
suspenso, porque, enquanto não houver a legislação determinando que casais do
mesmo sexo podem se casar e adotar, por exemplo, as coisas permanecerão em uma
espécie de indefinição. Existem muitos países que adotam casamento homoafetivo,
mas não possibilitam a adoção. Como é que você pode ter um direito e não ter
outro?
ConJur – Isso mostra uma resistência do
Legislativo. E no meio jurídico, há resistência?
Ivone Zeger – O meio jurídico aceita. Tanto que
existem comissões na OAB só para tratar desse assunto. Dentro de uma área
existem conceitos e conceitos, mas nunca será possível agradar ou desagradar
todo mundo ao mesmo tempo. Com certeza as comissões já devem ter, e têm, levado
ao Legislativo as concepções. A pressão da sociedade é relativa quanto a isso.
Como já teve uma abertura do STF, menos pior. Pelo menos estão garantindo
direitos. Houve avanços, sim. No Legislativo, nenhum. Judiciais, sim.
ConJur – A lei do feminicídio pode ser
aplicada a um transgênero?
Ivone Zeger – Não só a do feminicídio como também
a Lei Maria da Penha, que é usada para transgêneros ou transexuais que se
entendem como femininas e portanto merecem a guarita da lei. Agora, fica o
questionamento: uma mulher que virou homem, se sente homem, não vai ser
abrangida pela Lei Maria da Penha? Quando a Constituição diz que homens e
mulheres têm os mesmos direitos, fica difícil para alguns admitir a própria Lei
Maria da Penha. Essa lei é muito aplicada no Direito de Família. Por exemplo,
um casal que se separa e a mulher pede medida protetiva. Se eles têm filhos,
como o pai vai se aproximar das crianças se não pode chegar perto da mãe? É
aquela questão do cobertor curto: cobre a cabeça, mas descobre os pés.
ConJur – Quais são os principais argumentos
usados para que casais homossexuais não adotem?
Ivone Zeger – Não tem argumento. Antigamente era
possível adotar como individual, solteiro, viúvo e separado. Mas se fosse um
casal homossexual, uma das pessoas tinha que adotar e a outra, mais na frente,
tentaria pedir uma adoção conjunta. Isso era muito complicado. Mas hoje está
mais fácil.
O
grande problema, atualmente, são também as restrições dos próprios adotantes,
que querem características específicas das crianças, como ser menina,
recém-nascida, de pele clara... Nos Estados Unidos, os casais homossexuais são
mais privilegiados com a adoção, mas são conhecidos por não fazerem muitas
restrição.
Por Brenno
Grillo, repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor
Jurídico,
http://www.conjur.com.br/2017-ago-13/entrevista-ivone-zeger-advogada-especialista-direito-lgbti
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