Chega
a ser surreal. Em nome da "democracia", governos de diversos países –
entre eles, Estados Unidos, México, Colômbia e Panamá, além, é claro, dos
golpistas brasileiros –, acompanhados pelas empresas de mídia mais influentes
do mundo, se mobilizam contra a eleição de uma Assembleia Constituinte
convocada com garantias à ampla participação da cidadania e ao pleno exercício
das liberdades políticas, de acordo com a Constituição em vigor.
Esses
supostos guardiães da liberdade mantêm silêncio sepulcral diante da ofensiva
terrorista das milícias opositoras, que já causaram 110 mortes. Nos últimos
dois meses, grupos de jovens sob o comando dos setores mais extremistas da
oposição – em especial, o partido Vontade Popular, liderado por Leopoldo Lopez
– desfecharam centenas de ataques contra pessoas identificadas como apoiadoras
do governo e contra o patrimônio público, com o objetivo de criar um cenário de
caos a ponto de inviabilizar a votação da Constituinte neste dia 30 de julho.
Centenas
de prédios e equipamentos públicos foram depredados e, em alguns casos,
incendiados. Entre eles estão ônibus, centros de abastecimento popular, postos
de saúde, delegacias de polícia, escolas, quartéis, escritórios ou agências de
instituições estatais como a Misión Vivienda (o equivalente ao programa Minha
Casa, Minha Vida).
A
divulgação desses fatos, presentes na realidade cotidiana da Venezuela desde a
convocação da Constituinte pelo presidente Nicolás Maduro, em 1º de maio, é
sistematicamente sonegada aos leitores, ouvintes e telespectadores das empresas
midiáticas que manejam a quase totalidade daquilo que se faz passar por
informação, no mundo inteiro. Em qualquer outro lugar do planeta, tais ações
violentas seriam definidas como terrorismo, mas no caso da Venezuela os responsáveis
por esses crimes são louvados pelos jornalistas estrangeiros como se fossem
manifestantes "pacíficos".
As
mortes são atribuídas, de forma desonesta, às forças de segurança, quando se
sabe perfeitamente, a partir da apuração das circunstâncias em que morreu cada
uma das pessoas atingidas pela onda de violência, que mais de 60% dos casos
fatais ocorreram em decorrência da ação dos grupos opositores, que usam armas
de fogo e adotaram, entre outras práticas, a de incendiar pessoas identificadas
com o chavismo. Nos incidentes que a ação policial resultou em morte ou
ferimentos, os envolvidos estão presos e respondem a processos judiciais (há
ainda episódios em que não se conseguiu identificar os responsáveis).
A
manipulação da opinião pública pela mídia vai muito além da ideologia – o viés
classista que impregna permanentemente os conteúdos de modo a conformar uma
visão de mundo coerente com os interesses das classes dominantes no capitalismo
global. O que está em curso, no tocante à Venezuela, é uma campanha em que as
empresas de comunicação se engajam, conscientemente, numa operação política,
conduzida a partir de Washington, para depor o governo de Maduro e substituí-lo
por autoridades alinhadas com os interesses da burguesia local e do imperialismo
estadunidense.
O
sucesso ou fracasso dessa estratégia golpista depende, em grande medida, dos
acontecimentos deste domingo e, em particular, do maior ou menor comparecimento
às urnas para a escolha da nova Constituinte. Um índice baixo de votação
agravará a crise política, fragilizando o governo diante da campanha
desestabilizadora e dos atores internos e externos nela envolvidos. Já uma
participação expressiva dos cidadãos reforçará a legitimidade do governo e
criará um firme alicerce para a instalação de uma Constituinte capaz de
enfrentar o impasse político e as gravíssimas dificuldades econômicas.
Não
é exagero afirmar que a Venezuela vive um dos dias mais cruciais de sua
história. O chamado às urnas para eleger uma Constituinte põe em jogo o futuro
da Revolução Bolivariana, como foi chamado o amplo projeto de mudança política
e social iniciado com a eleição de Hugo Chávez à presidência da Venezuela, em
dezembro de 1998. Em quinze anos à frente do governo, Chávez inverteu as
prioridades do Estado, ao afastar do poder as tradicionais elites econômicas
ligadas aos interesses externos. A maior parte da renda petroleira passou a ser
aplicada em benefício das demandas da maioria desfavorecida. Milhões de
venezuelanos ganharam acesso a serviços de saúde adequados, por meio de uma
rede imensa de postos de atendimento instalados nas áreas mais pobres e
operados por médicos e outros profissionais cubanos, a Misión Barrio Adentro.
O
analfabetismo foi erradicado e rede de ensino público em todos os níveis,
inclusive o universitário, ampliou-se em tal escala que hoje a Venezuela é o
país do mundo com mais estudantes no ensino superior, em proporção ao número de
seus habitantes. Para enfrentar o déficit habitacional, já foram entregues mais
de 1,7 milhão de moradias a famílias de baixa renda, mediante pagamentos
simbólicos, compatíveis com sua condição econômica.
Os
idosos conquistaram o direito à aposentadoria digna, os salários reais se
elevaram significativamente e a participação popular nas decisões sobre gastos públicos
se tornou prática cotidiana em milhares de conselhos comunitários espalhados
pelo país inteiro. Tudo isso, em um contexto de plena democracia. A imprensa
funciona livremente e em nenhum outro país do mundo se realizaram tantas
eleições e consultas à população.
Todas
essas conquistas (e muitas mais) estão ameaçadas no cenário de incerteza
política que envolve a eleição da Constituinte. Em quase duas décadas de
chavismo, a Revolução Bolivariana superou todas as tentativas das elites
dominantes de recuperar seus privilégios, por meios legais e ilegais.
Nas
urnas, o chavismo se saiu vencedor em quase todas as ocasiões. A via golpista
foi derrotada em 2002, quando a direita política, apoiada por uma parcela das
Forças Armadas e pelo aparato midiático, tomou de assalto o palácio de
Miraflores, sob as bênçãos dos EUA, e chegou a levar preso o presidente Chávez.
Mas o golpe fracassou diante da resistência da população mais pobre e da
lealdade da maioria dos militares, e Chávez regressou à presidência em apenas
três dias, nos braços do povo.
A
morte do presidente, em 2013, e a queda dos preços do petróleo – produto do
qual a economia do país é altamente dependente desde o início do século passado
– encorajaram os opositores de dentro e de fora da Venezuela. Para a elite
dominante dos EUA, é inaceitável a consolidação de um governo de esquerda na
América do Sul (seu tradicional "quintal") comprometido com a
soberania nacional, o controle estatal dos recursos naturais e a aplicação de
políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades sociais, na
contramão do neoliberalismo.
Intensificou-se
então a chamada "guerra econômica", ou seja, a utilização dos
recursos de poder à disposição da burguesia venezuelana para provocar a
inflação dos preços, a crise cambial e escassez de mercadorias essenciais, como
alimentos, remédios e peças de reposição para automóveis. A sabotagem
empresarial se somou às dificuldades decorrentes da redução da renda petroleira
e aos graves erros de gestão governamental para gerar uma situação de crescente
desconforto entre a população, angustiada com a alta dos preços e com as longas
horas de fila necessárias para conseguir os produtos básicos do dia a dia.
Nesse
cenário, a oposição reunida na Mesa de Unidade Democrática (MUD) alcançou, em
dezembro de 2015, a sua primeira vitória eleitoral, ao obter 56% dos votos para
a Assembleia Nacional, o parlamento venezuelano, o que (pelo sistema de voto
distrital) representou a conquista de quase dois terços das cadeiras. Se os
líderes da MUD estivessem dispostos a atuar de acordo com as regras do jogo
democrático, usariam o domínio do Legislativo para impulsionar suas próprias
propostas de superação da crise, acumulando forças para disputar, com chances,
as eleições presidenciais de 2019. Mas, sem nada de concreto a propor, optaram
pelo caminho insurrecional, de olho na conquista imediata do poder.
Essa
aventura já tinha sido tentada em 2014, com a ofensiva de ações violentas
denominada por eles como "A Saída", que fracassou após deixar o saldo
trágico de 43 mortes e danos materiais incalculáveis. Agora, diante do cenário
econômico desfavorável, a direita se sente mais empoderada, e a disposição de
Washington em intervir na política interna venezuelana se mostra mais efetiva.
O
Legislativo declarou guerra ao Executivo e foi colocado fora da lei pelo
Judiciário, diante da recusa da liderança da MUD em aceitar a impugnação de
três deputados por conta de fraudes na eleição de 2015. O avanço das forças de
direita em dois países vizinhos, Argentina e Brasil, viabilizou uma ofensiva
diplomática para isolar a Venezuela e fragilizar ainda mais o seu governo.
Enquanto isso, no plano interno, a guerra econômica atingiu o auge com a recusa
de grande parte das empresas privadas em seguir produzindo, o que agravou o
problema do desabastecimento.
Contra
vento e maré, a Revolução Bolivariana resiste. Uma parcela significativa da
população mantém sua fidelidade ao chavismo, consciente do terrível retrocesso
político e social que significaria a derrubada do governo de Maduro e a tomada
do poder por uma elite fascista, violenta, com sangue nos olhos, sedenta por
vingança e pela recuperação dos privilégios perdidos. No plano externo, a ação
concertada dos lacaios de Washington, como o argentino Mauricio Macri, o
brasileiro Michel Temer e o mexicano Enrique Peña Nieto, fracassou até agora na
tentativa de excluir a Venezuela do Mercosul e de aprovar, na Organização dos
Estados Americanos (OEA), alguma resolução que signifique carta branca ao
golpismo e à intervenção estrangeira.
As
bases populares do chavismo estão mobilizadas no enfrentamento à crise
econômica, articulando os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAPs),
até agora bem-sucedidos em fornecer a milhões de famílias mais necessitadas uma
cesta de alimentos básicos vendidos a preços justos, evitando um colapso
humanitário. E as Forças Armadas permanecem leais à Constituição, rejeitando a
tentação do golpismo.
A
proposta da Constituinte surgiu, nesse contexto, como meio de encontrar uma
solução pacífica, democrática, em que o verdadeiro soberano – o povo – possa
assumir em suas próprias mãos o controle das instituições políticas e definir
os caminhos do futuro. É uma tentativa legítima, rigorosamente fundamentada na
Constituição, de preservar os avanços sociais da Revolução Bolivariana e de
impedir que a atual situação de confronto político degenere em uma guerra civil
que, certamente, seria acompanhada de intervenção estrangeira direta. Se vai
dar certo, ninguém sabe.
* Igor Fuser é doutor em
Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Relações
Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do Grupo de
Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI).
https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/309060/Igor-Fuser-mostra-o-que-de-fato-est%C3%A1-por-tr%C3%A1s-na-crise-da-Venezuela.htm
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