O
coronel Ibis Pereira, da PM do Rio de Janeiro, combina de encontrar comigo,
numa manhã ensolarada de inverno, em uma charmosa livraria-café do centro da
cidade, ao lado da Assembleia Legislativa. Chego na hora e dou de cara com ele
lá dentro, folheando livros. Me cumprimenta com dois beijos na face e comenta,
alisando a capa de um dos volumes expostos à sua frente:
–
Adoro Eça de Queiroz.
O
perfil do coronel de 54 anos, que passou à reserva no ano passado, tinha
capturado minha atenção durante a campanha à prefeitura do Rio, em 2016, quando
atuou como consultor de Marcelo Freixo, candidato do PSOL. Formado em Direito e
Filosofia, com mestrado em História, Íbis acaba de se filiar ao partido. Mas
sua ligação com o pensamento progressista é anterior ao PSOL, a Freixo e à
própria polícia.
Como
você se aproximou do progressismo? Porque a imagem que as pessoas têm da
polícia é que todo mundo ali é conservador.
O
que não é verdade, tem uma massa considerável na polícia que é progressista. Eu
venho de uma militância católica, de juventude operária católica. Apesar de
morar no Rio de Janeiro e a nossa igreja sempre ter sido muito conservadora, eu
vivia num bairro muito próximo da Baixada Fluminense e a gente tinha a
influência das igrejas da Baixada, de Nova Iguaçu, Caxias, que eram mais
progressistas. Então a Teologia da Libertação sempre foi uma marca muito forte
na minha trajetória, na compreensão da minha própria fé, que é algo que me
acompanha até hoje. Se não fosse por este movimento, acho que eu não estaria
mais no cristianismo. Católico, pelo menos, não. Quando entrei na polícia, já
vinha desse movimento. E entrei em 1983, num momento de renovação, junto com os
primeiros governadores eleitos depois da ditadura. O governador eleito aqui foi
Leonel Brizola, que escolhe como comandante-geral da Polícia e como secretário
de Estado da Polícia um homem que para mim foi decisivo: o coronel Carlos Magno
Nazareth Cerqueira, um progressista.
Ideologicamente,
como você se define?
Sou
um comunista místico, um marxista herético (risos). Porque sou basicamente um
marxista, mas não totalmente porque não sou materialista. Creio em Deus, sou
uma mistura de Cristo com Karl Marx. Penso que se Deus existe e nós todos somos
irmãos, essa sociedade não comporta senhores e escravos, dominantes e
dominados. E ninguém pensa uma política de segurança pública sem uma concepção
de como a sociedade deve se organizar. Estamos falando do coração do Estado,
não é possível uma visão técnica apenas. A primeira violência é a miséria, a
exclusão, e elas só se resolvem rumando para uma sociedade mais igualitária,
mais justa.
***
O
coronel Cerqueira, um policial visionário, à frente do seu tempo, que foi
secretário de Brizola nas duas vezes em que governou o Rio, seria assassinado
em 1999 com um tiro no olho direito no saguão do prédio onde trabalhava o
advogado Nilo Batista, ex-governador do Estado. O crime foi atribuído a um
sargento, executado em seguida com um tiro na nuca supostamente pelos
seguranças do prédio. Mas o assassinato nunca foi completamente elucidado.
Primeiro
comandante negro da Polícia Militar do Rio, Cerqueira foi pioneiro em falar de
direitos humanos na área de segurança pública. Numa reunião do governo, Brizola
colocou as diretrizes pelas quais seria massacrado na mídia: proibiu a polícia
de entrar nos barracos das favelas sem ordem judicial. No dia seguinte, os
jornais cariocas o atacavam dizendo: “Brizola proíbe a polícia de subir o
morro”.
Brizola
acertou em sua política de segurança?
Acertou.
Para você ter uma ideia, a aula inaugural do meu curso de formação foi
exatamente sobre a relação entre polícia e direitos humanos, que era uma marca
que Brizola trouxe. Isso já está lá na Carta de Lisboa, em 1979. Cerqueira era
uma pessoa fantástica, que tinha a visão de uma polícia imbricada com a
civilização, com a democracia. A polícia é filha do Estado Democrático de
Direito. Das instituições do Estado Democrático de Direito, talvez seja a mais
nova. Antes disso não tem polícia, tem bando. E é isso que muita gente, muitos
policiais ainda não compreendem: quanto mais um Estado promove a lei, mais a
polícia é forte. Muitos policiais ainda entendem que estados fortes, duros,
estados policiais, favorecem a polícia. É exatamente o contrário. E essa foi
uma questão que Brizola e Cerqueira procuravam vincar bastante, esse respeito
que o policial deve ter pela legislação, pela casa como asilo inviolável, pelo
barraco como residência. Isso em 1983 era uma coisa que soava como conivência
com o crime. Até hoje tem policial no Rio de Janeiro dizendo que Brizola
proibiu a polícia de subir o morro, de enfrentar o crime. Uma mentira. O que
ele proibia é que você fizesse operação em favela sem planejar e entrar na casa
dos outros sem determinação. Quando entrei na polícia, você podia entrar num
domicílio pela determinação de um delegado. A Constituição de 1988 é que tornou
exclusivo do mandado judicial. Quando se começou a discutir se poderia entrar
em uma casa sem determinação judicial, o que Brizola já falava em 1983, foi um
horror. As pessoas diziam que a polícia não podia mais trabalhar, que agora o
serviço policial estaria inviabilizado e até hoje se tem dificuldade de
compreender isso. Tem juiz que emite mandado de busca para todas as residências
de uma favela. Em 2017, no Rio de Janeiro, ainda tem isso. Brizola tentou
coibir naquela época e pagou um preço muito grande.
Mas
então o que faltou? Continuidade? Porque Brizola sai e em vez de elegerem Darcy
Ribeiro, os cariocas se deixam influenciar pela Globo e elegem Moreira Franco…
Para
a gente entender por que não vingou, a gente tem que entender que Brizola não
era apenas alguém que vinha do exílio, não era apenas um inimigo da ditadura,
era o grande inimigo da ditadura. Mais que o próprio Goulart, mais que Arraes,
que qualquer outra figura. E sempre ficou muito claro, pelo menos pra gente,
que o objetivo do Brizola era o governo brasileiro. Com seis meses de governo,
há uma reportagem da revista Veja associando o governo Brizola ao caos, ao
horror, às invasões, uma capa assustadora. O governo dele foi boicotado desde o
início. Nós tivemos grandes ideias de transformação das forças policiais, mas
essas grandes ideias não foram acompanhadas da alocação dos recursos que seriam
necessários para essas transformações. Em função de uma decisão política, que
era apostar na educação (e ele estava certíssimo neste ponto), e também em função
da crise econômica, faltou dinheiro.
Naquele
período, final da ditadura militar, também havia boicote do governo central a
Brizola.
Claro.
Ninguém queria que o governo Brizola vingasse, senão ele ia se cacifar ao
governo federal. E nós tivemos um governo intermediário –eu não gosto nem falar
do nome da pessoa–, do Moreira Franco, que foi um desastre.
Deixar
de eleger Darcy para eleger um cara desses…
Um
homem que assumiu dizendo que ia acabar com a violência em 100 dias, em seis
meses, e foi o contrário. Ele desmontou todos os avanços do governo Brizola, o
policiamento comunitário, os próprios Cieps. Foram quatro anos apostando na
repressão, na guerra. Em detrimento daquela ideia inicial de construir
políticas públicas contra a violência, mas a partir de um viés de prevenção.
Infelizmente, a gente continua apostando na repressão e pouco na prevenção.
***
O
coronel Íbis toma um gole de café. Como está na reserva, se veste à paisana,
com uma jaqueta de couro marrom e jeans desbotado. Também pode agora cultivar
uma espessa barba grisalha, o que considera “um ato político”. Na época do
quartel, estava sempre bem escanhoado, já que é obrigatório aos policiais
militares barbear-se diariamente. Após 33 anos na PM, deixar a barba crescer é
uma afirmação de liberdade para ele.
Dentro
da bolsa tiracolo, Íbis carrega consigo o livro A Ciência Nova, de Giambattista
Vico, um clássico do século 18 que influenciou Karl Marx e que o coronel
considera sua bíblia. Sem dúvida parece mais um professor de Ciências Humanas
que entraria em confronto com a polícia numa manifestação do que um policial.
Como
é que a repressão da polícia a manifestações se tornou tão violenta?
Com
a redemocratização, o Batalhão de Choque, que é a força policial que dá conta
destes grandes eventos e dessas manifestações, o que na literatura
internacional chamamos de ‘policiamento de multidões’, ficou um pouco
esquecido. A gente imaginou que não precisasse do Batalhão de Choque num
contexto de abertura democrática. Ele ficou sendo utilizado para fazer
policiamento, num dado momento foi utilizado para fazer ronda policial nas
ruas, e toda essa doutrina de controle de multidões foi um pouco esquecida. A
partir de junho de 2013, as pessoas olharam para o Batalhão de Choque e
pensaram: ‘não, a gente precisa dessa tropa policial em função das
manifestações’. E o que aconteceu? Ao longo deste processo de redemocratização
a gente não atualizou a doutrina. Houve um grande erro. Quando essa tropa vem
para a rua, em 2013, vem com uma mentalidade lá de trás.
Me
parece que em São Paulo a situação é diferente, porque parece ser uma ordem do
comando descer o sarrafo em manifestante, reprimir mesmo.
Eu
não descarto que isso aconteça no Brasil como um todo. Nós temos no Brasil uma
ideia de ‘ordem’ tão enraizada, tão imbricada na alma nacional, que qualquer
coisa que pareça perturbação da ordem na cabeça de algumas pessoas legitima
ações duras, truculentas. Aí tem um desafio para a nossa democracia, que ainda
engatinha: democracia não significa ausência de desordem, democracia comporta
uma certa desordem. Mas aqui no Brasil, herança deste positivismo do qual a
gente não conseguiu se libertar, qualquer perturbação da ordem é vista como uma
ameaça à sociedade e legitima o emprego bélico como estratégia de salvação.
O
que você acha de a esquerda ficar gritando “tem que acabar com a polícia
militar” nas manifestações?
Esse
grito ‘não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar’ é preciso
reconhecer que é uma boa rima, mas é só isso. Não contribui em nada para o
debate. Dentro das polícias tem muita gente, sobretudo os praças, que advogam a
desmilitarização. A gente tem dois grandes problemas na polícia brasileira: a
militarização, que aí tem que se entender como políticas públicas militarizadas
(e isso atinge tanto as polícias civis quanto a militar), e o fato de termos
uma polícia militar. É preciso entender a militarização a partir destas duas
perspectivas. E tem muita gente dentro da polícia que acha que a gente precisa
superar este momento, construir políticas públicas a partir de outra
perspectiva, avançar no sentido de uma polícia de natureza civil, porque essa é
a natureza da polícia no mundo todo. A natureza da atividade é civil, ainda que
tenhamos polícias militares. Mas quando você fala que quer o fim, esta palavra
de ordem assusta até mesmo quem está dentro da polícia e também tem essa
compreensão de que é preciso mudar. É preciso encontrar um discurso que capture
essas pessoas. Esse modelo equivocado que está aí produz uma polícia muito
agressiva, as polícias brasileiras matam muito. Em 2015 foram 3320 pessoas. Em
nenhuma democracia do mundo as polícias matam tanto quanto no Brasil. Por outro
lado, é um modelo que vitimiza muitos policiais. A nossa categoria tem seis
vezes mais chances de praticar suicídio que qualquer outra. Somos vitimizadores
e vítimas desse modelo, muitos policiais hoje têm essa compreensão. E a melhor
maneira para promover esta mudança é trazendo estes policiais para junto
daqueles que querem mudar. Esse tipo de palavra de ordem afasta, assusta,
intimida e meio que agride.
Tenho
a impressão que as pessoas não entendem, pensam que “acabar com a polícia
militar” é não ter mais polícia.
Sem
dúvida. Assim como quando a gente fala em desmilitarização, as pessoas pensam
que é tirar as armas da polícia, e não é nada disso. A gente peca muito na
formulação desse discurso. Na cabeça de muitas pessoas, significa “não quero
mais polícia”, “não quero mais ordem”. Numa sociedade obcecada pelo conceito de
ordem, isso é assustador. E o dominado –isso é o aspecto talvez mais grave
dessa herança da escravidão– quer a ordem, quer se sentir seguro.
Muitos
pensadores de esquerda defendem que o policial não é classe trabalhadora e sim
um agente do Estado. O que você acha?
O
policial é um trabalhador da segurança pública, apesar de não se reconhecer
como um trabalhador da segurança pública, principalmente na polícia militar. O
policial civil é o policial civil, mas o PM não é o policial militar, é a PM.
Ele é a instituição e portanto se reconhece como estado. O policial militar não
se vê como um trabalhador da segurança pública. Eu entendo quando companheiros
do campo progressista, da esquerda marxista sobretudo, compreendem o policial
como um agente do estado e portanto da dominação de classes. Isso também
explica porque a esquerda tem dificuldade em fazer um discurso para a polícia.
Como ela reconhece o Estado como um instrumento de dominação e a polícia como
um agente deste Estado, é preciso portanto lutar contra a polícia para mudar o
Estado. O ideal seria o contrário, fazer com que o policial se reconheça como
trabalhador. Aí está um dever de casa para nós. Precisamos encontrar um
discurso que reconheça o lugar da polícia, o policial como um sujeito de
direitos, como vitimizador, sim, mas também como vítima deste processo. É uma
situação perversa a do policial: reproduzir essa violência de classe e ser
vítima dela. O policial é como se fosse um cão de guarda na sala de estar.
Protege o dono, mas quando começa a incomodar, o dono coloca ele para latir no
quintal. Então a polícia é, sim, um instrumento de dominação de classe, mas
quando começa a incomodar é colocado para latir no quintal.
ibisinteiro
***
Me
intriga que em alguns Estados, como a Bahia, há três mandatos seguidos
governada pelo PT, a polícia continue tão violenta quanto na época de Antonio
Carlos Magalhães, um governante de direita com perfil truculento. Os policiais
baianos são os terceiros que mais matam no país, depois de São Paulo e do Rio
de Janeiro, segundo levantamento recente do Ipea.
Neste
contexto, o discurso de desmilitarização soa tão irreal e distante quanto
policiais marchando ao lado de manifestantes por um Brasil melhor.
Por
que os governo progressistas nos Estados não fizeram nada no sentido de
humanizar a polícia?
Tem
uma galera que tem uma leitura mais conservadora do marxismo que não se importa
com a polícia. Acha que a questão é revolucionar os meios de produção e a
questão da polícia vem depois. Só que, enquanto a gente não faz isso, como
damos conta de 60 mil homicídios todo ano? Quando a gente promulgou esta
Constituição, a taxa de homicídios no Brasil não chegava a 12 mortos por 100
mil habitantes. Hoje ela passa de 30. Na média nacional, tem lugar que é mais
de 100. Em 1988 nós tínhamos 240 mil presos, hoje tem mais de 700 mil. Em 30
anos de uma constituição democrática, nossas taxas de letalidade triplicaram e
o número de encarcerados triplicou também. Nós temos realmente que caminhar em
direção desta sociedade livre, justa e solidária, mas tem uma questão
pragmática: o que você faz enquanto não chega nesta sociedade livre, justa e
solidária? Há questões urgentes e estas questões passam pela polícia.
Não
dá para a gente esperar chegar a desmilitarização e enquanto isso não fazer
nada para melhorar a polícia que temos…
Este
é o ponto que angustia. Penso que tem faltado um pouco dessa visão pragmática.
A gente precisa fazer alguma coisa enquanto não chegamos ao ideal. E é
possível. Esta Constituição é a primeira a ter um capítulo sobre segurança
pública, mas esse capítulo não está regulamentado até hoje, o parágrafo 7 do
artigo 144 não foi regulamentado. A gente criou um modelo –herdamos mais do que
criamos, na verdade– que a ditadura já tinha e não fizemos as reformas que
deveríamos ter feito. E a gente está falando de quase 30 anos de Constituição.
As polícias, as agências criminais brasileiras, são ilhas, não trabalham em
sintonia, não compartilham seus bancos de dados. Fazer uma política pública de
segurança no Brasil é uma tarefa quase impossível, considerando a nossa
arquitetura constitucional. Falta essa legislação que trouxesse harmonia ao
sistema como a constituição determina para a gente fazer. Coisa que não é
fácil, tem lobbies corporativos muito fortes. Mas se a gente tivesse começado
isso 30 anos atrás… Não fizemos nada. São 60 mil brasileiros que morrem por
ano, um a cada 9 minutos, 80% destes brasileiros jovens, entre 15 e 29 anos,
sexo masculino, moradores de periferia, das favelas, e negros. A violência no
Brasil tem cor, tem classe, local em que mora: mora na periferia das cidades. É
o jovem negro, pobre, morador de favela. E quem é o policial? Qual o perfil? É
o mesmo. E quem está preso também tem este perfil. O nosso papel na esquerda,
no campo progressista, é falar para estes jovens que estão se matando.
Em
termos de pragmatismo, o que poderia ser feito?
Em
primeiro lugar, compreender que segurança pública não pode ser só a polícia,
que ela não é uma solução para esta questão. Olhar para a polícia como meio e
não como fim. Quando a gente fala de desmilitarização, a gente precisa entender
que enquanto tivermos políticas militarizadas, nós teremos polícias
militarizadas. Quando a gente estava na ditadura, nosso grande inimigo era o
subversivo, aquele que queria atentar contra a ordem vigente, os valores da sociedade
ocidental. Quando a gente saiu da ditadura, entramos numa outra guerra, a
guerra às drogas. A gente tá mergulhado nela há pelo menos 40 anos. A gente
elegeu a questão do tráfico de drogas como grande inimigo da sociedade no lugar
da subversão e a nossa estratégia tem sido a guerra às drogas. Nós temos uma
política pública que favorece exclusivamente a guerra. No meu modo de entender,
a polícia é civil, o ideal é que a polícia fosse civil e não militar. Mas há
uma questão de fundo mais grave do que essa, que é militarizar a segurança,
eleger a droga como o grande inimigo, portanto o traficante e a estratégia para
enfrentar esta questão que é a guerra. Enquanto tiver isso, você vai ter
polícias militarizadas mesmo que sejam civis. O principal ponto para começar
uma transformação na polícia é desmilitarizar as nossas políticas públicas.
Outra coisa: as legislações que organizam as polícias militares são todas
anteriores à Constituição de 1988. Os decretos federais que organizam as
polícias ainda são de 1969. Nada justifica isso.
Nenhuma
dessas coisas foi atualizada.
Não.
Nós temos uma Constituição que tem princípios, que têm valores, e temos
legislações que organizam as instituições policiais, num nível federal, que
ainda não sofreram adaptação. O mesmo se pode dizer das polícias civis. Já que
a gente não quer realizar, porque não queremos enfrentar os lobbies
corporativos das instituições policiais, vamos fazer o mínimo possível,
atualizar a legislação dessas instituições de modo que dialogue com a constituição.
Aqui no RJ, por exemplo, toda a legislação que estrutura a PM é anterior a
1988. O estatuto do policial militar, o código de disciplina. Isso é o mínimo e
não depende de mudança constitucional, depende da Assembleia Legislativa.
Quando estávamos no comando tentamos trazer para a ALERJ algumas propostas de
alteração da legislação, mas isso se perdeu nos escaninhos da burocracia e
também nas pressões, nos lobbies.
***
O
coronel Íbis esteve no comando da polícia durante dois meses, num período de
transição, no final de 2014, já com Pezão no governo. Em 2015, foi chefe de
gabinete do comando-geral da PM fluminense durante um ano, e criou atrito com
seus superiores por ter criticado a ocupação do Complexo do Alemão em 2010 como
“espetaculosa”.
É
justamente este um dos pontos que o coronel aponta como equivocado na
estratégia de segurança pública (ou na ausência de uma): favorecer a pirotecnia
e a repressão diante da prevenção ao crime. Íbis é antiproibicionista, mas acha
possível minimizar o problema antes que a descriminalização venha.
Se
tivéssemos de verdade um estado federativo, já era para o Rio ter feito a
experiência de descriminalizar as drogas, não?
Era.
Mas a nossa legislação hoje impediria isso. Quando comandei a polícia chegamos
a levantar essa hipótese, depois o secretário passou a publicamente advogar a
despenalização das drogas, mas não é possível, em nosso modelo de justiça
criminal, uma experiência inovadora de despenalização com uma legislação que é
federal.
Sem
descriminalizar as drogas é possível resolver a questão da segurança pública?
No
Brasil eu não vejo possibilidade de melhoras substanciais, na profundidade que
precisamos. Não vejo como. Mas, ainda num contexto proibicionista, é possível
atuar de uma maneira mais racional. É possível criar protocolos de ação que
tornem as ações policiais mais objetivas, mais de acordo com a legislação, mais
seguras tanto para o policial quanto para o morador da favela. Mais racionais,
portanto –eu gosto muito dessa palavra. No Rio de Janeiro, qualquer patrulha
começa uma guerra, e eu acho que de um modo geral é assim no país como um todo.
Sob o pretexto de uma suspeição, de uma denúncia anônima, começa uma guerra.
Isso o Brizola já falava lá atrás: se houver necessidade de entrar numa favela
para prender alguém, é preciso planejar esta ação. Levar em consideração que
favela é essa, porque a gente tem condições de saber que locais são mais
perigosos, que locais são menos perigosos. Os menos perigosos demandam que
efetivo, que tipo de apoio… Não se pode fazer uma operação em um local que você
sabe que há risco de confronto, densamente povoado. Nós temos favelas no Rio
onde moram 100 mil pessoas. Não é possível fazer uma operação numa localidade
deste tamanho, maior que muito município no Brasil, sem planejar, levar em
consideração um planejamento que minimize os riscos do confronto. As pessoas
feridas desnecessariamente, crianças, escolas que suspendem as aulas porque
está fazendo operação em horário em que criança está dentro de escola. Isso é o
mínimo. Ainda num contexto proibicionista, é possível fazer com que as
intervenções policiais sejam mais respeitosas e mais seguras. Isso depende de
vontade política, de decisão. A visão de nossos administradores é de curto
prazo. Como nós temos eleição a cada dois anos, o partido que assume o poder já
está de olho na eleição municipal. Por isso a gente sempre mira em pirotecnia e
repressão, porque a repressão, de um modo geral, vem ao encontro do senso
comum, do que a mídia espera. Essas soluções, com megaoperações, como a gente
teve em 2010 no Complexo do Alemão, com Forças Armadas, helicópteros blindados,
de alguma maneira agrada este senso comum punitivo, midiático. Quando a gente
sabe que não resolve nada a médio e longo prazo. O que resolve em longo prazo é
apostar em políticas públicas.
***
O
coronel Íbis tem uma tese: segundo ele, o filme Tropa de Elite teve um efeito
muito negativo sobre o Bope, o Batalhão de Operações Especiais do Rio de
Janeiro. E isso teria sido nefasto tanto para a tropa como um todo (porque
outros batalhões passaram a copiar o Bope) quanto para a sociedade.
O
filme teria reforçado, no brasileiro, a ideia de que é possível usar de
truculência “em nome do bem”, resquício da mentalidade do regime militar. Daí
resulta o que vemos hoje nas redes sociais, gente capaz de aplaudir justiceiros
que acorrentam menores infratores a postes.
Como
é essa história do “efeito Tropa de Elite”?
Depois
do filme, o Bope adquiriu uma centralidade, um protagonismo que não tinha
antes. O que estou falando é uma hipótese que merece um estudo de alguém ligado
à Antropologia, à Sociologia. Quando fui chefe da Comunicação Social da PM,
logo depois do filme, o fenômeno Tropa de Elite foi tão intenso que a gente
teve de designar um assessor de comunicação para o Bope, porque as pessoas que
vinham para o Rio, turistas nacionais e de outros países, queriam conhecer o
Bope, ele passou a ser atração turística. Aqui na cidade duas escolas de samba
usaram a farda do Bope como tema de suas baterias. O Tropa de Elite glamourizou
o Bope. E o Batalhão de Choque ficou meio sem identidade, em função do nosso
abandono em relação a essa tropa e passou a copiar a identidade do Bope. Hoje,
se você observar, até as cores são as mesmas: as viaturas do Choque são pretas,
a mesma cor das viaturas do Bope. As tropas encarregadas do transporte de
presos também usam preto.
Então
o filme teve um efeito negativo sobre a polícia?
Na
minha opinião, sim. Ao invés de servir como crítica, glamourizou aquele tipo de
ação. Eu assisti o filme em quatro bairros diferentes da cidade e o
comportamento do público foi o mesmo nas cenas de tortura, na cena em que o
capitão Nascimento espanca um usuário: as pessoas aplaudiram. Um filme que
transforma a crítica em glamour é algo que a gente, do campo progressista,
precisa decifrar. Se a gente não entender, não consegue dialogar com a polícia.
Houve
muito entusiasmo com as UPPs. Por que elas não deram certo?
Para
a gente reduzir violência, tem que ter três coisas: vontade política,
engajamento da sociedade e visão de longo prazo. Você só consegue visão de
longo prazo se tem plano e se consegue institucionalizar o plano. Em 2008, a
gente começou no Rio uma experiência que, entre outras coisas, precisava
consolidar algumas ideias que nasceram no primeiro governo Brizola, que a gente
chamou de policiamento comunitário. Nós fizemos uma primeira experiência na
Urca e no governo seguinte foram interrompidas. Em 1991, Brizola voltou com
essas experiências e depois elas desapareceram. Então, em 2008 ,a ideia central
era essa, montar uma companhia de policiamento comunitário no Santa Marta
recuperando as ideias do Brizola. Fui chamado para treinar policiais
recém-formados antes da primeira UPP e fizemos um curso exatamente como o coronel
Cerqueira dizia que devia acontecer. Mas o programa de pacificação só foi
publicado em 2015, olha quanto tempo depois. Criamos um programa em 2008 e o
primeiro decreto criando uma estrutura mínima só foi publicado em março de
2015! Essa visão de longo prazo ficou prejudicada. Antes de você multiplicar
essa experiência, o conceito precisa estar consolidado. Se as estruturas não
estão consolidadas, não institucionaliza. E se não institucionaliza, não
reproduz. Nós colocamos 10 mil pessoas em um programa que não estava
institucionalizado. Tecnicamente falando, a ruína do programa está aí. Essa é a
primeira explicação. E multiplicamos, saímos de uma experiência para 38, sem
que isso estivesse consolidado. Não tem como dar certo. O segundo ponto é que
não mexemos na política de drogas, não acabamos com a guerra às drogas, e com
um agravante: agora o policial está dentro da favela. Mas não houve nenhum tipo
de mudança na estratégia de enfrentamento da questão. Quando Brizola criou o
Centro Comunitário de Defesa da Cidadania, que era uma espécie de lugar onde
oferecia vários serviços públicos da população, ficava muito claro o que o
policial não deveria fazer: se envolver com o crime, com droga. Se houvesse
tráfico de drogas na localidade isso deveria ser cuidado por outra tropa. A
finalidade dele ali era outra. Ele pagou um preço muito grande por essa
coragem, de assumir essa ordem clara para o policial. Em nenhum momento essa
ordem em relação às UPPs teve esse nível de clareza e de coragem. Nós colocamos
10 mil policiais em lugares onde reconhecidamente as drogas eram vendidas e
nunca tivemos a clareza, a honestidade, de dizer para o policial: seu
comportamento aí deve ser esse. O discurso sempre foi: a polícia está ali para
impedir que as armas pesadas circulem, mas nunca se disse o que fazer em
relação à venda de drogas. Uma covardia com o policial. Deixaram que o policial
construísse a sua prática a partir do cotidiano e a partir da legislação. E aí
vem outro aspecto: um governo federal que ainda não entendeu que é um ator
fundamental na política de segurança pública. Ele continua achando que não tem
nada a ver com isso, que segurança pública é dos estados. Num país como o
nosso, com modelo federativo, não reduz homicídios sem a união. E sem os
municípios, por outro lado. A prevenção é a grande vocação dos municípios. A
violência no Brasil tem dois grandes problemas: as omissões dos governos
federal e municipal, que ainda não entenderam seus papéis. Nós da esquerda
somos fundamentais para tentar mudar um pouco isso.
O
que aconteceu? O policial se envolveu com o tráfico?
Não
tenho dúvida que a corrupção é um problema grave que está por trás da ruína das
UPPs. A gente colocou 10 mil jovens, com média de idade de 26 anos, dentro das
favelas com venda de drogas e não fizemos nada para enfrentar esta questão, a
não ser colocar polícia lá dentro. Não fizemos nada para evitar que armamentos
pesados, fuzis, granadas, chegassem ao Rio de Janeiro, porque a União não se
mexe neste sentido, não faz absolutamente nada para controlar armas e munições.
Não tivemos a coragem de formular uma política adequada para enfrentar estas
questões, dizer como o policial poderia se portar. Deixamos ele largado ali. O
resultado disso é a morte de policiais. A primeira que morreu foi uma menina,
Fabiana, de 30 anos, dois meses depois de a primeira UPP ser inaugurada no
complexo do Alemão. Não fizemos nada depois dessa morte, a polícia continuou
trabalhando lá como se nada tivesse acontecido. Não mudou um milímetro o
programa. A violência policial não existe desacompanhada da corrupção. A
violência e a corrupção andam juntas. A corrupção é uma consequência da
violência policial. Toda polícia violenta é corrupta, necessariamente corrupta.
No Brasil, se a gente quiser polícias menos corruptas, a gente tem que
enfrentar a violência policial. Esse é o primeiro compromisso do estado
democrático de direito. Polícia menos violentas serão polícias menos corruptas.
É
neste contexto que surgem os Amarildos.
Sim,
o caso Amarildo ilustra bem isso e não houve uma retratação por parte do Estado
no sentido de assumir sua responsabilidade. O governador não pediu desculpas. O
secretário da Segurança não pediu. Quem pediu desculpas foi o comandante das
UPPs na época, o coronel Frederico. O Estado, não. O caso só ganha notoriedade
porque era no momento das manifestações de 2013 e o asfalto assumiu o Amarildo.
Se tivesse ficado no âmbito da Rocinha, teria sido associado ao tráfico, como
era a linha de investigação inicial. Foi o (delegado) Zaccone que mudou a linha
de investigação, o Brasil deve isso a ele, porque para mim o caso Amarildo foi
o mais grave envolvendo as polícias brasileiras, simbolicamente. De todas as
chacinas, de todos os crimes, nenhum é mais grave simbolicamente. Amarildo foi
preso pela polícia, conduzido a uma unidade da polícia e desapareceu. Isso é
enredo de ditadura militar, isso não acontece numa democracia. O caso Amarildo
prova que ainda não fizemos a transição democrática, ainda não somos uma democracia.
http://www.socialistamorena.com.br/ibis-o-coronel-comunista-da-pm/
Um comentário:
Para o avanço para um plena democracia, temos que avançar e muito. O que temos é uma democracia burguesa, em que a classe social dos trabalhadores não é notada por quem faz ou cumpre as leis.
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