Valho-me
do livro que melhor analisa, para além de Agamben, o problema do que se pode
chamar de Estado de exceção nestes tempos conturbados. Falo de Autoritarismo e
golpes na América Latina — Breve ensaio sobre jurisdição e exceção, de Pedro
Serrano, para quem o Brasil vive um momento perigoso de crescimento acelerado
de medidas próprias de um Estado de exceção, que estão sendo praticadas
cotidianamente e, o que é mais grave, naturalizadas. Nossa incipiente
democracia vai assim se esfacelando e se transformando em uma maquiagem, que
confere a aparência de um Estado Democrático, mas ao invés de ampliar e
efetivar direitos, suprime-os paulatinamente, conclui Serrano.
O
Estado de exceção ocorre quando determinadas leis ou dispositivos legais são
suspensos (no sentido de não serem aplicados). Ou seja, alguém com poder põe o
direito que acha adequado para aquele — e cada — caso. O soberano é aquele que
decide sobre o Estado de exceção, diz Carl Schmitt. Para ser generoso, poderia
aqui falar de um “Estado de Exceção Regional(izado)”, isto é, ao menos em uma
área sensível do Brasil já vivemos esse fenômeno denunciado por autores como
George Agamben. Quando se suspende uma lei que trata de direitos e essa
suspensão não tem correção porque quem tem de corrigir e não o faz ou convalida
a suspensão, é porque o horizonte aponta para a exceção.
Vou
elencar alguns tópicos que compõem uma espécie de check list para saber se
estamos ou não perigosamente na tênue linha do Estado de exceção. Assim,
pode-se dizer que estamos em Estado de exceção quando
1.
a advocacia se torna um exercício de humilhação cotidiana;
2.
indício e presunções viram prova, prova é transformada em uma mera crença e
juiz condena réu a longa sentença (reformada) baseado em meros relatos de
delatores;
3.
faz-se condução coercitiva ATÉ de advogado, em flagrante violação do CPP e da
CF;
4.
advogado é processado por obstrução de justiça porque aconselha seu cliente a
não fazer colaboração premiada;
5.
ocorre divulgação (seletiva ou não) de gravações resultantes de intercepções
não autorizadas; isto é, quando a GloboNews e o Jornal Nacional sabem antes do
próprio réu;
6.
arquiva-se, com argumentos de política e não de princípio, representação contra
quem procedeu — confessadamente — a divulgação da prova ilícita;
7.
ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça confessa que foi conivente com
vazamento, sob o argumento de que a ilegalidade era para o bem;
8.
o MP faz denúncia criminal considerada por Tribunal Regional Federal como
coação ilegal (assim, literalmente) e isso não acarreta repercussão nos órgãos
de fiscalização do MP;
9.
membros do Ministério Publico e do Judiciário se manifestam em redes sociais
(tomam lado) confessando parcialidade e incitando a população contra o Tribunal
Superior Eleitoral, face a julgamento com o qual não concordam;
10.
agentes políticos do Estado vendem, por intermédio de agenciamento comercial,
palestras por altos valores, autopromovendo-se a partir de processos judiciais
das quais são protagonistas;
11.
ocorre a institucionalização da ausência de prazo para prisões preventivas (há
casos de prisões que ultrapassam a dois anos, usadas para forçar delações
premiadas e acusados (ou indiciados) “aconselhados” a trocarem de advogado,
para contratarem causídicos “especialistas” em delação;
12.
juiz constrói um Código de Processo Penal próprio, a ponto de, no bojo de uma
sentença de um réu, dar incentivo condicionado à delação de um outro réu, tudo
à revelia da lei e do CPP;
13.
se institucionaliza a dispensa dos requisitos do artigo 312 do CPP para
decretação de prisão preventiva; lei vale menos que o clamor popular;
14.
um agente político do Estado troca de lado no combate ao crime: em linguagem
ludopédica, é um craque — sai do ataque e vai para a defesa;
15.
delações concluídas e homologadas à revelia da legislação, inclusive com
cumprimento de penas que-não-são-penas porque não houve julgamento; ou seja, o
prêmio da delação premiada é recebido antes do processo;
16.
“normalização” do lema “se delinquir, delate” (conforme bem denuncia o
jornalista Vinicius Mota): “está aberta a via para um ciclo de delações
interminável e potencialmente infernal, porque composto de informações de
difícil comprovação”; lambuzamo-nos com o melado recém-descoberto, diz Mota;
17.
perigo de se institucionalizar uma espécie de “lavagem de prova ilícita”, isto
é, a legitimação de delações sem denúncia e “constitucionalização” da
possibilidade de uso de prova ilícita (por exemplo: o sujeito, via prova
ilícita de raiz, chega ao MP e faz acordo; com esse acordo, recebe imunidade;
depois essa prova estará “lavada” e o judiciário não mais poderá anulá-la);
18.
naturalização de decisões que decretam prisões baseadas em argumentos morais e
políticos;
19.
naturalização de denúncias criminais baseadas em construções ficcionais; enfim,
decisões (atenção: o ato de denunciar alguém[1] já é uma decisão) que deveriam
ser baseadas no Direito não passam de escolhas baseadas em opiniões morais e
políticas;
20.
como se fosse candidato a senador ou presidente da república, candidato a PGR
diz que precisamos de uma reforma política..., mostrando, assim, que alguma
coisa está fora de ordem nas funções estatais;
21.
por último, estamos em Estado de exceção Regional (EER) quando todos os itens
acima não causam indignação na comunidade jurídica e parcela majoritária dela
os justifica/naturaliza pelo argumento de que “os fins justificam os meios”.
A
lista pode ser estendida. São sintomas. Cada leitor pode fazer a sua. O que
aqui foi exposto é simbólico. Tudo começou com o ativismo e a judicialização da
política... para chegar ao ápice: a politização da justiça.
Imparcialidade
e impessoalidade: eis o que se espera de quem aplica o direito. E isso já se
erodiu. Quando jornais como O Estado de S. Paulo começam a exigir o cumprimento
de garantias e criticar as delações, é porque de há muito começou a chover na
serra... a planície é que não se deu conta — aqui parafraseio Eráclio Zepeda.
Juristas
viraram torcedores. E torce-se o Direito à vontade. Vontade de poder (Wille zur
Macht). A mídia faz a pauta (des)institucional. O Direito desaparece(u). Lewis
Caroll — em Alice Através do Espelho — inventou/denunciou, bem antes de Agamben
e Schmitt, o sentido de Estado de exceção. O soberano, que decide no Estado de
exceção, dá às palavras o sentido que quer, como o personagem Humpty Dumpty.
Por isso, o prazo para a prisão é aquele que quem tem poder de dizê-lo, é. A
fundamentação também é aquela que...! E pode fazer condução coercitiva...
porque sim. Até de advogado. E pode...tudo. Desde que tenha o poder. Próximo
passo: dispensa de advogado nos processos judiciais. Futuro: Privatização da
ação penal — se o réu confessar logo, nem denúncia haverá. E delegado terá o
poder de mandar recolher o indiciado diretamente à prisão.
O
engraçado de tudo isso é que, face a este estado da arte, defender a estrita
legalidade virou um ato revolucionário. Tenho dito isso em todas as minhas
palestras não-remuneradas.
Post
scriptum I: Onde deve sentar o advogado? Resposta do Pe. Bartolomeu
A
Câmara aprovou o Projeto de Lei 4.850, de 2016, com importantíssimas conquistas
no plano da garantização das prerrogativas da profissão de advogado. Mas, nem
tudo são flores no projeto. Por exemplo, não sei o que os deputados que
aprovaram a emenda no artigo 7, XXII, do Estatuto da OAB, queriam ou querem. Só
sei que foi à revelia da OAB. Com a alteração proposta no projeto, o advogado
passa a sentar na mesma altura do Ministério Público (ao que entendi). Viva,
dirão os advogados... Mas, se lermos todo o dispositivo, veremos que ambos
sentarão... abaixo do juiz. Verbis:
“Durante
as audiências, o advogado sentar-se-á à esquerda do juiz, ao lado de seu
cliente, e a parte adversa tomará assento à sua direita, ambos em igual
posição, horizontal ou perpendicular, abaixo do magistrado”.
(Não)Bingo:
até agora, os advogados estávamos formalmente no mesmo nível dos juízes e MP;
agora, estamos legalmente abaixo do juiz. Ao que vi, os deputados, para
igualarem os advogados ao MP, puxaram este para baixo e deixaram o juiz acima
dos dois. Poxa. Mais uma vitória destas e estaremos totalmente lascados —
exatamente o que disse o general Pirro às portas de Roma, depois de uma “grande
vitória”, olhando para as suas tropas escangalhadas. No Brasil, regras de
processo são feitas por regimento interno e portaria; já o lugar de sentar é
regulado por lei. Logo, logo vem um PEC para colocar o advogado para fora da
audiência. Podíamos também regular a gravata, a sua cor, o cabelo do causídico
e coisas desse jaez...
Quase
ia esquecendo. A propósito do lugar de sentar, a amiga Andrea Bispo, do
longínquo e simpático Pará, chama a atenção para este trecho do Memorial do
Convento, de Saramago, página 65, que deveria ser lido pelos senadores quando
da votação naquela casa:
“Baltasar
recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar tempo ao diabo de
concluir as suas obras, Que estás a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é
que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu
digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão
direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus,
nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não
se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta.
Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.”
Portanto,
muito cuidado em pedir para sentar do lado esquerdo. Se me entendem as
implicaturas de tudo o que aí está dito. E não dito.
1
A propósito da denúncia do PGR contra Temer, feita com sumário (nova moda) em
mais de 60 laudas, lembro que, quando eu iniciava minha carreira no MP, um
velho Procurador me disse o seguinte: - quem propõe arquivamento em 60 laudas é
porque deveria denunciar em 6; e quem quer denunciar em 60 laudas, arquiva em 6
ou requer rigorosas diligências para buscar provas concretas. Sábio conselho
que procurei seguir por 28 anos. Hoje tudo mudou.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quais-estamos-estado-excecao
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