Obsoleto
é o que está ultrapassado, fora de moda, imprestável, antiquado, sem uso ou
utilidade. O que se torna obsoleto vai, com o tempo, sendo substituído. Isto é
da natureza das coisas e a morte é, para o ser humano, a obsolescência levada
ao limite. No mundo tecnológico, onde as mudanças ocorrem cada vez em maior
velocidade, as inovações fazem com que o material seja substituído em tempo
cada vez menor.
No
entanto, é no Direito do Consumidor que a obsolescência vem encontrando maior
campo de discussão. Ela é a antítese da ética: provocar o desuso, a utilidade
de um bem móvel, a fim de poder vender outro ao consumidor. Não se trata
propriamente de uma novidade, pois seu início é tido como sendo a partir da
grande depressão econômica de 1929, quando se mostrava necessário impulsionar o
mercado consumidor.
No
entanto, nas duas últimas décadas o fenômeno se acentuou, certamente fruto de
uma propaganda inteligente e permanente, que leva as pessoas a comprar sempre e
mais, muito embora, na maioria das vezes, sem necessidade. As técnicas de
vendas vão desde estudos de psicologia social, que definem comportamentos, até
a colocação do produto nas gôndolas dos supermercados. Nada é improvisado, tudo
é planejado com rigor.
No
entanto, se o consumo de alguns produtos é permanente (p. ex., alimentos), o de
bens duráveis é espaçado. E aí entra a conduta de não permitir que estes bens
perdurem no tempo, a fim de que sejam trocados pelo consumidor. A duração é
estabelecida em tempo que leve à troca.
Aí
está a obsolescência programada, que para Efing, Soares e Paiva "faz parte
de uma estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante por meio da
insatisfação, de forma que os produtos que satisfazem as necessidades daqueles
que os compram parem de funcionar ou tornem-se obsoletos em um curto espaço de
tempo, tendo que ser obrigatoriamente substituídos de tempos em tempos por
outros produtos mais modernos".[i]
O
quadro estaria incompleto se o conserto fosse viabilizado pelos produtores.
Mas, não é bem assim. A primeira desilusão do comprador ocorrerá ao dirigir-se
à loja onde adquiriu o bem. Constatará que o vendedor sabe de cor a forma de
financiamento e outros detalhes, mas não entende absolutamente nada do mais
vulgar defeito.
Um
local autorizado, possivelmente, não terá as peças necessárias. Dirá o
funcionário que terão que encomendar em São Paulo e, passado um mês, talvez a
resposta seja que já pediram à sede na China.
Lindos
televisores plasma, celulares em que telefonar é apenas um detalhe,
computadores, fornos micro-ondas, fogões e outros tantos aparelhos mostram-se
imprestáveis, tão logo passado o tempo da garantia. E como ninguém está
disposto a aguardar a vinda de peças sem data de chegada, a decisão costuma ser
comprar um aparelho novo.
O
consumidor, vítima de uma estratégia bem engendrada, na maioria absoluta das
vezes fica inerte. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec):
A
maioria dos consumidores (81% dos entrevistados) troca de celular sem antes
levá-lo à assistência técnica para saber se é possível consertá-lo. Para os
demais itens avaliados na pesquisa (eletrodomésticos, aparelhos digitais como
computadores e câmera fotográfica, e eletrônicos), os consumidores que não
optam pela assistência técnica, representam percentual menor, respectivamente
23%, 27% e 44%, porém ainda em patamares elevados.[ii]
A
conscientização, é óbvio, depende do grau de cultura e conscientização da
sociedade. Não são muitos os que vêm buscando reparação junto ao Poder
Judiciário. A base legal está Código de Defesa do Consumidor, que coloca entre
os seus princípios a repressão a todos os abusos praticados e o direito do
consumidor à informação adequada (artigos 4º, VI e 6º, III).
O
artigo 18 do mesmo Código estipula que os fornecedores de produtos de consumo
duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou
quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam
ou lhes diminuam o valor. E o artigo 32, de forma clara, estabelece que os
fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de
reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto e, mesmo quando
elas, por qualquer razão, cessem, devem manter a oferta por período razoável de
tempo, na forma da lei.
Portanto,
como ensina Laís Gomes Bergstein, “na hipótese de serem lançadas novas versões
ou edições de produtos, os fornecedores deverão oferecer meios para que aqueles
já adquiridos pelos consumidores permaneçam funcionando adequadamente até que
precisem ser descartados em função de seu desgaste natural”.[iii]
A
maioria dos que buscam a reparação junto ao Poder Judiciário dirigem-se aos
Juizados Especiais Cíveis, através de pedidos de valor até 40 salários mínimos.
Por tal motivo, a maior parte da jurisprudência é das Turmas Recursais dos
Juizados.
O
Código fixa prazos reduzidos para a interposição de ações. Para produtos
duráveis, 90 dias, para os não duráveis, apenas 30. Tais prazos são, inclusive,
inferiores à garantia que os fabricantes oferecem, via de regra de um ano.
Sobre
o alcance do Código do Consumidor aos casos de obsolescência programada,
inexiste jurisprudência consolidada, sendo a maioria dos julgados de
improcedência. Com efeito, hesitam os julgados em determinar sistematicamente
reparações, temendo que o fato importe em exagerada invasão do Estado na
economia de livre mercado ou talvez receando abrir caminho para fraudes.
Vejamos alguns precedentes:
A
1a Turma Recursal Cível da Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença que
julgou improcedente ação indenizatória por danos morais, em conflito que
envolvia telefone celular encaminhado para conserto consistente na substituição
da tela do visor, com fundamento no fato de que o mercado não oferecia mais
peças para a reposição e a obsolescência programada não poderia ser imputada ao
prestador de serviços (Recurso Cível 71005815428, Relator José R. de Bem
Sanhudo, j. 28/06/2016).
A
3a Turma Recursal Cível da Justiça do Rio Grande do Sul, examinando recurso
contra sentença de improcedência em caso em que houve migração de tecnologia
CDMA para GSM, com pretensão do autor de continuar com seu aparelho ou que a
operadora ré fornecesse um valor maior do que R$99,00 para a troca do mesmo,
reconheceu a Turma a obsolescência programada, porém deixou explícito que “ Em
que pese não seja imune às críticas, esse modo de funcionamento do mundo
capitalista não é ilícito, nem ilegal, de modo que não se pode compelir a
fornecedora a atender os reclames do consumidor (Recurso Cível 71004731089,
Relator Cleber A. Tonial, j. 30/01/2014).
A
1a Turma Recursal Cível do Paraná, julgando ação em que se invocava vício em um
fogão, rejeitou a tese da decadência porque passados 5 anos, entendendo que o
fornecedor responde pelo tempo de vida útil do bem e, reconhecendo a
obsolescência programada, julgou procedente a ação para determinar a
restituição do bem móvel (Recurso Cível 0007460-97.2016.8.16.0182/0, Relatora
Fernanda Geronasso, j. 15/02/2017).
No
Tribunal de Justiça de São Paulo, a 30ª Câmara de Direito Privado negou
indenização por danos materiais e morais na compra de um notebook. A Câmara
rejeitou a tese de decadência em 90 dias, com base no artigo 26, II e § 3º do
Código do Consumidor, fixando o prazo nos 5 anos previstos no mesmo estatuto,
porém, no mérito, julgou, por 2 votos contra 1, improcedente a ação, porque os
problemas teriam ocorrido depois da garantia contratual (TJSP, Apelação com
Revisão 0131734-22.2010.8.26.0100, rel. Marcos Ramos, j. 30/9/2015).
O
Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo ministro Luis Felipe
Salomão em 4 de outubro de 2012, rejeitou a tese de decadência no prazo de 90
dias da aquisição sem que houvesse qualquer reclamação. Registrou a decisão
colegiada que “o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que
ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de
expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o
critério da vida útil do bem”.[iv]
Finalmente,
há aspecto da máxima relevância que não tem sido lembrado nas ações judiciais: os
péssimos efeitos da obsolescência programada para o meio ambiente. Com efeito,
milhares de aparelhos eletrônicos são repostos constantemente, sendo
descartados os que se revelem inúteis. Em um país em que a maioria dos
municípios não possui aterros sanitários, o resultado é que eles vão parar em
lixões, onde se deterioram e dão causa à proliferação de problemas de saúde,
contaminação da água e do solo. Há flagrante descumprimento dos artigos 170,
inciso VI e 225, “caput” da Constituição.
Pelo
que foi exposto, torna-se flagrante a necessidade de banir-se, ou pelo menos
reduzir-se ao extremo, a prática da obsolescência programada no Brasil. A
educação é imprescindível para tal fim, porém a repressão, através de sanções
administrativas e ações indenizatórias, nestas com a cautela necessária para
evitar fraudes, revela-se de todo recomendável.
[i] Antônio Carlos
Efing, Alexandre Araújo Cavalcante Soares e Leonardo Lindroth de Paiva,
“Reflexões sobre o tratamento jurídico da obsolescência programada no Brasil:
implicações ambientais e consumeristas”, em
http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/9698/5449, acesso em
2/6/2017.
[ii] O destino dos
aparelhos usados. Revista do Idec. Fevereiro, 2014, p. 20.
[iii] Obsolescência
programa: breves notas. Em
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI173165,81042-Obsolescencia+programada+breves+notas,
acesso em 2/6/2017.
[iv]
http://s.conjur.com.br/dl/cdc-proteger-consumidor-obsolescencia.pdf, acesso em
3/6/2017.
Vladimir
Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde
foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor
pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no
mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for
Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do
Ibrajus.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jun-04/segunda-leitura-obsolescencia-programada-reprimida-tribunais
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