Recentemente, o conselheiro do
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Valter Shuenquener concedeu
liminar para anular a questão número 9 do 54º concurso público para promotor de
Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. No voto, o conselheiro cita
coluna Senso Incomum, na qual denunciei o
exotismo das teorias perquiridas no certame, como a teoria (sic) da graxa e do
Estado vampiro. O CNMP, assim, dá importante passo para desbaratar embustes
epistêmico-concurseiristas, como o uso de questões exóticas e quiz shows.
Bingo, conselheiro Valter. Estava na hora de passar um recado às bancas de
concursos. Há que se avisar que o concurso não é da banca; é do “público”; é
res publica. Não é res concurseira.
Pois parece que o recado do CNMP não
retumbou em certas teorias utilizadas pelo Ministério Público Federal nas alegações finais subscritas recentemente no processo
criminal movido contra o ex-presidente Lula. Que o procurador signatário da
peça cite em seu livro teorias exóticas e incompatíveis com qualquer
perspectiva contemporânea acerca da prova, OK. Mas que queira fazer uso de
teorias, teses ou posturas acopladas a fórceps no Direito é outra coisa. Qual é
o limite ético do uso de determinadas teses, tratando-se de uma instituição que
deve ser imparcial (MP deveria ser uma magistratura) e zelar pelos direitos e
garantias dos cidadãos e da sociedade?
É possível, na ânsia de condenar,
jogar para o alto tudo o que já se ensinou e escreveu nas mais importantes
universidades do mundo sobre a prova e a verdade no processo penal? Aliás, nas
alegações finais que tive a pachorra de ler (e só o fiz depois que fiquei
sabendo que o procurador usou o bayesianismo e o explanacionismo), sequer são
citados os livros nos quais ele se baseia.
O que diz o signatário? Vamos lá. “As
duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na
vertente do bayesianismo, e o explanacionismo. Não é o caso aqui de se realizar
uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus
principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”.
(grifei)
Sigo. E ele explica: “Muito
sucintamente, o bayesianismo, fundado na atualização de probabilidades
condicionais do Teorema de Bayes, busca atualizar a probabilidade de uma
hipótese com base em evidências apresentadas. Na linguagem probabilística, uma
evidência E confirma ou desconfirma uma hipótese H. Contudo, a vertente
probabilística de análise de prova apresenta inúmeras dificuldades para as
quais ainda não foi apresentada resposta convincente, como o problema das
probabilidades iniciais, a complexidade dos cálculos, o problema da classe de
referência, o paradoxo das conjunções, as evidências em cascata etc. Já de
acordo com o explanacionismo, a evidência é vista como algo que é explicado
pela hipótese que é trazida pela acusação ou pela defesa”. (sic)
Bom, isso se pode ver também na
Wikipédia (e olha que a fonte das páginas Wikis nem são tão confiáveis). Aliás,
na Wiki está mais “clara” essa “bela” tese sobre “a prova” adaptada à fórceps
ao Direito. Vejamos: O teorema de Bayes (por isso bayesianismo!) é um corolário
do teorema da probabilidade total que permite calcular a
seguinte probabilidade:

Pronto. Eis aí a fórmula para condenar
qualquer réu e por qualquer crime. Você joga com as premissas (ou
probabilidades) e... bingo. Tira a conclusão que quiser. Algo próximo a
autoajuda para entender o que é isto — a verdade no
processo penal. Gostei mesmo foi do “Paradoxo das conjunções...”.
Deve ser esse o busílis do teorema aplicado à teoria da prova. Fico imaginando
o juiz dizendo (não resisto a fazer uma blague e peço já desculpa aos leitores
e ao signatário da peça por isso — mas é que a situação é por demais
peculiar): “— Condeno o réu Mévio porque o Pr(A), na conjunção com o
Pr(AB) deu 0,1. Isso porque a probabilidade a posteriori indicava que Pr(B-A)
era inferior a Pr (B+). Perdeu. A casa caiu; a pena aplicada é de X anos”.
Mas a peça é ornamentada com mais uma
“teoria jurídica”: O explanacionismo,
que “tem por base a lógica abdutiva, desenvolvida por Charles Sanders Peirce no
início do século XIX. Para se ter ideia da força que assumiu a abdução, que foi
denominada inferência para uma melhor explicação (“inference to
the best explanation”) pelo filósofo Harman, pode-se citar uma obra
da década de 1980 em que Umberto Eco, junto com outros renomados autores,
examinaram exemplos do uso dessa lógica em inúmeras passagens de Sherlock Holmes.
Na linguagem explanacionista, a
hipótese fática H (cuidado com a cacofonia) que é tomada como verdadeira é
aquela que melhor explica a evidência E, ou o conjunto de evidências do caso.
Assim, a melhor hipótese para a evidência consistente em pegadas na areia é a
hipótese de que alguém passou por ali. (...) Combinando o explanacionismo com o
standard de prova da acusação, que se identifica como a
prova para além de uma dúvida razoável, pode-se chegar à conclusão quanto à
condenação ou absolvição do réu”. (sic)
Pronto. Sherloquianamente, a partir do
explanacionismo, chega-se à conclusão de que... de que, mesmo? Ou seja: Tício
pode ser condenado porque a hipótese fática H (cuidado de novo) foi tomada como
verdadeira por Caio porque é a que melhor explica a evidência E. E eu poderia
dizer que, a partir da teoria da incompletude de Gödel, a tese esgrimida na
peça processual está errada. Ou está certa. Quem sabe? Ou que pelo sistema de
Hilbert (por essa ninguém esperava, hein; pensam que não leio essas coisas?) há
85% de chances de a abdução realizada pelo procurador signatário da peça
ser falsa, porque, no plano sistêmico — entendido a partir de uma
epistemologia não-cognitivista moral (teoria metaética) — ele está
absolutamente equivocado. Mas isso que eu acabei de falar é tão verdadeiro
quanto a teoria do bayesianismo. Ou não. Entenderam?
Ou seja, cada coisa que está dita
— e vou utilizar o neopositivismo lógico (não inventei isso) e sua
condição semântica de sentido — pode ser refutada com a simples
aposição da palavra “não”. Vou me autocitar só uma vez (há 7
autocitações na peça processual): no meu Dicionário de Hermenêutica,
há um verbete sobre Resposta Adequada a Constituição, em que mostro como usar a
condição semântica de sentido (por óbvio, sob um viés hermenêutico que não vou
explicar aqui). De uma forma simples, é assim: Um enunciado só é verdadeiro, a
partir do neopositivismo lógico, se passar pelo filtro da sintaxe e da
semântica. Se eu digo “chove lá fora”, esse enunciado pode ser testado.
Sintaticamente, correto. E semanticamente? Fácil. Basta olhar para fora. Se
estiver chovendo, beleza. Se estiver tempo seco, basta colocar um “não” no
enunciado. Bingo. Enunciado verdadeiro. Parcela considerável do que está dito
nas três centenas de laudas não passa pela CSS (condição semântica de sentido).
Coloque a palavra “não” nos enunciados (frases) e constate. No Dicionário, uso o exemplo da decisão em que uma juíza do Rio
de Janeiro nega ao detento o direito de não cortar o cabelo, enquanto que para
as mulheres era dado esse direito. Argumento: as mulheres são mais higiênicas
que os homens. Bingo: se eu colocar um “não”, que diferença fará? Não há
qualquer possibilidade empírica de verificar a veracidade do enunciado.
Aliás, qualquer coisa que você quiser
demonstrar é possível com as duas “modernas” teorias (sim, são modernas..., mas
não para o Direito e/ou teoria da prova). Aliás, abdução ou
dedução ou coisa que o valha só é possível — na filosofia — se estivermos em
face de um enunciado auto evidente. Caso contrário, como nunca falamos de um
grau zero de sentido, colocamos a premissa que quisermos, para dali deduzir o
que queremos. Sherlock mesmo tem várias passagens em que brinca com esse tipo
de raciocínio. Isso também está explicado no diálogo entre Adso de Melk e
Guilherme de Baskerville, no romance O Nome da Rosa. É a
passagem da subida em direção à Abadia... Deduções que parecem deduções...
Trazer isso para o Direito e tentar,
de forma malabarística, dizer que uma coisa é porque não é mas poderia ter sido
por inferência ou abdução, cá para nós, se isso for ensinado nas salas de aula
dos cursos de direito... Bom, depois da teoria da graxa, dos testículos
partidos, da exceção da nódoa removida, do dolo colorido, do estado vampiro, da
teoria régua lésbica aristotélica (sim, isso é ensinado em alguns cursinhos),
porque não incluir duas novas — bayesianismo, e o explanacionismo?
Aproveito para sugerir uma nova: a TPP
— Teoria da Prova de Procusto. Inventei agora: Procusto era um sujeito que
tinha um castelo no deserto. Quem por ali passava recebia toda mordomia. Só
tinha um preço: dormir no seu leito. Procusto tinha um metro e sessenta. Se o
visitante medisse mais, cortava um pedaço; se medisse menos, espichava o
vivente. Pronto. Se os fatos não comprovam alguma coisa, adapte-se os às
teorias. Ou se crie uma teoria para construir narrativas.
Numa palavra: não coloco em dúvida o
valor do teorema de Bayes e o esplanaciosimo. Mas um processo penal é uma coisa
séria demais para experimentalismos. Ou jogos de palavras. O que consta da peça
processual, se verdadeiras as adaptações que se quer/quis fazer para a teoria
da prova no Direito, jogará por terra dois mil anos de filosofia e todas as
teorias sobre a verdade. Mas tem uma explicação para essas teses ou “teorias”:
na verdade, são teses que se enquadram, no plano da metaética, no não
cognitivismo moral, como bem explica Arthur Ferreira Neto no seu belo livro Metaética e a fundamentação do Direito. São
não-cognitivistas todas as teorias emotivistas, niilistas, realistas (no
sentido jurídico da palavra) e subjetivistas.
E por que? Porque são posturas céticas
(ceticismo externo, diria Dworkin). Por elas, não é possível exercer controle
racional de decisões. Direito, por exemplo, será aquilo que a decisão judicial
disser que é. E isso resultará de um ato de verificação empírica. Um ato de
poder. E de vontade. Prova será aquilo que o intérprete quer que seja. Para
essa postura, decisões jurídicas sempre podem ser variadas. Uma postura
não-cognitivista não concebe a possibilidade de existir nenhuma forma de
realidade moral objetiva; relativismo na veia; não é possível, por elas, dizer
que uma coisa é ruim em qualquer lugar; somente a dimensão empírica é capaz de
influenciar a formação do direito. O decisionismo é uma forma não-cognitivista.
Niilismo, do mesmo modo é uma forma não-cognitivista, assim como uma corrente
chamada emotivista. O uso das teses em testilha e seu signatário podem ser
enquadrados como um não-cognivismo moral, seguindo os conceitos das teorias
mais modernas sobre a diferença entre cognitivismo e não-cognitivismo ético
(aqui, moral e ética são utilizadas, na linha de Arthur Ferreira Neto, como
sinônimas). De minha parte, sou confessadamente um cognitivista.
Por que estou dizendo tudo isso?
Porque quem sai na chuva é para se molhar. Ou corre o risco de se molhar (isso
seria uma inferência? Ou uma abdução? Ou dedução?). Estamos falando de um
agente do Estado que possui responsabilidade política (no sentido de que fala
Dworkin). O agente do MPF nos deve accountability. Deve
ser imparcial. Não pode dizer o que quer. Há uma estrutura externa que deve
constranger a sua subjetividade. Essa estrutura é formada pela Constituição, as
leis, as teorias da prova, as teorias sobre a verdade, enfim, há uma tradição
acerca do que são garantias processuais. E do(s) agentes(s) estatais podemos
questionar o uso de “teorias” sobre a prova que o próprio CNMP poderia — se
indagadas em concurso público — chumbá-las, porque exóticas. Comparando com a
medicina, é como se alguém defendesse a tese de que é possível fazer operação a
partir da força da mente. Ou algo exótico desse jaez.
Por fim, poder-se-á dizer que há
provas nos autos etc., coisa que aqui não me interessa. Não sou advogado
da causa. Não quero e nem posso discutir o mérito do
processo. Discuto as teorias de base utilizadas por um agente público.
Poder-se-á dizer que o uso das duas “teorias” citadas nem são (ou foram)
importantes para o deslinde da controvérsia (embora o próprio procurador
signatário diga que fará a análise das provas a partir dessas duas “teorias”).
Mas que estão aí, estão. O juiz da causa poderá até acatá-las.
Mas, com
certeza, se perguntadas em concurso público, haverá a anulação das questões.
Pelo menos é o que se lê na liminar do CNMP (atenção - até porque no
Brasil as metáforas têm de ser anunciadas e explicadas - a alusão ao CNMP tem
apenas o condão de comparar a dimensão do sentido do uso de "teorias exóticas").
Se alguém ficou em dúvida em relação
ao teorema de Bayes, retorne no texto e veja de novo a fórmula. Não entendeu?
Ora, é fácil.
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados
Revista Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jun-22/senso-incomum-exoticas-teorias-usadas-mpf-seriam-chumbadas-cnmp2
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