Na
década de 1980, Tim Burton lançou um filme extremamente divertido e que fez
muito sucesso chamado Beetlejuice (que em português recebeu o título de Os
Fantasmas se Divertem). Nele é contada a história de um casal recém-falecido
que procura se ajustar à vida post-mortem — na verdade, eles não aceitam muito
bem a facticidade de sua morte — e tentam repelir que um outro casal, de
pessoas vivas, venha a residir em sua antiga casa. A princípio, o casal
falecido tenta fazer uso de sua nova realidade para, fantasmagoricamente,
pregar peças e sustos nos vivos, na perspectiva de afugentá-los do lugar que
consideram seu lar por direito. Todavia, por serem ectoplasmas recentes, eles
não possuem a capacidade de serem vistos pelos vivos, de modo que a “assustabilidade”
do casal é bastante baixa. Assim, eles tentam recorrer ao mundo dos mortos para
receber uma espécie de credencial que possibilitaria uma eficácia maior no
horror que queriam impor aos vivos. Mas, para frustração dos dois, o mundo dos
mortos era extremamente burocrático; prenhe de filas quilométricas, de modo que
a perspectiva de atendimento no setor dos sustos fantasmagóricos pela senha que
tiraram era de aproximados 125 anos. Frustrados em seus planos, eles resolvem
pedir a ajuda de um fantasma picareta que se diz especialista em “exorcizar os
vivos”, chamado Beetlejuice (interpretado por Michel Keaton). Quando o casal
ectoplasmático percebe as verdadeiras intenções de Beetlejuice, eles tentam
desfazer o contrato, mas já era tarde demais, uma vez que o “exorcista de
vivos” já havia causado estragos na vida de todos.
Os
recentes acontecimentos que estão mobilizando a opinião pública e,
especialmente, os atores jurídicos no Brasil têm um que desse universo
Beetlejuice (do filme como um todo, não apenas da personagem). Impressiona-nos
sobremaneira a intensidade com que as ideias de livre convencimento e verdade
real são chamadas à colação sempre que o assunto é análise de provas ou
compreensão do Direito. A aproximação desse fenômeno tupiniquim com o filme de
Tim Burton pode ser realizada em pelo menos dois aspectos: de forma mais
abrangente, podemos dizer que essas ideias (livre convencimento e verdade real)
são fantasmas contratados pela modernidade jurídica — especialmente no âmbito
da processualística — para assustar alguns moradores (não necessariamente
novos) que habitavam o mundo do Direito. Especialmente no caso do livre
convencimento, é fácil notar que sua construção aparece no contexto da
destruição do imaginário medieval (de estruturas prontas de significado que as
formas de vida iam se adaptando) para a construção de outro, moderno, em que o
sujeito — ser humano — procura se afirmar como o próprio construtor dos
significados.
A
palavra usada para representar isso no plano da juridicidade é livre
convencimento. Ou livre apreciação da prova. Mas o que é isto — o livre
convencimento? Uma resposta no nível da dogmática apresentaria a seguinte
construção: para se livrar da prova tarifada (refém de uma metafísica
ontoteológica), impõe-se a análise daquilo que é produzido como prova por meio
do livre convencimento do julgador. Porém, quando setores do pensamento
jurídico conseguiram desvelar a armadilha que existe por trás dessa ideia
superficial sobre o livre convencimento, era tarde demais para “quebrar o
contrato” fantasmagórico. E muito estrago já havia sido feito. O principal
deles é a sedimentação e o enrijecimento do sentido de livre convencimento na
linguagem. Ele acaba sendo transmitido, de geração em geração, sem um exame
hermenêutico mais profundo. Na verdade, os juristas acabam por pronunciar a
expressão sem saber exatamente o que querem significar com ela... Há uma
dimensão do impessoal (Das Man) aqui: isso é assim porque eles disseram; porque
está escrito nos livros de doutrina, nas sentenças, nos acórdãos etc.
Daí
vem a segunda possibilidade aproximativa: uma vez descoberta a trampa do livre
convencimento, aqueles que a denunciam e tentam se livrar dela, aparentemente,
só conseguem fazer com que ela seja cada vez mais citada e cada vez mais
aparente. Conseguimos retirá-la do Código de Processo Civil. Grande avanço!
Mas, ainda assim, o fantasma retorna, como um ectoplasma resistente a toda
forma de exorcismo. Desse modo, assim como em Beetlejuice, no qual quanto mais
as personagens pronunciavam seu nome mais ele aparecia para fazer suas
trapaças, também aqui, quanto mais falamos do livre convencimento, ainda que
seja para tentar sepultá-lo de vez, mais ele aparece.
Mas,
como somos incansáveis, mais uma vez vamos aqui fazer um exercício hermenêutico
em torno do livre convencimento. Quando alguém diz que o julgador possui livre
convencimento, está a se referir que é a sua
consciência-de-si-do-pensamento-pensante que deverá determinar o resultado da
apreciação da prova. Só essa constatação já é significativa o bastante para se
demonstrar que, se uma única consciência pode formar uma convicção sobre aquilo
que foi trazido ao processo, não há aqui democracia. E não há, igualmente,
aquilo que define a magistratura, que é a efetiva imparcialidade. Pelo
contrário, há uma assunção voluntário que acaba por transferir ao juiz a
condição de legibus solutus para aquele caso concreto que por ele deve ser
julgado.
Há
quem acredite que esse problema estaria resolvido com a simples exigência da
motivação do tal “livre convencimento”. Ora, essa é só mais uma trampa; apenas
mais uma trapaça do Beetlejuice jurídico. A motivação do livre convencimento
significa apenas expor as razões pelas quais o julgador se convenceu. Mas e se
alguém não concordar? E se estiver errado perante um exame público de suas
razões? Bem, o magistrado dará de ombros.
É
por isso que, em um contexto democrático e de Estado de Direito, não existe
essa coisa de livre convencimento. Há, sim, uma obrigação, que se projeta a
partir da responsabilidade política que a atividade jurisdicional comporta, de
tornar pública a compreensão. E o ônus não está em dizer porque se convenceu de
tal ou qual maneira, mas, sim, em mostrar que a interpretação mais adequada
para hipótese só pode ser aquela que se apresenta, uma vez que houve efetiva
suspensão dos pré-conceitos e que a resposta oferecida é uma resposta
efetivamente jurídica (e não moral, econômica, política etc.).
Mas
o que é realmente inacreditável, e fato gerador de profunda perplexidade, é
que, no mais das vezes, quem invoca o fantasma do livre convencimento procura
fazê-lo em nome da “verdade real” (remetemos o leitor à saga do Cego de Paris I,
II e III, escrita na ConJur). Para nós, esse fato revela o quanto que os
agentes jurídicos desprezam a Filosofia (ou a usa apenas com função ornamental/instrumental).
Ora, se a “verdade real” remete a uma “realidade verdadeira”; realidade está
que se apresenta objetivamente, como que a irradiar uma essência a ser captada
pelo sujeito cognoscente, então, nesse caso, estamos novamente às voltas com a
ontoteologia, quadro teórico ou paradigma filosófico que a modernidade e seu
ectoplasma jurídico chamado livre convencimento pretendem derrotar.
Note-se:
como é possível se convencer livremente de algo que emana uma essência real
(res = a coisa)? Se essa verdade é real, objetivamente posta, então ela não é
uma criação livre do convencimento do julgador. Ao contrário, ela é um dado
objetivo ao qual o intelecto tem, necessariamente, que se submeter. Não há
liberdade aqui! Há o mais puro e completo determinismo.
Portanto,
está bem claro que somos assombrados no Direito brasileiro por um fantasma
trapaceiro, tal qual o Beetlejuice de Tim Burton, mas com um elemento a mais:
além de trapaceiro, ele é contraditório e inconsistente.
Por
fim, uma última consideração acerca da “verdade real”. Muito já se falou. Há
volumosas críticas ao conceito. Mas é preciso registrar que, nalguns casos, a
emenda pode sair pior que o soneto. De nada adianta criticar o álibi retórico
da “verdade real” para pôr no lugar alguma posição cética e improdutiva com
relação ao conceito de verdade, objetividade e possibilidade de melhores
respostas em Direito. Nesse caso, não estamos exorcizando os ectoplasmas; ao
contrário, estamos criando um novo: Beetlejuice jurídico II.
Numa
palavra final, o que mais nos impressiona não é apenas o “ressuscitamento”
desses fantasmas provenientes de dois paradigmas filosóficos (estamos sendo
generosos, porque pouca gente sabe o que está por trás disso) antitéticos.
Impressiona é a mistura dos dois, como já vimos muitas vezes alguém dizer: “Com
minha livre apreciação, busco encontrar a verdade real”. Ups. Assim não dá.
Ora, pelo menos que cada um fique no seu quadrado. Quem é adepto da verdade
real deve ficar fiel a ela. Mas isso tem um custo, porque implica abrir mão do
livre convencimento. Ou da livre apreciação da prova, o que dá no mesmo. Ou
seja, quem é do PLC (Partido do Livre Convencimento) não pode votar no PVR
(Partido da Verdade Real). São programas de governo absolutamente discrepantes.
E não dá para fazer “presidencialismo epistêmico de coalizão”, mesmo que
façamos emendas hermenêuticas.
Rafael
Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos
e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão
Preto (Unaerp).
Lenio
Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em
Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jun-24/diario-classe-exorcizar-fantasmas-livre-convencimento-verdade-real
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