Neste
cenário de ilegitimidade cataclísmica, é preciso estancar as reformas em curso,
baseadas em falácias e diagnósticos rudimentares
Não
se fazem reformas dessa envergadura sem a legitimidade do voto popular e sem
integridade ética.
Reformas
da Previdência são necessárias. Mas quais reformas? Alguma reforma fiscalista
que destrua o principal mecanismo de proteção social com que os brasileiros
contam? Ou reforma que elevará o número de brasileiros idosos em situação de
pobreza extrema, de 0,8% para mais de 50% da população total?
Reformas
dessa envergadura têm reflexo direto na vida presente e futura das famílias. A
Assistência Social e o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) concedem cerca
de 35 milhões de benefícios. Direta e indiretamente são mais de 100 milhões de
brasileiros assistidos. Cerca de 70% deles recebe benefício médio de 1.197
reais (aposentadoria por idade); e 30% em torno de 2.304 reais (por tempo de
contribuição).
Reformar
sem debater com a sociedade é inaceitável. Com a democracia aviltada e o debate
interditado, como vivemos hoje no Brasil, prevalece a ditadura do pensamento
único dos interlocutores das finanças difundido pela imprensa.
A
democracia não é mercadoria, e não se "vende" reforma previdenciária
como se vende sabonete. Não se fazem reformas sociais com diagnóstico ginasiano
rudimentar baseado em falsas premissas. Nos últimos vinte anos, foram feitas
quatro grandes reformas da Previdência. Elas não serviram para nada? Onde,
afinal, reside o problema? Na Previdência do Setor Público ou no RGPS? Na aposentadoria
dos pobres – aquelas 35 milhões de famílias do RGPS que recebem, em média,
menos de dois salários mínimos – ou na aposentadoria dos membros do Judiciário
(25,7 mil reais, em média) e do Legislativo (28,6 mil reais), por exemplo?
Se
o problema é o Servidor Público, trata-se de um problema de "fluxo"
(novos servidores que entraram no serviço público após a reforma concluída em
2012, após 14 anos de tramitação), ou de "estoque" (os servidores que
entraram no serviço público antes de 2012)?
Aquela
reforma iniciada em 1998 e concluída em 2012 não resolveu o problema dos novos
ingressantes? Que problemas persistem? Haverá aposentadoria de
"marajá" do setor público em 2060? Servidores públicos que compõem o
"estoque" não morrem? Quantos estarão vivos em 2060?
Seria
prática de boa democracia manipular a opinião pública com exemplos marginais,
que já foram equacionados no futuro, para justificar a imposição de perdas à
maioria dos que recebem aposentadoria inferior a dois salários mínimos?
Será
verdade que "o Brasil não exige idade mínima" para aposentadoria? Ou
ela existe desde os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) criados na
década de 1930? A idade mínima não foi talvez mantida pela Lei Orgânica da
Previdência Social (1960) e pela Ditadura Militar? E não foi ratificada pelo
artigo 201 da Constituição Federal?
As
aposentadorias são "precoces"? Quanto representam no total? Trata-se
de fato estrutural ou marginal? Essa pretensa questão não foi resolvida em 2015
pela lei do "Fator Progressivo", que em 2026 chegará a 100/90? Quais são os problemas remanescentes? E a
reforma das Pensões? Não foi feita em 2015?
Em
síntese, para reunir todas essas perguntas em uma única: o Brasil precisa de
reforma estrutural ou de reforma tópica? Estando interdito o debate, como está
agora, só prosperam por aqui a desinformação e a pós-verdade. A estratégia
antidemocrática baseia-se no terrorismo econômico. Argumentos rasteiros
construídos não para esclarecer e ilustrar, mas para meter medo, fazem crer que
o destino da nação depende única e crucialmente do êxito da reforma fiscalista
da Previdência.
Se
houvesse debate, a sociedade teria ao menos uma chance de saber que o tão
falado suposto "déficit" da Previdência é "argumento" que
finge que não vê e despreza o que determina a Constituição da República. Com
debate, a sociedade saberia que a Constituição de 1988 na verdade ratificou o
sistema tripartite de financiamento das aposentadorias (empregadores,
trabalhadores e governo) vigente no Brasil desde os Institutos de Aposentadoria
e Pensão instituídos na década de 1930. Um sistema modernizado pelos
constituintes, inspirando nos regimes de Bem-Estar Social dos países
industrializados que o adotam desde o final do Século XIX. Não no Brasil 2017.
Aqui, o aporte que compete ao governo, como determina a Constituição, é
considerado "déficit".
Economistas
não conseguem acertar nem as mais simples projeções trimestrais. Mas os sábios
de Brasília querem nos fazer crer que "sabem", com a precisão
milimétrica oferecida por planilhas de Excel, da "catástrofe" nas
contas da Previdência que "ocorrerá" daqui a 40 anos. Como acreditar
em antevisões do futuro, se não há modelo atuarial adequado? Só palpites sem
base científica e sem relevância estatística, construídos por
"marqueteiros" para gerar terror.
Quantos
velhos temos hoje? Quantos teremos em 2060? O governo não sabe. Problemas
metodológicos nas bases de dados do IBGE mostram diferença de 8 milhões de
idosos, como já observado em estudo do Dieese. Um governo que não sabe nem quantos
velhos temos hoje tem credibilidade para sentenciar alguma futura catástrofe
demográfica?
É
fato que a população está envelhecendo. Mas quem disse que "não há
alternativas"? Nenhuma democracia desenvolvida jamais enfrentou esse
problema? Nunca na história do mundo alguma democracia superou com sucesso esse
desenvolvimento natural da vida? Claro que sim! E como fizeram? Não temos
capacidade para propor alternativas hoje, para um problema previsto para nos
alcançar daqui a 40 anos? Nesse caso, para que servem o Ministério de
Planejamento e o Ipea, por exemplo?
Hoje,
cerca de 50 milhões de trabalhadores estão na informalidade e não contribuem
para a Previdência. E se fossem incluídos no mercado de trabalho formal e
passassem a contribuir? Não financiariam a aposentadoria de cerca de 58 milhões
de idosos que, supostamente, teremos em 2060? A razão de dependência de idosos
não melhoraria? O problema é a demografia? Ou é a ausência de modelo de
desenvolvimento adequado às necessidades do País?
Sim,
haverá menor proporção de trabalhadores contribuintes, para maior número de
aposentados. Mas o financiamento da Previdência depende unicamente da
contribuição do trabalhador ativo? O que ensina, por exemplo, a experiência da
socialdemocracia europeia? Ensina que o financiamento da Seguridade Social (que
contempla a Previdência) é preponderantemente integralizado pela “contribuição
do governo” e pela “contribuição dos empregadores” (respectivamente, 46% e 34%
do total). E a Constituição de 1988? Ela
não teria se inspirado nesse modelo? O que rezam os artigos 194 e 195?
Em
plena Quarta Revolução Industrial (inteligência artificial, robótica, impressão
3D, etc.), que aprofundará a corrosão dos empregos, o financiamento da
Previdência deveria continuar ancorado na base salarial? Qual a experiência de
outros países? É razoável fazer projetos para os próximos 40 anos, raciocinando
sobre a hipótese de que o cenário do mercado de trabalho em 2060 venha a ser o
mesmo que o mundo conheceu em 1960?
O
diagnóstico ginasiano rudimentar (e mal-intencionado) conduz a propostas
indecentes que, em última instância, limitam o direito a proteção na velhice.
Como mostram os dados, a imensa maioria dos brasileiros não têm condições
sequer de cumprir 25 anos de contribuição para ter acesso à aposentadoria
parcial.
Como
afirmar que a reforma "não atinge os pobres", como prega certa elite
intelectual, burocrática e jurídica, bem como a incansável propaganda que os
rádios repetem sem parar? Quem é pobre? Só seriam pobres os que recebem menos
de 2 dólares por dia, como arbitrado pelas agências internacionais? E os 79%
dos trabalhadores que recebem até dois salários mínimos? São ricos?
É
justo que o acesso ao benefício assistencial (portadores de deficiência e quem
tenha renda per capita de até um quarto de salário mínimo) requeira idade
mínima (68 anos) superior à exigida para magistrados (65 anos), que têm
estabilidade no emprego, salários acima do teto constitucional e folha de
pagamento repleta de "penduricalhos"? Se querem "combater
privilégios", por que não escrevem sequer uma linha sobre a injustiça
tributária, as isenções fiscais, a licença para sonegar (sempre premiada por
sucessivos e impagáveis "refinanciamentos") e com a obscena
transferência de renda para os rentistas, por meio de juros?
Em
nome do "fim dos privilégios", querem unificar as regras para todos
os segmentos e, assim, impor ao trabalhador rural do Nordeste regras
semelhantes às que são definidas para um Promotor Público de São Paulo. É justo
tratar os desiguais como se fossem iguais?
É
justo um País de longo passado escravocrata inspirar-se nos regimes
previdenciários de países desenvolvidos, se menos de 1% dos municípios
brasileiros possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) semelhantes àqueles,
e mais de 65% dos municípios têm IDH equiparados a países africanos?
É
justo impor regras mais duras que as praticadas em nações mais igualitárias,
posto que, em muitas daquelas nações, a aposentadoria parcial pode ser obtida
por volta dos 60 anos, e não se exige tempo de contribuição?
É
justo desconsiderar que, no Brasil, desigual e extremamente heterogêneo, a
"média nacional" de diversos indicadores não reflete as diferenças
regionais?
A
pressa para atender aos interesses dos poderosos, o diagnóstico rudimentar
ginasiano ou mal-intencionado, a fragilidade dos argumentos conduzem ao que há
de mais deplorável no sistema político brasileiro: o clientelismo rasteiro, o
"voto de cabresto" baseado em chantagens.
E
o que dizer do suposto "refinanciamento" (por 20 anos, renegociáveis
a cada cinco anos) dos cerca de 1,4 bilhão de reais devidos pelos sonegadores,
aí incluídos senadores e deputados? E do perdão da dívida do agronegócio, com a
Previdência Rural? E do refinanciamento da dívida dos Estados e Municípios
inadimplentes, com a Previdência Social? E as negociações com a bancada evangélica,
em troca de concessões de rádios e TVs e isenção de IPTU de templos religiosos
alugados?
Argumenta-se
que os críticos da reforma da Previdência não têm propostas. Temos, sim! Mas,
como se vê, o buraco é mais em baixo.
Não
se fazem reformas sociais com o rolo compressor de governos antidemocráticos,
com desprezar o conhecimento técnico acumulado pelas instituições de pesquisa
da sociedade e sem buscar consensos com os diversos segmentos – o que só se faz
mediante debate honesto e qualificado.
E,
sobretudo, não se fazem reformas dessa envergadura sem a legitimidade do voto
popular e sem integridade moral e ética dos governantes. Esse fato, cristalino
na vigência da etapa de "estancar a sangria" pela qual passa hoje o
Brasil, ganhou contornos dramáticos, com as veias abertas pelas confissões do
açougueiro que virou dono de frigorífico. Neste cenário de ilegitimidade
cataclísmica, não há outro caminho senão estancar as reformas em curso.
https://www.cartacapital.com.br/economia/a-reforma-da-previdencia-e-as-confissoes-do-acougueiro
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