"O
que a gente tem que entender é que, do ponto de vista econômico, o que gera
emprego não é a demanda, mas o investimento capitalista. Se não há investimento
capitalista, não adianta você rasgar a CLT, barbarizar o mercado de trabalho,
que nada disso será capaz de atrair ou garantir o investimento que não depende
do trabalhador", afirma Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo
que estuda o mundo do trabalho, em entrevista à Cátia Guimarães do portal
EPSJV/Fiocruz, 31-03-2017.
Eis a
entrevista.
Queria
que você comentasse o que mudou do Projeto de Lei 4330, que gerou grande
mobilização contra a regulamentação da terceirização em 2015, e o Pl4302, de
1998, que foi desengavetado e aprovado agora na Câmara. Piorou ou não tem
diferença?
Piorou,
basicamente, pelo fato de que o 4330 tinha algumas salvaguardas, exigências
para as empresas em termos de fiscalização das terceirizadas. Agora, nesse
projeto de 1998, não há. Além do que, naquele período de negociação do 4330,
houve uma intervenção dos sindicatos no sentido de garantir que a sua
participação fosse, de alguma maneira, protegida dessa perspectiva de
fragmentação da contratação. Previa-se representação sindical, previa-se que os
sindicatos seriam, de alguma maneira, estimulados a participar da regulação do
trabalho terceirizado, coisa que não acontece nessa lei de 98. Então, você tem
aí um cenário pior tanto do ponto de vista das salvaguardas quanto do ponto de
vista da representação sindical. D forma como foi aprovado na Câmara, esse
projeto conseguiu piorar um cenário que já era muito ruim.
Embora
já esteja para sanção do presidente Michel Temer, acolhendo uma ação do senador
Randolfe Rodrigues, o STF e resolveu pedir esclarecimentos sobre o PL. Além
disso, a bancada peemedebista do Senado produziu um documento propondo que o
Temer não sancione...
É,
o Senado, desde o PL 4330 tem se colocado, na sua maioria, contrário à lei que
universaliza a terceirização. E como, nessa manobra do governo, o Senado foi
sacado do debate, ele está tentando retomar algum tipo de protagonismo. O que
me parece mais provável é que o Senado procure retomar aquele projeto 4330 tal
como foi discutido e debatido lá. Não me parece que o Senado terá disposição
para simplesmente bloquear a regulamentação da terceirização. No entanto, sim,
existem contradições, inclusive dentro do próprio Congresso, que possivelmente
farão com que a lei que será sancionada pelo Michel Temer não tenha as
características com as quais ela saiu do Congresso.
Mas
a existência dessas contradições e dessas resistências no Congresso pode
expressar o movimento de alguma fração do empresariado? Existe alguma parcela
do empresariado a quem essa terceirização irrestrita não interessa?
A
rigor, o empresariado brasileiro não é homogêneo. E, naturalmente, toda
iniciativa política que objetive comprimir a massa salarial e estender a
jornada de trabalho tem incidência maior sobre o setores da economia que estão
voltados mais para a exportação. Aqueles setores da economia que dependem, em
grande medida, do mercado interno são um pouco mais reticentes em relação à
aplicação dessas medidas. No entanto, no agregado, me parece que o empresariado
brasileiro como um todo, ou seja, como classe social, encontra-se bastante
interessado na aprovação dessa lei da terceirização irrestrita. Por quê? Porque
existe uma gritaria generalizada, que é histórica, do empresariado brasileiro,
em relação à legislação trabalhista, à proteção do trabalho.
Em
períodos de crise, que é o que a gente está vivendo, em especial, com
fechamento de empresas e demissões, essa gritaria tende a aumentar o tom,
porque no momento da demissão, você tem que pagar os direitos, ônus patronal,
tem que fazer o acerto com os trabalhadores e isso, do ponto de vista do
empresário, onera as suas contas. Então, eu acredito que em condições normais,
quando a crise não é tão aguda ou ainda a perspectiva de uma certa retomada
econômica do mercado interno, aqueles setores que dependem mais do mercado
interno tendem a ser um pouco mais reticentes que os setores exportadores. Aos
setores exportadores interessa 100% uma lei que diminua encargos, que diminua
direitos, que diminua o salário, a remuneração média, ou seja, os rendimentos
do trabalho, que aumente a jornada de trabalho.
O
argumento do empresariado para defender a terceirização e outras medidas de uma
possível reforma trabalhista é de que a legislação brasileira é muito
engessada, em relação a de outros países, e que isso gera insegurança jurídica
e prejudica o emprego. Isso é verdade?
Não.
Vamos por partes. A flexibilidade do trabalho, do emprego, com a terceirização,
geraria mais empregos? Não, isso é uma falácia, por várias razões. A primeira
delas é que, com a CLT, nós tivemos, ao longo dos últimos 13 anos, um nível de
emprego bastante elevado, com taxas de desemprego que foram as mais baixas da
série histórica. Então, é uma falácia dizer que a CLT, a proteção do trabalho,
a legislação trabalhista, ou mesmo o sistema de seguridade social -
aposentadoria, seguro desemprego - gera desemprego. Isso uma falácia.
Em
segundo lugar, a terceirização gera desemprego, ela produz desemprego e
subemprego. Por quê? Porque a jornada de trabalho dos trabalhadores
terceirizados tende a ser mais longa, o que significa que você pode fazer
cumprir as mesmas tarefas, ou seja, as mesmas cargas de trabalho com um número
menor de trabalhadores. Consequentemente, você vai demitir ao invés de
contratar.
Em
terceiro lugar, existe um discurso do empresariado de que há insegurança
jurídica. Não é verdade. O marco jurídico da CLT é bastante consolidado. A CLT
é de 1943, já passou por inúmeras reformas e, mesmo na questão do trabalho
terceirizado, existe uma norma que aceita, pelo judiciário, pela justiça do
trabalho, e que entende, fundamentalmente, que o trabalho terceirizado não pode
se dar nas atividades fins, só pode incidir sobre atividades meio. Se o
empresariado tivesse, de fato, interesse em regulamentar, ou seja, em reforçar
a segurança jurídica, bastaria simplesmente aprovar um PL dizendo isso: que não
pode terceirizar a atividade fim, apenas a atividade meio, como já está na norma
vigente no entendimento do Tribunal Superior do Trabalho.
A
CLT é uma lei contra o empresário? Não, a CLT é uma lei que garante uma
proteção do trabalho mínima que, por sua vez, faz com que os rendimentos do
trabalho tenham um mínimo de proteção. E, consequentemente, essa proteção tende
a estabilizar o mercado de trabalho interno, do ponto de vista do consumo. Mas
também há algo que é muito importante a gente perceber: o mercado mais
organizado é mais resistente aos processos de crise. Consequentemente, você tem
aí, vamos dizer assim, um fator de resiliência à quebradeira das empresas, à
queda do consumo, tudo aquilo que advém das crises cíclicas. Então, a CLT não é
contra, a CLT é uma lei que protege minimamente o trabalhador garante direitos
como 13º salário e férias, por exemplo, garante uma certa regularidade, uma
certa regulação da jornada de trabalho. Nada disso tem prejudicado o
empresariado brasileiro, quer seja do ponto de vista da competição
internacional, quer seja do ponto de vista da produção do mercado interno.
Não
há propriamente nada na CLT que prejudique o empresariado, ao contrário, a CLT
foi, historicamente, um instrumento chave de industrialização do país. Foi
exatamente a CLT que atraiu aquela massa de trabalhadores do Nordeste, das
pequenas cidades, do interior, para trabalhar nas empresas, nas indústrias na
década de 1940, em especial, nas décadas de 1950 e 1960. Foi exatamente a
promessa da cidadania salarial, da proteção do trabalho, de algum tipo de
participação na vida nacional, na vida coletiva, de algum tipo, vamos dizer
assim, de acesso a direitos trabalhistas e a direitos universais que, de fato,
fez com que essa massa de gente fosse atraída para as cidades e passasse a
trabalhar exatamente para aquelas empresas que hoje vociferam contra a CLT.
Então,
eu diria que existe uma série de falácias no discurso empresarial. O que a
gente tem que entender é que, do ponto de vista econômico, o que gera emprego
não é a demanda, mas o investimento capitalista. Se não há investimento
capitalista, não adianta você rasgar a CLT, barbarizar o mercado de trabalho,
que nada disso será capaz de atrair ou garantir o investimento que não depende
do trabalhador.
E
qual é o papel do Estado, do governo, no incentivo ao investimento e na geração
de emprego em momentos de crise como o que estamos vivendo? O caminho principal
de enfrentamento da crise tem sido a intensificação do ajuste fiscal, inclusive
com reformas estruturais...
Olha,
o governo atual adotou nitidamente uma estratégia de aprofundar tudo aquilo que
favorecer a acumulação por espoliação, a eliminação de direitos sociais,
previdenciários, a mercantilização e privatização de tudo aquilo que é possível
privatizar. Através do Ministério da Fazenda, existe uma pressão muito forte
sobre os estados para que aqueles que encontram-se em dificuldades financeiras
renegociem suas dividas com a União através de aprofundamentos de privatizações
de bancos, enfim, de companhias estatais, e assim por diante. Então, você tem
aí, nitidamente, um Estado, um governo orientado para aprofundar essa
estratégia de acumulação por espoliação que, basicamente, favorece ao mercado
financeiro e às classes proprietárias. Ou seja, vai fazer com que o país se
torne mais desigual e as taxas de crescimento no agregado sejam muito
discretas, quando ocorrerem.
Essas
estratégias de espoliação, basicamente, garantem taxas de crescimento muito
discretas, na ordem de 1% ou 1,5%, ou seja, não é um tipo de crescimento que
interessa à sociedade brasileira. O crescimento que interessa à sociedade
brasileira é aquele que está ancorado e amparado nas necessidades da população.
Ou seja, você precisa: 1 – distribuir renda: o país vai voltar a crescer na
medida em que ele se tornar menos desigual, na medida em que as pessoas
voltarem a consumir, porque aí as empresas voltarão a investir; 2 – o Estado
precisa investir e não apenas garantir crédito ou aumentar tributo ou algo do
estilo. O Estado precisa ter um plano de investimentos, obras públicas que
sejam balizadas pelas reais necessidades da população brasileira. E isso é algo
para o qual você precisa ter um planejamento, precisa ter a máquina estatal
articulada, orientada para dirigir um modelo de desenvolvimento que satisfaça
as necessidades da maioria da população. Não foi o que aconteceu no último
período, inclusive no lulismo e no governo Dilma. O que se teve foi o esboço de
um Estado neodesenvolvimentista que procurou priorizar os interesses das
empresas, setores empresariais da brasileira, em detrimento das reais
necessidades da população. Nós precisamos de uma estratégia de reestruturação
global do modelo de desenvolvimento brasileiro, orientado por esse tipo de
iniciativa.
Alguns
analistas estão apontando que, como o mercado de trabalho disponível para as
classes mais baixas já é muito precarizado no Brasil, com alto índice de
informalidade e rotatividade, por exemplo, á principal atingida por esse PL da
terceirização irrestrita será a classe média, que tem empregos melhores e menos
precarizados. Você concorda com essa análise?
Não.
Porque a terceirização vai atingir, prioritariamente, aqueles setores
subalternos da força de trabalho brasileira. Ela vai atingir as mulheres, os
negros e negras, os mais jovens, que se submetem a taxas de rotatividade mais
elevadas, jornadas mais longas, salários mais baixos. As empresas vão demitir,
prioritariamente, para depois recontratar, exatamente aqueles setores
subalternos. Os setores médios da sociedade vão ser precarizados? Sim, mas eles
não serão as principais vítimas, as principais vítimas serão os trabalhadores
subalternos.
Mas
não é verdade de que existe menos estrago, porque esse argumento de que já
existe um grau de precarização de trabalho temporário muito grande entre os
subalternos, por isso, o maior espaço de expansão é entre a classe média? Você
discorda porque, com terceirização, mesmo os que estão formalizados vão ser
demitidos? É isso?
Sem
dúvida. É para isso que serve a terceirização. A terceirização serve para você
transformar a força de trabalho da sua empresa numa força de trabalho pior
remunerada, sem direitos, submetida aos contratos temporários, às jornadas mais
longas… A questão é: hoje você tem 25% no mercado de trabalho formal no Brasil
terceirizado. Esse percentual é elevado? Claro que é elevado, estamos falando
de 11 milhões, 12 milhões de pessoas, é bastante gente. No entanto, aqueles que
hoje são diretamente contratados, ainda que sejam trabalhadores subalternos,
são os alvos preferenciais da terceirização. E isso hoje significa alguma coisa
em torno de 34, 35 milhões de pessoas, que não são de classe média, ou seja,
são, na sua maioria, trabalhador subalterno. Os empregos de classe média são
minoritários.
Os
empregos que pagam melhor geralmente se concentram em alguns setores da
economia privada e, principalmente, no Estado. Então, o que essa classe média
concurseira está percebendo é que acabou o concurso, o Estado não vai mais
abrir concurso, que é o que seria o emprego de classe média por excelência, com
estabilidade, carreira, profissão, possibilidade de ascensão, ganhos salariais
sempre crescentes etc. Isso acabou, o pessoal tem que entender isso. E é isso
que torna esse projeto de lei tão assustador para muita gente. Mas a prioridade
vai ser o trabalho subalterno, que vai ser terceirizado em primeiro lugar, até
porque é mais muito mais fácil, rápido e menos custoso você demitir o
trabalhador mais jovem, os trabalhadores que ganham menos, que, geralmente, são
mulheres e negros. Essas são as vítimas prioritárias. Secundariamente, você vai
ter um processo de médio prazo no qual vão rarear as oportunidades para essa
classe média. Isso já vinha acontecendo, diga-se de passagem. Se você pegar o
ano de 2015, do mercado formal de trabalho, 97,5% do emprego criado foi na
faixa até 1,5 salário mínimo. Isso não é emprego de classe média. Dois e meio
porcento do emprego formal paga entre dois e cinco salários mínimos, o que,
potencialmente, seria um emprego de classe média na entrada, ou seja no início.
Então, você não tem uma classe média ameaçada pela terceirização, você tem uma
classe trabalhadora ameaçada pela terceirização e uma classe média que vai ter
muito mais dificuldade de encontrar empregos melhor remunerados.
Você
tem dito que a aprovação da terceirização irrestrita vai expandir a figura do
PJ (Pessoa Jurídica), que agora se chama microempreendedor individual (MEI).
Isso é em função da autorização para quarteirizar serviços, que o projeto traz?
Sem
dúvida. A partir do momento em que se abre a possibilidade para terceirizar as
atividades fins, sem dúvida que vai haver uma multiplicação desses contratos,
que são contratos de falso trabalho independente. Hoje existe ainda uma
barreira à pejotização, à universalização desse falso trabalho independente
porque você pode caracterizar na justiça o vínculo de subalternidade do
trabalhador com a empresa. E isso a justiça do trabalho reconhece como vínculo
empregatício. Consequentemente, a empresa tem que recolher FGTS, tem que pagar
direitos etc. Com a terceirização, não. Como se pode terceirizar as atividades
fim, você simplesmente pode criar empresas ou contratar através do trabalho
independente, do PJ, dos microempreendedores etc.
Do
ponto de vista formal, não haveria nenhum impedimento para que eles fossem
contratados dessa forma. Então você vai multiplicar o PJ, esses
microempreendedores individuais, tudo aquilo que diz respeito ao trabalho
independente que, na verdade, é um falso trabalho independente porque o
trabalhador não tem como negociar o valor da força de trabalho, não tem como
negociar o contrato, não tem como negociar nada. Você presta um serviço
totalmente controlado pelo contratante, pelo empregador. Então, o que se está
fazendo, na verdade, é eliminar qualquer tipo de proteção trabalhista, está-se
eliminando o 13º, as férias e qualquer tipo de ônus patronal no momento da
demissão. Estão sendo eliminados todos os direitos que hoje, minimamente, os
trabalhadores têm. Além do fato de que isso é um tiro de morte no sindicato,
porque trabalhador independente não se sindicaliza. Então, isso é uma
verdadeira tragédia para o mundo do trabalho no Brasil. Tudo aquilo que nos
últimos 50, 60 anos foi feito em termos de organização no mercado de trabalho
vai ser desfeito com uma lei.
Tem
sido divulgado na grande mídia que a própria equipe econômica do governo se
preocupa com a queda de arrecadação de impostos e, especificamente, de
contribuição para a previdência, que essa terceirização irrestrita pode gerar.
Isso, naturalmente, está ligada à expectativa de redução do emprego formal. No
entanto, esse mesmo governo e esse mesmo Congresso que alardeiam a urgência de
acertas as contas da previdência, apóiam a terceirização e uma reforma
trabalhista. Isso faz sentido ou expressa uma bateção de cabeça em função das
pressões que governo e congresso estão sofrendo por parte do grande
empresariado?
Olha,
acho que, eventualmente, pode ter bateção de cabeça do governo e a pressão do
empresariado, evidentemente, conta muito. E o Estado meio que se equilibra
entre diferentes focos de pressão. Apesar disso, a linha geral da reforma da
Previdência e da reforma trabalhista, inclusive com a aprovação do PL da
terceirização, tem uma lógica. A lógica é aprofundar esses mecanismos de
espoliação. A reforma da Previdência corta benefícios, aumenta o tempo de
arrecadação, coloca um monte de gente para fora do direito previdenciário,
ataca a seguridade social. É uma reforma absolutamente nefasta do ponto de
vista do trabalhador. No entanto, ela é feita exatamente para garantir a
espoliação dos fundos públicos, ou seja, a espoliação do orçamento da União,
para garantir o pagamento dos juros e uma eventual amortização da dívida
pública. É para isso que serve a reforma da Previdência, para colocar uma
espécie de teto naquilo que se gasta com a Previdência e garantir que as
vinculações de receita da União continuem sustentando a transferência do
dinheiro público para o setor financeiro.
Isso
se chama espoliação social, se chama roubo, o roubo da Previdência em beneficio
do setor financeiro e do rentismo, daqueles que têm ativos financeiros, que
basicamente são empresas e as classes mais altas. A terceirização tem a mesma
dinâmica, vai espoliar direitos trabalhistas. Então, por um lado você espolia
direitos previdenciários, por outro lado você espolia direitos trabalhistas.
Isso faz parte da mesma lógica, por assim dizer. Como é a mesma lógica também
da PEC do teto do gasto público, que eliminou ou diminuiu enormemente a
possibilidade de que os serviços públicos nesse país permanecessem numa linha
de aperfeiçoamento, de universalização, de generalização de benefícios, e assim
sucessivamente. Isso também é espoliação dos direitos sociais dos trabalhadores
porque, com essas medidas, o governo está rasgando aqueles pactos que foram
feitos ao longo de 40, 50, 60 anos, que são a CLT e a Constituição brasileira,
que serviram, bascamente, para garantir que houvesse algum tipo de concessão
aos trabalhadores via Estado.
Esses
pactos que estabilizaram, em alguma medida, o processo de luta de classes no
país, que de alguma maneira pacificaram esses processos, estão sendo
simplesmente rasgados, eliminados, atacados pelo governo. Tem uma lógica por
detrás disso, como eu disse: garantir que o modelo de desenvolvimento aprofunde
essas estratégias de acumulação por espoliação. Mas, do ponto de vista dos
efeitos, são contraditórios sim. Por quê? Porque você vai ter, por exemplo, uma
queda de arrecadação com a terceirização - isso é notório, se há uma diminuição
da massa salarial, que fatalmente acontecerá com a universalização da
terceirização, tem uma queda de arrecadação. As empresas terceirizadas hoje no
país configuram uma espécie de mercado que é uma verdadeira selva, uma terra de
ninguém em termos de regulação, de fiscalização, essas empresas abrem e fecham
num ritmo alucinante, recolhem o FGTS e não repassam para o governo. Isso tudo,
evidentemente, vai ter impacto sobre a arrecadação do governo. A terceirização
significa uma queda significativa de arrecadação, exatamente porque estimula a
informalização, estimula a pejotização, estimula a fraude, estimula a
compressão dos rendimentos do trabalho, estimula o desemprego. É claro que vai
ter uma queda de arrecadação tributária.
Já
desde o documento ‘Ponte para o futuro’, antes mesmo de se confirmar o
impeachment, está prometida uma reforma trabalhista pelo governo Temer. Com a
aprovação desse PL da terceirização, ela se tornou desnecessária?
Veja
só, a gente tem que entender o que é a reforma trabalhista que o governo Temer
está tentando aprovar. Ela tem três grandes frentes: a aprovação do negociado
sob o legislado; a universalização da terceirização; e a flexibilização da
jornada, que significa ter a contratualização a jornada flexíveis. Se você
aprova a terceirização, é claro que isso diminui muito a pressão sobre as
outras duas frentes, tanto a liberação da flexibilização da jornada quanto o
negociado sobre o legislado, mas não elimina completamente essa pressão. Então,
me parece que o governo continuará tentando, principalmente, aprovar o
principio do negociado sobre o legislado. Porque esse sim representa o fim da
CLT definitivamente.
A
terceirização, apesar de tudo, ainda prevê que os trabalhadores terceirizados
estarão submetidos à CLT. Na prática, nós sabemos que ela obstaculiza ou impede
em grande medida o acesso do trabalhador aos direitos trabalhistas, em
especial, o 13º, férias e assim por diante. No entanto, ela [a CLT] ainda é
residual, ou seja, ainda estará, digamos assim, atuando quando de algum tipo de
disputa trabalhista ou algo do gênero. O que o governo quer é eliminar
totalmente a CLT através da aprovação do negociado sobre o legislado. O que
também tem, evidentemente, um impacto legislativo, que colocaria de pernas para
o ar o próprio mundo sindical. Porque tirando dois ou três sindicatos fortes,
que realmente têm condição de fazer pressão sobre as empresas de sua categoria,
99% do sindicalismo no Brasil depende basicamente da existência da CLT. Porque
é um sindicalismo que, fundamentalmente, se apoia na aplicação da CLT e na
negociação de alguns benefícios durante as negociações coletivas, durante a
data base, dissídios etc. Se acabar o legislado, se o negociado prevalecer
sobre o legislado, haverá um colapso da estrutura sindical brasileira tal qual
nós a conhecemos hoje. Tem outro problema também, que é um problema político
para o sindicato.
Porque
hoje, pela CLT, o sindicato só pode negociar benefícios para os trabalhadores,
não pode negociar direitos - a despeito de sabermos que na prática isso
acontece. No entanto, em tese, ele só poderia negociar benefícios. E o
sindicato no Brasil tem problema de representação, ele representa muito pouco
da categoria, são muito poucos trabalhadores da categoria que, de fato,
contribuem e atuam no sindicato. Então, o sindicato às vezes está negociando em
nome de uma base de dezenas de milhares de trabalhadores quando, na verdade, são
poucas centenas que participam do sindicato. Quando esse sindicato começar a
negociar a perda de direitos com as empresas nos acordos, vai haver um problema
grave de legitimidade do sindicalismo. Porque, imagina de um dia para o outro o
peão descobrir que o sindicato negociou o 13º dele. A gente vai ter uma
situação crítica para o sindicalismo. E acho que é isso que o governo deseja.
Na
medida em que avança na aprovação do negociado sobre o legislado, a reforma
trabalhista, completa esse serviço, completa o trabalho sujo de eliminar
qualquer tipo de promessa de cidadania salarial, de participação do trabalhador
na vida político-econômica da sociedade brasileira, de proteção ao trabalho, de
representação sindical. Elimina tudo isso do horizonte. O empresariado fala
muito em modernidade, mas, na verdade, o que eles estão fazendo é jogar o país
na na época da República velha, quando não existia nenhum tipo de garantia,
quando a negociação era inexistente do ponto de vista coletivo, quando os
contratos eram todos precários. Era basicamente um mercado de trabalho
desestruturado, como uma espécie de terra de ninguém, onde prevalece,
evidentemente, o mais forte. É isso que o governo quer, jogar o país na época
da República velha.
Você
acredita que a luta contra esse projeto de terceirização tem potencial de
mobilizar a população para além dos setores organizados?
Eu
acho que se soma sim, se soma à reação popular, à resistência à reforma da
Previdência. E eu diria que ele tem um poder de mobilização muito forte naqueles
setores que são mais organizados do ponto de vista sindical, mas que não são as
categorias centrais. Por exemplo, eu não estou falando aqui prioritariamente de
petroleiros, metalúrgicos ou de funcionários públicos. Estou falando
basicamente daqueles sindicatos, ou daquelas categorias que, ainda que tenham
representação sindical, não são líderes do movimento sindical brasileiro:
motoristas e condutores de ônibus, funcionários públicos dos municípios, garis,
todos aqueles setores que, a despeito de serem organizados sindicalmente, não
são propriamente o coração mais protegido ou mais bem remunerado da classe
trabalhadora brasileira. Esses setores são diretamente atingidos pela lei da
terceirização e, consequentemente, tendem a se mobilizar com mais intensidade.
http://www.ihu.unisinos.br/566379-terceirizacao-e-uma-verdadeira-tragedia-para-o-mundo-do-trabalho-no-brasil
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