Entre
o esquecimento, o desconhecimento e a invisibilidade, uma grande história
brasileira praticamente desaparece. Com ela, some também um referencial de vida
e de conquistas. Bem aqui, no País que faz vista grossa ao racismo e às
desigualdades, uma mulher negra preencheu a própria trajetória com
pioneirismos.
Virgínia
Leone Bicudo (1910-2003), paulistana, filha de uma imigrante italiana branca e
de um brasileiro negro, neta de uma escrava alforriada, foi a primeira mulher a
fazer análise na América Latina.
Foi
a primeira pessoa a escrever uma tese sobre relações raciais no Brasil,
inaugurando, na academia, o debate sobre racismo. Foi também a primeira
psicanalista não-médica no País. Tantas credenciais desta psicanalista e
socióloga e, no entanto, seu nome, seu protagonismo e sua história se tornaram
invisíveis a muitos brasileiros.
"Àqueles
que não sabiam desse fato e o acham estarrecedor, comungamos do mesmo
sentimento de estranhamento: como nunca soubemos disso? Como não nos falaram
antes?", questiona a psicanalista Ana Paula Musatti Braga, doutora em
psicologia clínica pela USP (Universidade de São Paulo), em seu artigo Pelas
trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo,
publicado na revista Lacuna.
"No
meu modo de ver, nunca houve interesse na divulgação do trabalho dela. Eu diria
que poucos negros conhecem o que a Virgínia fez", afirma ao HuffPost
Brasil a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, doutora em Psicologia pela
USP e pesquisadora, desde a década de 1990, dos efeitos do racismo no psiquismo
dos negros.
Quando era estudante, nunca soube da
Virgínia. Não há essa informação nas escolas de psicanálise, nem de psicologia,
nem de psicologia social. Se você for a uma livraria, não vai encontrar os
textos dela.Isildinha Baptista Nogueira, em entrevista ao HuffPost Brasil
Ela quis conhecer a
origem da rejeição que sofria
A
história pessoal de Virgínia, marcada pela percepção do preconceito de cor e
pelo sofrimento derivado dessa discriminação, incidiu sobre as escolhas
profissionais dela ao se tornar pesquisadora e definir, como objeto de estudo,
as relações raciais, observa Ana Paula Braga em seu artigo.
"Eu
me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei
psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas
para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui
procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E, na
psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história",
diz Virgínia, em uma entrevista de 1998.
Mais
cedo, em 1983, ela havia revelado o primeiro e doloroso contato com o racismo:
"Eu fui criada fechada em casa. Quando
saí, foi para ir à escola, e foi quando, pela primeira vez, a criançada
começou: 'negrinha, negrinha'. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido.
Então, eu levei um susto."
Ela disseminou a
psicanálise
Até
chegar à psicanálise, Virgínia foi buscar respostas na sociologia. Em 1935, já
graduada como educadora sanitária, matriculou-se na Escola de Sociologia e
Política: "Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu
sofrimento fossem problemas sociais, culturais", diz, em um depoimento de
1995.
No
segundo ano do curso, conheceu a psicologia social e, por consequência, as
ideias de inconsciente de Sigmund Freud. Foi o suficiente para despertar o
desejo de se tornar psicanalista. Assim, chegou ao médico e professor Durval
Marcondes, que lhe recomendou procurar a psicanalista judia alemã Adelheid
Koch, vinda ao Brasil para escapar do nazismo. "Eu fui a primeira pessoa
que usou o divã da Doutora Koch", diz em uma entrevista de 1995.
Marcondes
havia fundado a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP) em 1927. Virgínia
se juntou a ele em sua luta para desenvolver este saber em São Paulo e se ligou
à SBPSP por toda sua vida, lembra ao HuffPost Brasil a psicanalista Maria
Ângela Gomes Moretzsohn, também membro da SBPSP.
"Virgínia
participou ativamente da vida societária, como psicanalista e, muitas vezes, em
cargos de direção, como secretária, tesoureira, professora, supervisora,
analista didata e diretora do Instituto Durval Marcondes em várias
gestões."
Em
1970, a pioneira fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília e, mais tarde, o
Instituto de Psicanálise da capital federal.
"É
incontestável que o papel de Virgínia Bicudo na implantação e desenvolvimento
da psicanálise no Brasil foi fundamental para chegarmos ao ponto em que estamos
hoje", afirma Moretzsohn.
Ela aproximou a
psicanálise das pessoas
"Virgínia,
extrovertida, bem falante, logo se tornou uma comunicadora eficiente das ideias
nas quais acreditava", exalta Moretzsohn. Enquanto a psicanálise era
implementada no Brasil, os grandes veículos de comunicação a divulgavam de uma
forma acessível aos leigos, e Virgínia teve papel fundamental nessa
democratização do conhecimento.
De
acordo com Moretzsohn, em um programa na rádio Excelsior chamado Nosso Mundo
Mental, Virgínia interpretava situações envolvendo temas como inconsciente,
inveja, agressividade, ciúmes, amor e ódio. Tudo em forma de radioteatro.
"Em
1954, desenvolvi um programa de divulgação de princípios de higiene mental
segundo a psicanálise, através da dramatização de textos que eu compunha, e que
eram levados ao ar semanalmente", explicou Virgínia, segundo o pesquisador
Jorge Luís Ferreira Abraão.
O
programa deu origem uma coluna dominical no Jornal da Manhã, com o mesmo nome.
Em 1956, os textos se transformaram no livro Nosso Mundo Mental, de autoria de
Virgínia Bicudo.
Ela demonstrou que o
racismo adoece
Entre
os muitos feitos da psicanalista, o estudo da questão racial e dos conflitos
existentes entre brancos e negros deu início um olhar urgente e necessário para
o efeitos do racismo. A dissertação do mestrado na Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo, nomeada Estudo de Atitudes Raciais de pretos e mulatos
em São Paulo, trouxe uma inovadora investigação a partir de pais e mães de
alunos de escolas públicas em bairros populares e de classe média de São Paulo.
Com o depoimento de 31 pessoas, ela mostrou que, mesmo quando diminuem as
diferenças sociais, o preconceito de cor permanece.
"Virgínia
conseguiu fazer uma leitura que fosse não só psicanalítica; foi política,
sociológica, antropológica", enaltece Isildinha Baptista Nogueira
Nogueira. Segundo a psicanalista, é preciso levar em consideração, na clínica,
as questões raciais trazidas pelos pacientes.
"É
preciso entender que o racismo adoece e esse é o perigo que nós corremos, pois
existe uma aparente inclusão do negro na sociedade, mas esse adoecer psíquico é
muito mais eficiente do que a segregação e a discriminação."
Nogueira,
que realiza terapia em grupo com pacientes negros, diz perceber como eles são
fragilizados pelo racismo.
"O
fortalecimento dessas pessoas pode vir do fato de serem escutadas
analiticamente e do fato de entenderem que não estão solitárias, principalmente
nos medos, na depressão, nos ataques de pânico."
A
pesquisadora lembra que Virgínia entendia, por meio do trabalho dela, que os
efeitos do racismo passavam de geração para geração. "Foram 300 anos de
escravidão. Esse passado é de todos."
Ela enfrentou
resistência e difamação
Em
seus 92 anos de vida, Virgínia desbravou ambientes predominantemente brancos e
masculinos. Como lembra Braga, até a primeira metade do século 20, a produção
acadêmica das ciências sociais vinha praticamente de homens brancos, alguns
negros e pobres; algumas mulheres, somente brancas. Porém, a ideologia de
branqueamento no Brasil, como se refere o pesquisador Marcos Chor, ficou
evidente. No documento como professora de higiene Mental e psicanálise, Virgínia
é identificada como "branca".
Não
foi a primeira vez que faltou reconhecimento da obra e da pessoa que Virgínia
era. Em 1955, a Unesco financiou o maior projeto de pesquisa sobre relações
sociais no Brasil. Conhecido como Unesco-Anhembi, o projeto derrubou a tese de
que tínhamos uma democracia racial no País. A pesquisa de Virgínia Bicudo,
pioneira e fundamental para o tema, foi publicada como um apêndice do estudo, e
completamente excluída da segunda edição, em 1959, como lamenta Braga em seu
artigo.
O
golpe mais cruel, porém, veio da saúde mental. A psicanalista foi essencial
para que a SBPSP aceitasse entre seus membros analistas leigos, ou seja, não
médicos. Porém, durante o 1º Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, em
1954, ela foi alvo de hostilidades por ser uma psicanalista não-médica:
"Eu
estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: 'Absurdo!
Psicanalistas não médicos!' Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por
isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: 'Você é charlatã!' Ah! Você não fica
de pé! Você vai pra casa e quer morrer", revela em uma entrevista à SBPSP.
Na
época, médicos chegaram a distribuir panfletos com os dizeres "Se eres
neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se
trate com a doutora Virgínia Bicudo."
Ao
transitar da dor do preconceito para a investigação das próprias origens,
Virgínia evidenciou sua força e determinação, reforça Moretzsohn:
"Não
é difícil imaginar que a vida de Virgínia, em instituições nas quais era
praticamente inexistente a presença de pessoas negras, não era fácil. Ela
voltou a abordar a questão racial em momentos diferentes de sua vida, se
referindo sempre a ela como uma grande experiência na esfera da dor."
http://www.huffpostbrasil.com/2017/04/16/quem-foi-virginia-bicudo-mulher-negra-e-pioneira-na-psicanalis_a_22041991/?ncid=tweetlnkbrhpmg00000002
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