A
barbárie é, antes da ação, o discurso violento escondido por trás do moralismo
falso: na TV, com seus programas sensacionalistas apresentados por vedetes do
espetáculo; na fala de políticos que, na câmara, prestam homenagens a
torturadores; nos filmes onde se aplaude a tortura.
Por: André Rosa
Quando
o abolicionista Luiz Gama disparou, em júri, que “o escravo que mata o senhor,
seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”, ele se referia,
entre outras coisas, à condição humana que era arrancada do escravo, do
prisioneiro. Em outras palavras, se você priva alguém a sua condição humana,
como esperar que essa pessoa atue humanamente? Mais que uma contradição em
termos, trata-se de barbárie. Quando o governador do Amazonas diz que “ali [no
presídio] não tinha nenhum santo”, talvez ele quisesse dizer exatamente isso,
que os que estão encarcerados são, na verdade, sub-humanos. Santo ninguém é,
nem eu e nem você, leitor – menos ainda os governadores –; e, como lembrou o
filósofo Vladimir Safatle, se estivéssemos em uma sociedade de santos, não
haveria necessidade de justiça, nem mesmo de governo.
Muito
embora seja satisfatório saber que nem todos os aplausos são para o leão, não é
preciso ir muito longe para que se encontre comentários em que se comemora a
carnificina em Manaus e, agora, também em Roraima. Estão por aí, nos blogs,
jornais, redes sociais, feitos por gente comum, que trabalha e vai à igreja. As
imagens com decapitações, corpos dilacerados e matança são compartilhadas nas
redes, nos celulares; estão repletos de mensagens vibrantes daqueles que
assistem ao massacre da tela de seus smartphones. São os mesmos que amiúde
vociferam dizendo que “bandido bom é bandido morto”, o soi-disant cidadão de
bem (o que, ironicamente, era o nome do antigo jornal da Klu Klux Klan, Good
Citizen).
Que
esperar quando, sob sintoma de nossa estupidez histórica, se tem como deputado
eleito com maior número de votos, no Rio, um homem que diz que os presídios
brasileiros são uma maravilha (em referência à barbárie no presídio de
Pedrinhas, no Maranhão), ou quando esse mesmo deputado diz que o país só vai
mudar depois que fizerem o “serviço que o regime militar não fez, matando uns
trinta mil”? E ainda pontua: “se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”. Ou
ainda, quando um capitão da PM, eleito deputado, se propõe a criar um partido
militar brasileiro, afirmando estar indeciso entre o número 38, em referência
ao revólver, e o 64, em homenagem ao golpe militar, para uso eleitoral?
Sedentos
por aquilo que Michel Foucault, em seu célebre “Vigiar e Punir”, chamou de
espetáculo dos suplícios, não percebem que um Estado que age como criminoso não
possui qualquer moral para julgar qualquer crime. Não percebem que estão se
afogando em seu próprio discurso de ódio, não estão atentos ao quão tenebroso é
alguém vibrar diante do horror absoluto. A banalidade do mal é exatamente isso,
a brutalidade que chega subitamente, sem que ninguém perceba, sutil; é, nos
termos de Hannah Arendt, a maldade que se tornou tão corriqueira que Eichmann
“simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”.
A
barbárie é, antes da ação, o discurso violento escondido por trás do moralismo
falso: na TV, com seus programas sensacionalistas apresentados por vedetes do
espetáculo; na fala de políticos que, na câmara, prestam homenagens a
torturadores; nos filmes onde se aplaude a tortura. É a total falta de empatia
que vem de cima para baixo, que está nos bares, nos escritórios, nas salas de
jantar. É a indignação seletiva, que se escandaliza com a nudez, mas que ignora
a violação de direitos humanos, da dignidade; é o polimento hipócrita que se
ofende quando duas pessoas do mesmo sexo se amam, mas que fecha os olhos para a
tortura. Me vem à cabeça a famosa cena de Apocalypse now, em que Marlon Brando,
interpretando Kurtz, balbuciava “O horror! O horror!”
Em
tempo: no último relatório divulgado pela Anistia Internacional consta que, no
Brasil, a “superlotação extrema, condições degradantes, tortura e violência
continuam sendo problemas endêmicos nas prisões brasileiras. Nenhuma medida
concreta foi tomada pelas autoridades para resolver o grave problema de
superlotação e as condições cruéis da Penitenciária de Pedrinhas no estado do
Maranhão”. De qualquer forma, Michel Temer acha que a rebelião em Manaus foi
“acidente”. Questionado, reforça com arrogância a bobagem dita, postando em seu
Twitter um verbete da expressão.
*André
Rosa é escritor e tradutor. Traduziu, entre outros, poetas russos como
Aleksándr Blok, Aleksándr Púshkin, e Véra Ínber.
http://diplomatique.org.br/sociedade-e-barbarie/
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