O
ano começou com o maior número de mortos dentro de uma penitenciária dos
últimos 24 anos, no Brasil. Com uma população carcerária de 711.463 presos – um
aumento de 270% nos últimos 14 anos, segundo o Departamento Penitenciário
Nacional (Depen) – o Brasil é o quarto país que mais prende no mundo, ao mesmo
tempo em que arrasta uma grave crise do sistema prisional há anos. Uma rebelião
iniciada no domingo (1º), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em
Manaus, terminou com 56 mortos, dezenas de feridos e acendeu a luz de alerta em
vários estados do país.
A reportagem é de
Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 04-01-2017.
Para
especialistas ouvidos pela reportagem do Sul21, a situação do Compaj se repete
por todo o Brasil. Presídios operando muito além de sua capacidade prisional,
problemas com prestação de serviços, falta de controle na entrada de armas e
drogas e crescimento do poder das facções é uma realidade comum nos presídios
do país.
O
jogo de empurra-empurra entre as autoridades, desde a chacina, também não é
novo. Enquanto o secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes,
disse que a questão do narcotráfico, que estaria por trás da rebelião, “é um
problema do governo federal”; o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, declarou
que “uma série de erros ocorreu” e que houve “falha de fiscalização” por parte
do presídio. Já o presidente Michel Temer (PMDB) ainda não se pronunciou
publicamente sobre o caso.
A
versão oficial para a rebelião que durou 17 horas e terminou com uma chacina de
corpos esquartejados, no entanto, é de que o episódio seria mais um capítulo da
“guerra de facções”. Uma disputa entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), de
São Paulo e que já estaria presente em estados do norte e nordeste do país, com
a Família do Norte (FDN), facção com maior número de presos dentro do Compaj e
ligada ao Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, rival do PCC.
Outra
justificativa que também não é novidade. Mas quem é responsável pelo aumento de
poder das facções?
Segundo
o padre Valdir João Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária, o próprio
Estado. “Quem criou a facção foi o chamado ‘Estado organizado’. Ela é fruto do
Estado, que quer sempre manter uma população pobre, desinformada e analfabeta”,
diz ele. “Quanto mais a pessoa presa é desrespeitada em seus direitos básicos
como assistência jurídica, saúde, produtos de higiene, quanto mais se amontoam
presos nas celas do Brasil, mais as facções se fortalecem. Elas assumem esse
papel de cuidar daqueles para quem o Estado virou as costas e agora só sabe
torturar e punir”.
‘Pode
explodir em qualquer lugar do país’
Em
2012, a Pastoral Carcerária realizou uma viagem de 40 dias fiscalizando as
casas prisionais do Amazonas. Padre Valdir conta que este foi o maior período
de tempo que trabalhou em um mesmo Estado, devido a situação precária que já
era denunciada ali. No relatório divulgado pela Pastoral, era apontado que o
Estado tinha um excedente de 3.129 internos e que dos 6.621 apenados, 3.429
eram presos provisórios. O documento também denunciava a alimentação
insuficiente, falta de serviços como assistência jurídica em todas as unidades
e “tortura como prática recorrente nas carceragens”.
“Em
2012, nós já falávamos do risco de isso acontecer no Estado. Às vezes, eu me
surpreendo como [os presos] são tão passivos diante da situação de violência
que acontece dentro dos presídios. O Estado é muito violento com a pessoa, em
todos os sentidos. Confinar em um espaço isolado, sem ventilação, no escuro,
negar os direitos mínimos de uma alimentação razoável, de um tratamento de
saúde, deixar a pessoa morrer no cárcere, afastada da família e da sociedade,
além das torturas físicas. A situação que explode lá, pode explodir em qualquer
lugar do país”, afirma padre Valdir.
A
questão do Compaj tem ainda um outro elemento a ser considerado: há pelo menos
10 anos, o complexo é administrado por uma parceria público-privada. O
coordenador da Pastoral diz que as chamadas PPPs – que já somam 40 unidades, em
nove estados – têm sido motivo de rebeliões em todo o país. As casas de
Serrinha, na Bahia, e Pedrinhas, no Maranhão, são alguns dos exemplos. “[Os
presos] reclamavam do espaço, de tudo que se reclama em um presídio estatal. De
alimentação, do jurídico amontoado, como nos outros presídios”, conta o padre.
O
relatório de 2012 já mostrava preocupação com a expansão da terceirização da
administração prisional em Manaus. Em um trecho assinado pelo padre Valdir é apontado
que todas as unidades do Estado eram administradas pela Empresa Auxílio
Agenciamento Financeiro e Serviços Ltda., que passou a atuar no Amazonas em
2004 com o nome de Companhia Nacional de Administração Prisional (Conap).
“Curiosamente, tal empresa acumula vitórias em todos os procedimentos
licitatórios, “fenômeno” explicado pelo baixo valor oferecido para a execução
dos serviços que lhes são atribuídos contratualmente. Seus lucros, no entanto,
advém da execução incompleta do contrato, com a violação de diversas cláusulas
contratuais. A situação é tão grave que nas últimas licitações já não têm
aparecido concorrente”, segue o texto.
Uma
notícia de dezembro de 2013, publicada pelo portal D24am, baseada em valores
divulgados no Portal da Transparência do Amazonas, mostrava que em oito anos, o
Estado gastou cerca de R$ 337 milhões com a empresa Companhia Nacional de
Administração Prisional (Conap). Segundo a reportagem, o valor seria suficiente
para construir 28 presídios, com capacidade para 570 detentos cada, iguais aos
anunciados no mesmo ano pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos
Humanos.
Desde
2014, o Compaj de Manaus estava sob administração da Umanizzare Gestão
Prisional e Serviços Ltda, responsável por nove casas prisionais no Norte do
país, segundo a Pastoral. Com o complexo de Manaus a empresa tem um contrato de
27 anos, que até julho de 2015 tinha custado R$ 201.204.805,62. Em seu site, a
empresa falava em “empregar diversas práticas e ações já desenvolvidas em
outras unidades prisionais geridas por ela e que amenizam a condição de cárcere
do detento”. O complexo terminou o ano de 2016 com 170% de presos além de sua
capacidade.
Para
agente, possibilidade de que situação se repita no RS é ‘latente’
Na
semana antes do Natal, enquanto a Assembleia Legislativa votava o pacote de
medidas de austeridade do governo José Ivo Sartori (PMDB), o Rio Grande do Sul
também viveu o prenúncio de eclosão da crise do sistema prisional. Em 24 horas,
nove casas prisionais do Estado registraram início ou processo de rebeliões. Em
Getúlio Vargas, na região noroeste, quatro presos foram mortos.
As
rebeliões tiveram início logo após uma greve deflagrada pelo sindicato dos
agentes penitenciários do Estado, em protesto ao projeto de lei complementar –
PLC 245 – que seria colocado em votação com o pacote, prevendo fim dos plantões
de 24 horas para servidores da Superintendência de Serviços Penitenciários
(Susepe). O governo do Estado se negou a reconhecer a greve e a Justiça
determinou que os servidores voltassem ao trabalho, sob pena de multa.
Para
Alexandre Bobadra, agente penitenciário, membro da diretoria da Amapergs
(Sindicato dos Servidores Penitenciários), há “uma possibilidade latente” de se
repetir no Rio Grande do Sul o que aconteceu no Amazonas. “Infelizmente, os
números do Rio Grande do Sul são alarmantes. Nós temos um déficit de 10 mil
vagas para presos. Temos 25 mil vagas e 35 mil presos. Temos um déficit de 3
mil servidores e nossas promoções estão atrasadas desde 2014”, afirma ele.
Segundo
Bobadra, a situação dos servidores penitenciários no Estado é precária. Além
das promoções atrasadas, o concurso que foi anunciado pela Secretaria de
Segurança Pública há seis meses ainda não recebeu nem edital. O agente, que
também é diretor da Federação Nacional dos Servidores Penitenciários, disse
ainda que a situação de Manaus colocou servidores de todo o país em alerta.
“Pode servir de motivação aos outros presos. Eles já não têm medo de nada,
sabem que temos poucos servidores e que os governos não investem. Por isso, a
possibilidade de acontecer no Rio Grande do Sul é muito grande. Nós estamos
trabalhando com a corda esticada, porque as dificuldades são muito grandes”,
afirma.
Já
o procurador de justiça Gilmar Bortolotto, que tem a experiência de 19 anos
trabalhando na fiscalização de presídios de Porto Alegre e região
metropolitana, não acredita na hipótese. “Na minha avaliação, o cenário do
Estado é diferente. Não é parecido com o que temos aqui. Pelo que soube pela
imprensa, a rebelião lá foi programada. Aqui, temos acompanhamento constante
das autoridades”, afirma.
Bortolotto
também disse que a “guerra de facções” que estaria ocorrendo em Porto Alegre –
e motivando a onda de esquartejamentos em 2016 – está focada no domínio de
territórios pelo tráfico, fora dos presídios. Porém, ele não afasta a
possibilidade de rebeliões pelas condições de superlotação que se acentuam no
Estado. Só no ano passado, o Estado chegou a registrar média de 500 presos por
mês.
A
Secretaria de Segurança Pública do RS também cita a disputa por territórios
entre as facções como “inerente à atividade criminosa” e afirma que “mesmo a
realidade do Amazonas sendo extremamente diferente da gaúcha no que tange à
administração prisional, há intensa troca de informação a nível nacional”. A
SSP também afirma que “trabalha em constante estado de alerta”, com “equipes a
postos 24 horas por dia”.
Na
terça-feira (03), a Penitenciária Modulada de Charqueadas (PASC) registrou uma
rebelião com um preso morto e três feridos, um deles um soldado da Brigada
Militar que trabalhava como agente na casa. A rebelião teria iniciado com uma
disputa entre facções, quando uma delas tentou invadir a galeria de outra. A
Secretaria de Segurança disse que os fatos ainda serão apurados.
http://www.ihu.unisinos.br/563674-quem-criou-a-faccao-foi-o-chamado-estado-organizado-diz-padre-que-fiscaliza-penitenciarias
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