Um
dos principais pensadores da política que intitulamos como “moderna”, Antonio
Gramsci a analisou em seus diversos significados, em suas formas de operar, em
sua complexidade quanto à representação e em seu papel tanto nas conjunturas
como nas estruturas de poder. Observou, argutamente, que certas instituições
políticas sediadas na chamada “sociedade civil” por vezes fariam a função e o
papel dos partidos políticos formais como “intelectuais orgânicos” de
determinadas classes ou frações de classes sociais. Deve-se notar que, para
Gramsci, o Estado é “ampliado”, no sentido de articulação entre os aparatos do
Estado – como o Poder Judiciário, por exemplo – e as organizações da “sociedade
civil”.
Dessa
forma, em determinadas conjunturas, notadamente naquelas em que os
representantes tradicionais e oficiais das classes e/ou frações se encontram em
crise de representação e de hegemonia – no sentido mais profundo dessas
expressões –, outras entidades, formais ou informais, na sociedade ou mesmo de
setores do Estado, assumem o papel de “organização da sociedade” e de “direção
político/ideológica”, notavelmente de grupos específicos, como foi o caso da
maçonaria na Itália na década de 1930.
No
Brasil, a chamada “judicialização da política” (que inclui políticas públicos e
os mais diversos conflitos, incluindo-se os havidos entre os poderes) vicejou
desde a Constituição de 1988 com efeitos controversos. O Poder Judiciário vem,
desde então, ampliando seus poderes, competências e privilégios, mantendo, além
do mais, os que detinha antes da redemocratização. Tem sido um proto partido,
um ensaio de “partido político” no sentido de cumprir essa função embora seja
instituição do Estado.
Contudo,
desde a desestabilização do Governo Dilma, que começou em 2013 e levou à sua
deposição sob a forma do golpe Parlamentar/Midiático/judiciário, finalmente
desfechado em 31 de agosto de 2016 – analisei esse processo no artigo “A
desestabilização, o golpe e a ‘sociedade civil gelatinosa’ do golpismo”,
publicado neste Portal em 09/09/2016
(http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-desestabilizacao-o-golpe-e-a-sociedade-civil-gelatinosa-do-golpismo/4/36802)
–, o Poder Judiciário, notadamente suas mais altas cortes, tem ido muito além
da conhecida “judicialização da política”.
Desde
então, o Poder Judiciário vem se transformando em verdadeiro partido político
no sentido de dar direção político/ideológica/moral ao conservadorismo – em
suas diversas acepções – e aos grupos de direita, em suas diversas tonalidades.
Superou, portanto, em muito o conhecido processo de “judicialização da
política” no sentido reativo a demandas contenciosas. A aliança com a grande mídia
é, nesse sentido, crucial ao êxito do golpismo.
Agora,
o Partido do Poder Judiciário – PPJ na linguagem partidária – e seus
subprodutos, entre os quais o mais famoso, o PLJ (Partido da Lava Jato),
coligados ao conhecido PIG – Partido da Imprensa Golpista –, reitere-se, a
setores empresarias, notadamente o rentismo e interesses estrangeiros, e às
classes médias tradicionais (historicamente conservadoras) intercedem na vida
política a ponto de expressarem, em certo sentido, o cerne da vida política. Mas,
reitere-se, como porta-vozes e “organizadores político/ideológicos” de
interesses estrangeiros, do Capital Global, do rentismo, e das classes médias
conservadoras. Em última instância, o “Partido do Judiciário” requer re-colocar
a sociedade brasileira em patamares sociais hierárquicos cujo elemento fundante
é a distinção social, a ideia conservadora de “ordem” e a meritocracia
individualista. Daí tanto a participação ativa de setores do Judiciário na
elaboração do golpe de Estado como de sua “legalização”: TCU, MPF e MPEs, STF.
Igualmente, aparatos de Estado, como a PF e a RFB, tornaram-se fortemente
instrumentalizados.
Logo,
a fragilidade dos partidos políticos – em sentido estrito –, como o PSDB, o DEM
e o PPS, sem contar o imenso “centrão”, todos golpistas de primeira hora e
decadentes no jogo político/eleitoral antes das perseguições da Lava Jato, tem
como contrapartida a força do Poder Judiciário como expressão dos grupos
sociais subrepresentados por aqueles partidos políticos “sem voto” e perdedores
de eleições, caso notório do PSDB.
Um
“novo/velho” Brasil está sendo moldado desde 12/05/2016 (afastamento temporário
da presidente legítima, Dilma Rousseff) e sobretudo desde 31/08/2016, quando o
impeachment fora desfechado. Com ele estão sendo desestruturados: o pacto
político formulado pela redemocratização que resultou na Constituição de 1988;
o Estado de Direito Democrático; o Estado de Bem-Estar Social; os direitos
trabalhistas; a soberania nacional; os direitos civis, notadamente das
minorias; entre outros.
A
todos esses ataques, o discurso – também “novo/velho” – se funda na
“modernização”, na “abertura do mercado”, no “custo Brasil”, na “meritocracia”,
na “estática divisão internacional do trabalho”, de onde Moro e Serra, por
exemplo, parecem se inspirar, entre outras.
O
“Partido do Poder Judiciário” tem sido ou omisso, ou leniente ou ativo no
ataque a esse conjunto de garantias, a ponto de a defesa do ex-presidente Lula
ter conseguido aceitação da ONU quanto ao processo que lhe é movido pela
Operação Lava Jato, cujos elementos anti-jurídicos saltam aos olhos,
simbolizados na figura do promotor Dalton Dallagnol com suas convicções em
forma de power points!
Esse
“partido” tem ou realizado (Partido da Lava Jato, TCU, MPEs) ou permitido (STF)
um sem-número de aberrações ilegais contra determinados políticos de um mesmo
partido político (o PT), como se sabe, e parcialmente ao PMDB. Muito já se
falou dos grampos ilegais e dos vazamentos aos meios de comunicação (ao PIG),
das conduções coercitivas, das prisões ilegais e estendidas como forma de
pressão, das pressões inconstitucionais às delações premiadas, da supressão do
devido processo legal, da intepretação do processo penal e do código do
processo penal de forma inteiramente “particular” sem que nada disso tivesse o
devido “peso e contrapeso” do que se pode chamar de justiça. Tudo isso no
contexto da enorme seletiva investigativa.
Não
mais se discute política no Brasil sem que haja menções explícitas e
predominantes a Moro, Mendes, Janot e outros. A morte do ministro Teori Zavascki
tem permitido um sem-número de versões sobre um possível atentado tendo em
vista a conveniência política para o consórcio golpista indicar seu substituto
(como relator da Lava Jato num momento de homologação de importantíssimas
delações premiadas) e que faça coro a Gilmar Mendes para criminalizar políticos
do PT e de parte do PMDB, sem que nada aconteça ao PSDB e ao núcleo golpista do
PMDB, cujos principais nomes estão envolvidos até a medula em denúncias e
delações.
O
Poder Judiciário, ao se partidarizar, com honrosas exceções não julga o
“mérito” do processo e sim personaliza o suposto criminoso: uns sim (do PT),
outros não (do PSDB)! Tal fenômeno se tornou chacota entre diversos grupos,
ainda mais com a “piada pronta” dos reiterados encontros entre Moro/Gilmar e
Aécio, Alckmin, Temer, Dória e tantos outros, num teatro em que se encontram
acusadores e acusados, cujos papeis se confundem.
Mesmo
os Ministérios Públicos estaduais têm agido de forma facciosa, partidária, caso
do MPSP, que blinda os sucessivos governos do PSDB do estado de um sem-número
de barbaridades: intransparência sistêmica; corrupção, como se verifica nos
casos Alstom, quebra de consórcios que construiriam linhas de metrô, merenda
escolar, entre tantos e tantos outros; violência policial exacerbada e
coordenada politicamente; irresponsabilidade administrativa (caso da crise
hídrica e da “reorganização” das escolas estaduais); aparelhamento
político/partidário dos aparatos do Estado; privatizações, concessões e
contratualizações onerosas à sociedade e irresponsáveis administrativamente;
entre muitos outros. Tudo isso tornou o estado de São Paulo sob o PSDB o estado
mais autoritário, intransparente e incompetente para resolver problemas
estruturais, inversamente à proteção e blindagem do TJ, do MPSP e mais
recentemente até da Defensoria Pública de SP. Por outro lado, a perseguição de
promotores paulistas a Lula é ao mesmo tempo insana e típica de ópera bufa,
contrariamente à intocabilidade dos governos tucanos, apesar do imensos descalabros
que promovem há cerca de vinte anos no estado de São Paulo. Igualmente o MPDF,
entre outros, tem assumido postura anti-petista e particularmente persecutória
a Lula a ponto de indiciá-lo sem nenhuma evidência. São, portanto, seções
regionais do PPJ, espécie de partidos regionais da Velha República.
O
PPJ não tem voto nem legitimidade para fazer política, mas age como se tivesse,
tendo, ainda por cima, mantido vícios e privilégios provenientes da ditatura
militar, reitere-se.
O
PPJ se protege com o argumento de que “apenas cumpre a lei” – bordão de Moro,
candidatíssimo à presidência da República –, quando a interpreta ao seu bel
prazer e de acordo com as circunstâncias políticas, conjugando ações da Lava
Jato com o STF, a PGR e Ministérios Públicos estaduais, embora haja conflitos e
dissintonias também entre essas instituições, igualmente ao que ocorre nos
partidos políticos formais. Reitere-se que a aceitação da ONU à queixa de
perseguição ao ex-presidente Lula pela Lava Jato, particularmente a Moro, justamente
evidencia esse manancial de ilegalidades.
Por
fim, o apontado “messianismo” de Moro (que aparentemente colabora com o Poder
Judiciário dos EUA), Dallagnol e outros membros da Lava Jato, que supostamente
estariam numa cruzada cívica contra a corrupção, pode ser até verdadeira do
ponto de vista de suas crenças individuais, embora altamente questionável dada
a seletividade com que atuam. Contudo, o mais importante é observar os aspectos
sistêmicos do que está em jogo no Brasil por meio da atuação política do Poder
Judiciário como “partido político” no sentido gramsciano.
Sem
que se enfrente e se desestruture o poder faccioso desse “partido político”,
impondo-lhe conduta republicana, transparente e democrática, estaremos muito
próximos de uma “ditadura judicial”, tornando o Estado de Exceção, que de certa
forma já estamos vivenciando, moldura da vida política nacional.
Enfatize-se
que os debates e embates em torno da morte e sucessão de Teori Zavascki são a
expressão da partidarização do Poder Judiciário e do sintoma da destruição da
democracia, da soberania e da sociedade de direitos, uma vez que o golpe de
Estado foi desfechado para blindar as elites e os grupos conservadores e para
destruir a soberania nacional – em prol do rentismo internacional – e a
sociedade de direitos: políticos e sociais.
Não
é pouco a tarefa que a atual geração terá de enfrentar!
*
Francisco Fonseca é professor de ciência política da FGV/Eaesp e PUC/SP.
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-poder-judiciario-como-partido-politico/4/37601
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