A
noite que desce sobre o Brasil se anuncia longa. Não se vê na conjuntura atual
qualquer caminho para brincar do jogo do contente. O golpe de maio e agosto
mostrou que o movimento popular e o campo progressista são ainda mais frágeis
do que temíamos. Enquanto a coalizão regressista no poder impõe com rapidez seu
programa antipopular e antinacional, a resistência engatinha. No momento, ainda
não é possível sequer vislumbrar qual saída conseguiremos construir. É possível
que o golpe nunca acabe, que simplesmente deslize para uma
"normalização" cujos limites só conheceremos quando forem testados,
ou que acabemos chegando a uma transição ainda mais ambígua e limitada do que
aquela que nos tirou da ditadura militar.
Com
tudo o que vem acontecendo no Brasil, não conseguimos sequer nos desvencilhar
por completo de velhas ilusões. Nos lados da esquerda, ainda se alimenta muita
esperança no processo eleitoral, como se uma eventual maioria conquistada em
2018 tivesse o condão de dissipar o golpe. E ainda há muita crença no poder da
lei – crença que há, de fato, um limite ao retrocesso, imposto pelo arcabouço
institucional que se consolidou no país a partir da carta constitucional de
1988. No entanto, se há algo que o golpe demonstrou com clareza é que os
limites legais à reação foram destroçados pela voracidade com que o programa
antipopular se faz implantar.
A
retirada da presidente escolhida pelo voto popular, sem respaldo na legislação,
é grave em si mesma. Mostra que as classes dominantes brasileiras decidiram que
não vale mais a pena respeitar os rituais da democracia eleitoral – que assumem
a prerrogativa de tutelar a escolha das urnas. Não se trata, como o governo do
usurpador demonstra todos os dias, apenas de definir quem ocupar uma cadeira no
Palácio do Planalto. Retirar do voto popular seu poder é retirar a chance de
que os governantes respondam, um pouco que seja, aos interesses das maiorias.
Em
menos de nove meses de desgoverno, Michel Temer já acumula uma longa folha de
serviços prestados ao retrocesso no Brasil. A emenda constitucional que congela
o investimento social é o item mais impactante. Sem ter obtido a legitimidade
para governar por um mandato, tomou decisões que valem por cinco e que,
prejudicando gravemente a educação, a saúde, a cultura e a ciência, preservam o
orçamento público para a remuneração do rentismo. A emenda põe o investimento
social no freezer e, no mesmo movimento, reafirma que a dívida pública é
intocável. Em suma, aponta para um país em que todos pagam impostos, mas o
retorno em serviços públicos é minguado, para garantir que quem ganha com a
especulação financeira não tenha o risco de perder. É a tributação a serviço da
concentração da riqueza.
Em
paralelo, há o anunciado desmonte do SUS e o estrangulamento da educação pública
– com o subfinanciamento das universidades e a reforma do ensino médio. É um
modelo em que o trabalhador deve comprar, de provedores privados, saúde e
educação de qualidade precária, assim devolvendo ao capital uma parcela maior
de seus ganhos. A projetada criação de "planos de saúde populares",
com baixíssima proteção a seus clientes, faz parte do cenário.
Outra
prioridade do governo, a reforma da previdência social retira direitos de
praticamente todos, em variados graus. Determina o fim da aposentadoria do
trabalhador rural, que foi um dos principais ganhos sociais da ordem instituída
com a Constituição de 1988. Amplia o tempo de contribuição e faz a esperança da
aposentadoria encostar na expectativa de vida. Reduz os benefícios. Retira a
compensação a que as mulheres fazem jus pela dupla jornada de trabalho –
exatamente no momento em que a retração do gasto público faz com que aumente a
parcela de responsabilidades assumida pela família, isto é, pelas mulheres.
Está
no forno a reforma das relações de trabalho que, na prática, decreta o fim de
toda a legislação trabalhista. O monopólio estatal sobre o petróleo foi
quebrado. Avançam os projetos de criminalização da docência. A repressão
policial está em alta. Projeta-se a revisão da concessão de terras aos povos
indígenas. Nem vale a pena fazer uma lista completa: o governo Temer nos leva a
uma espiral de depressão. E mesmo da bandeira que levou tantos a desejarem a
queda de Dilma Rousseff, a luta contra a corrupção, não sobra nada. Em maio de
2016 já era difícil que alguém não visse a sujeira que cercava Michel Temer,
seu círculo íntimo (Geddel, Yunes, Moreira Franco, Jucá, Padilha) e seus
aliados do PSDB. Hoje, nem a velhinha de Taubaté pode dizer que não sabe.
A
reação nas ruas é fraca. Os longos anos de desmobilização deliberada dos
governos petistas estão cobrando caro a fatura. Isso não quer dizer que não
exista uma insatisfação crescente com o governo que nasceu do golpe. Mesmo a
enorme cortina de desinformação que cercou a emenda de congelamento do gasto
público não foi capaz de evitar que se construísse uma sólida maioria contra
ela. O gigantesco descontentamento com a reforma da previdência é evidente para
qualquer um que converse na feira, no ônibus, na fila do banco. De maneira
geral, tudo o que o governo Temer está fazendo já foi recusado pelo povo
brasileiro quando ele pôde opinar: entrega do petróleo, desproteção ao
trabalho, renúncia do Estado ao combate à desigualdade.
Essa
insatisfação popular crescente é como um incêndio adormecido. Que neste 2017 o
movimento popular saiba alimentar as chamas da revolta e fazê-las tomar as ruas
do Brasil, de norte a sul.
http://www.brasil247.com/pt/colunistas/luisfelipemiguel/274075/Inc%C3%AAndios-adormecidos.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário