Em
entrevista concedida à CULT em 2009, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, morto
nesta segunda (9), aos 91 anos, fala sobre progresso, utopia e modernidade
líquida
Dennis
de Oliveira
Zygmunt
Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que
refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem
um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante a Segunda Guerra
Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país
sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e
desmoronamento do regime socialista. Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo
de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia
da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de “modernidade líquida”
para definir o presente, em vez do já batido termo “pós-modernidade”, que,
segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.
Bauman
define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana
experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos:
a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de
afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva
para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção
estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a
colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o
fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente
apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista
concedida pelo sociólogo à revista CULT.
CULT
– Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da
política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo.
Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após
a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em
um resgate da utopia?
Zygmunt
Bauman – Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a
forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está
funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se
reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial
humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós, seres
humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade capaz de
perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado,
quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em
suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades
humanas existentes ou que possam vir a existir.
Por
que se fala tanto hoje de “fim das utopias”?
Na
era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A
principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e
qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer,
o “equilíbrio natural”. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as
coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo
é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e
de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para
compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.
Já
no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não
assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção
e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não
devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com
um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção
prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e
destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro
que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos
discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo
trocado, novamente, pela ideia do caçador.
O
que isso significa para a humanidade de hoje?
Ao
contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não
podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única
tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher
seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua
responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição
do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente
esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e
reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro
distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é
a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único
caçador, ou uma “associação de caçadores”, se sentiria obrigado a refletir,
muito menos a fazer qualquer coisa.
Estamos
agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores,
sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo.
Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor,
vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós.
Isso é o que chamamos de “individualização”. E precisamos sempre tentar a
difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida
para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos
muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas
ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com “consciência ecológica”
servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do
jardineiro é o que se chama de “desregulamentação”.
Diante
disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?
É
óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para
a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas.
Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos
e força suficientes para poder fazê-lo. Essas forças poderiam ser exercidas
pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou
Jacques Attali em La voie humaine, “as nações perderam influência sobre o curso
das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação
do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo”. E as
forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de
“jardineiros”, favorecem a caça e os caçadores da vez. O Thesaurus [dicionário da
língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das
sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito
de utópico como “fantasia”, “fantástico”, “fictício”, “impraticável”,
“irrealista”, “pouco razoável” ou “irracional”. Testemunhando assim, talvez, o
fim da utopia.
Se
digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de
4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria
“morto”. Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da
lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos
navegantes que “Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do
mundo, com mais de 80 mil jogadores”. Eu não fiz uma pesquisa em todos os
quatro milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de
uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de
cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de
decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que
procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos
sofridos individualmente.
Nesta
sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?
A
ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de
sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto
de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado
para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste
ano, “o Brasil é o único local com sol no inverno”, neste inverno,
principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a
mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado. Ou você lê que deve
jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora,
se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e
camisetas deve “causar” na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.
O
truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se
surfando – e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de
parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não
precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em
eliminar as coisas – abandonando-as, livrando-se delas –, mais que sua
apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o
consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou
cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal
preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida
aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos
resíduos se tornou a vanguarda da indústria.
Neste
mundo de “caçadores”, e não de jardineiros, não há então uma utopia possível? O
“aqui e agora” se impõe como a única referência da existência humana?
O
problema é que, uma vez tentada, a caça se transforma em compulsão, dependência
e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a
perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que essa caça será a mais
deliciosa (ou a única deliciosa?). Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as
expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida.
Será que isso é o fim da utopia? Em um aspecto, é – na medida em que as
primeiras utopias modernas previam um ponto em que o tempo chegaria a uma
paragem, na verdade, o fim do tempo como história. Não existe tal ponto na vida
de um caçador, um momento em que se poderia dizer que o trabalho foi feito, a
missão, cumprida, e, assim, poder-se-ia olhar para a frente, para o descanso e
gozo do saque, a partir de agora até a eternidade.
Em
uma sociedade de caçadores, uma perspectiva de fim da caça não é tentadora, mas
assustadora – uma vez que significa uma derrota pessoal. Os chifres anunciam o
início de uma nova aventura, a doce memória e a ressurreição das aventuras do
passado; não haverá fim à emoção universal… Só eu que fiquei de lado, excluído,
impedido de usufruir as alegrias dos outros, apenas um espectador passivo do
outro lado do muro, apenas vendo a outra parte, mas proibido de participar.
Se,
em uma vida contínua e continuada, a caça é uma utopia, ela é – ao contrário
das outras – uma utopia sem nenhum efeito. A utopia torna-se um fato bizarro se
for medida por normas ortodoxas; as utopias clássicas prometiam o fim da
labuta, mas a utopia dos caçadores encapsula o sonho de uma labuta que nunca
termina. Ao contrário das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não
oferece sentido nenhum à vida, verdadeira ou fraudulenta. Ela apenas ajuda a
perseguir o significado da vida longe do espírito da vida. Tendo redesenhado o
curso da vida em uma interminável série de perseguições autocentradas, cada
episódio vivido como uma abertura para o próximo, ela (a utopia) não oferece
oportunidade de reflexão sobre a direção e o sentido da sua totalidade. Quando
vem finalmente uma ocasião, um momento de queda ou de proibição da vida de caça,
geralmente é tarde demais para a reflexão sobre a maneira de suportar a vida,
da própria vida como a vida dos outros: é demasiado tarde para se opor à forma
atual da vida.
Mas
os sonhos persistem, não? O ser humano não pode viver sem acreditar em alguma coisa,
ainda que seja algo fora do seu domínio imediato. E o desejo por um outro mundo
possível persiste e mobiliza vários setores da sociedade, particularmente com a
percepção cada vez mais forte das dificuldades de resolver os problemas da
humanidade.
Em
um notável artigo sobre a persistência da utopia intitulado “Persistent utopia”
(2008), Miguel Abensour cita William Morris (A dream of John Ball, Elec Book,
2001), que escreve em 1886 que os homens lutam e perdem a batalha, e as coisas
que eles lutaram para acontecer, apesar da derrota, transformam-se para não ter
o mesmo significado que antes, e outros homens têm de lutar por aquilo que
agora se entende por outro nome. Morris escreveu sobre os seres humanos como
tais e sugere que lutam por uma “coisa que não é”; é a forma como as pessoas
são, é o caráter do ser humano. O “não” (nicht) como Ernst Bloch salientou “é a
falta de algo e também o fugir do que falta”; assim, é o que falta para
conduzir. Se estivermos de acordo com Morris, iríamos sempre ter utopias a ser
elaboradas, já que expressões sistematizadas como essa fazem parte do aspecto
crucial da natureza humana. Utopias foram todas as tentativas de enunciar e
descrever em detalhes a coisa para a qual a próxima luta seria dirigida.
Notamos, contudo, que todas as utopias escritas por Morris, antecessores e
contemporâneos foram esquemas de um mundo em que as batalhas de coisas que não
são não estão longe dos cartões. Essas batalhas não eram exigidas. Então, se
estivermos de acordo com Morris, a natureza das coisas para as quais as pessoas
lutavam era o fim da guerra, o fim das necessidades e dos deveres, e o desejo e
a conveniência de ir à luta. E a grande coisa que manteve proveniente a ideia
de lutar não pensando na batalha perdida, mas em seu significado e em incitar
outras pessoas a lutar novamente pela mesma coisa com outro nome, foi o Estado,
que não usa as mãos para lutar.
Temos
as hostilidades que reaparecem após o armistício, que ficam muito aquém do
êxtase de quem lutou e esperava pela paz. A inquietação do compulsivo,
obsessivo, viciado caçador de utopias foi impelida e sustentada por um desejo
de descanso. As pessoas corriam para a batalha que sempre persegue o sonho.
Outra característica das utopias de William Morris, e por quase um século depois,
foi o seu radicalismo.
O
que vem a ser “radical”?
Atos,
empresas, meios e medidas podem ser chamados de “radicais” quando eles chegam
até suas “raízes”, às de um problema, um desafio, uma tarefa. Note, contudo,
que o substantivo latino radix, do qual se origina o adjetivo “radical”, diz
respeito não só às raízes, mas também a fundações e origens. O que essas três
noções – raiz, fundações e origens – têm em comum? Dois atributos.
Primeiro:
em circunstâncias normais, o material de todos os três são referentes
escondidos da vista e impossíveis de ser analisados, muito menos tocados
diretamente. Qualquer coisa que tenha crescido em um deles, como troncos ou
caules, no caso das raízes, a edificação, no caso das fundações, ou as
consequências, no caso das origens, foi sobreposta sobre sua parte inferior,
cobriu-a e depois emergiu escondida da visão. Por isso, tem que ser, primeiro,
perfurada, as partes lançadas fora do caminho ou tomadas à parte, se se deseja
um dos objetos segmentados quando pensar ou agir radicalmente. Segundo: no
decurso do trilhar para esses objetivos, o crescimento desse material deve ser
desconstruído, ou materialmente empurrado para fora do caminho, ou desmantelado.
A probabilidade de que, a partir do trabalho de desconstrução/desmontagem das
metas, emerjam todas as deficiências é alta. Tomar uma atitude radical sinaliza
para a intenção da destruição – ou melhor, de assumir o risco da destruição,
mais frequentemente o significado de uma destruição criativa –, destruição no
sentido de um lugar para limpeza, ou para lavrar o solo, preparando-o para
acomodar outros tipos de raízes. A política é radical se ela aceita todas as
condições e se orienta por todas essas intenções e objetivos.
Uma
das características dos tempos líquido-modernos é a decadência do planejamento
a longo prazo. É possível um pensamento crítico e uma utopia neste contexto de
queda da perspectiva do planejamento?
Russel
Jacoby propõe distinguir duas tradições, aparentemente coincidentes, mas não
necessariamente ligadas, tradições do moderno pensamento utópico: o modelo (o
projeto utopista de traçar o futuro em polegadas e minutos) e a tradição
iconoclasta (os utopistas iconoclastas sonharam com uma sociedade superior, mas
recusaram-lhe dar medidas precisas). Proponho que se mantenha o nome, como
sugere Jacoby para o segundo, como tradição da utopia do “não projeto”. A
característica definidora dessa tradição do segundo é a intenção de
desconstruir, de desmistificar e, em última instância, de desacreditar os
valores da vida dominante e suas estratégias de tempo, através da demonstração
de que, contrariamente às crenças atuais, em vez de assegurarem uma sociedade
ou vida superior, constituem um obstáculo no caminho para ambas.
Em
outras palavras, o que eu proponho para descompactar o conceito de utopia
iconoclasta, em primeiro lugar, é sobretudo a afirmação de uma possibilidade de
uma outra realidade social – possibilidade ainda aterrada na revisão crítica
dos meios e formas de apresentar a vida. Sendo este o principal interesse e a
preocupação do utopista iconoclasta, não é de admirar que a alternativa ao
atual permaneça incompleta; a principal causa do utopismo iconoclasta é a
possibilidade de uma alternativa à realidade social, apesar de o seu desenho
estar pouco desenvolvido. As utopias iconoclastas, presumo, são aberta ou
tacitamente o caminho para uma sociedade superior, não se conduzem por meio de
desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e
crenças existentes de forma a – para recordar uma ideia de Bloch – explicitar
que “uma coisa está faltando” e assim “inspirar a unidade para a sua criação e
recuperação”.
Dennis de Oliveira é
professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Escreveu Globalização e
racismo no Brasil (Unegro, 2000) e organizou Mídia, cultura e violência
(Celacc, 2009)
http://revistacult.uol.com.br/home/2017/01/bauman-para-que-a-utopia-renasca-e-preciso-confiar-no-potencial-humano-de-reformar-o-mundo/
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