Ao
longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para concretizar o
sentido do princípio constitucional da liberdade de expressão e pensamento, que
a Constituição Federal de 1988 protege como direito fundamental nos incisos IV
e IX do seu artigo 5° [1]. Cada vez que este princípio contrapunha-se a um
outro, terminava o Supremo a dar-lhe contornos mais claros na medida em que lhe
impunha limites. No Habeas Corpus 82.424/RS [2], os contornos deveram-se à
primazia do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nessa
ocasião, o Supremo foi instado a decidir sobre a condenação à pena de dois anos
de reclusão de indivíduo como incurso no tipo penal previsto pelo artigo 20 da
Lei n° 7.716/89 – crime de preconceito [3]. À primeira vista, o que parecia ser
mais um entre os milhares dos Habeas Corpus impetrados contra ato constritivo à
liberdade de locomoção, revelou-se um autêntico hard case. Ao decidir sobre a
prisão de um editor de livros cuja obra foi considerada antissemita, o Supremo
estabeleceu limites à liberdade de expressão diante do princípio da dignidade
da pessoa humana.
A
controvérsia girava em torno de dois pontos. Primeiro, questionava-se a
possibilidade de enquadrar o preconceito com judeus no tipo penal do racismo,
ou seja, a abrangência do dispositivo legal quando da interpretação do conteúdo
de livros revisionistas escritos por Sigfried Ellwanger. Para os impetrantes, a
punição do crime estaria prescrita porque o julgamento pela primeira instância
aconteceu quase doze meses após o recebimento da denúncia, na forma do artigo
109 e 110 do Código Penal [4]. A solução seria defender a natureza comum do
crime para afastar a imprescritibilidade do racismo, como estipula o artigo 5°, inciso XLII, da Constituição [5],
ao argumento de que não existiria uma “raça judaica”, apenas a raça humana.
Em
segundo lugar, defendia-se a prevalência da liberdade de expressão. Entretanto,
este mesmo texto constitucional estabelece não só a dignidade da pessoa humana
como um dos fundamentos da República brasileira [6], como também institui a
igualdade entre todos os cidadãos. Instalava-se, assim, o hard case, na medida
em que a controvérsia não encontra solução óbvia na ordem jurídica. É nesse
momento, de acordo com Ronald Dworkin, que o intérprete da lei depara-se com a
árdua tarefa de analisar o problema à luz de seus partícipes, seu contexto e
suas consequências [7].
O
Procurador Geral da República ofertou parecer pelo indeferimento do Habeas
Corpus, por entender que o crime de racismo previsto na Constituição Federal de
1988, tal como fora regulamentado pela Lei 7.716/1989, deveria ser interpretado
não só como preconceito fundado em “raça”, mas também por cor, etnia, religião
e procedência nacional. Idêntico foi o posicionamento apresentado por Celso
Lafer como amicus curiae. Deveria o inciso XLII do artigo 5° da Constituição de
1988 ser lido do modo mais aberto possível
“dada a relevância que a Constituição atribui a direitos e garantias
fundamentais, entre as quais se inclui a rigorosa inaceitabilidade da prática
do racismo”.
O
julgamento do HC 82.424 estendeu-se por três sessões e levou mais de nove meses
para ser concluído. Por um placar de 8 votos a 3, os ministros negaram o
pedido. Saíram vencidos os Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Ayres
Britto. O primeiro entendeu que não só ocorrera a prescrição, por se tratar de
crime comum, como também não se poderia cogitar do racismo porque judeus não
seriam considerados uma raça. Em sentido semelhante, o ministro Marco Aurélio
entendeu não haver crime de racismo, na medida em que a intenção do autor era
apenas promover uma revisão histórica dos fatos e que sua manifestação
individual deveria ser resguardada pelo direito. Além, foi do seu entendimento
que a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o crime de racismo e
determinar sua imprescritibilidade, referia-se ao preconceito contra negros,
não contra o povo judeu.
Sendo
o crime praticado por Ellwanger comum, estaria já prescrito. Para o ministro, o
instituto da imprescritibilidade tornaria o cidadão refém eterno dos seus atos
e das sua manifestações, “como se não fosse possível e desejável a evolução, a
mudança de opiniões e de atitudes, alijando-se a esperança, essa força motriz
da humanidade”. O ministro Ayres Britto, terceiro e último voto vencido, concedia
a ordem, uma vez que o crime teria sido praticado antes da entrada em vigência
da lei que tipifica o racismo por meio de comunicação.
Acerca
da questão de fundo, os limites à liberdade de expressão, posicionaram-se Ayres
Britto e Marco Aurélio. Para o primeiro, o paciente do Habeas Corpus possuía
apenas os intuitos científico e histórico na publicação dos obras considerados
revisionistas. Diante de um “estudioso tendencioso”, deveria ser dado espaço ao
senso crítico dos leitores. Já o ministro Marco Aurélio seria indispensável
resguardar a liberdade de expressão como proteção contra a tirania de
pensamento politicamente correto. Estaria o editor a relatar sua versão dos
fatos e as pessoas não seriam obrigadas a compartilhar de igual ponto de vista.
A
divergência que se consagrou vencedora foi aberta pelo ministro Maurício de
Corrêa, que indeferiu a ordem a partir do argumento de que a segregação dos
seres humanos em diversas raças nada mais seria do que um processo político
decorrente da intolerância da sociedade. Após ilustrar as origens bíblicas do
povo judeu e as estigmatizações sofridas por ele, defendeu a exegese
teleológica e harmônica do inciso XLII do artigo 5° face ao texto da
Constituição Federal de 1988, não podendo a categoria “raça” ser interpretada
isoladamente como expressão simplesmente biológica, mas de acordo com suas
diversas conceituações. Assim, “o que vale não é o que pensamos, nós ou a
comunidade judaica, se se trata ou não de uma raça, mas efetivamente se quem
promove preconceito ou tem discriminado como uma raça e, exatamente com base
nessa compreensão, promove e incita a sua segregação, o que ocorre no caso
concreto”.
O
voto do ministro Maurício Corrêa foi ainda taxativo quanto à inexistência de
violação aos princípios constitucionais garantidores da liberdade de expressão
e de pensamento. A colisão entre direitos fundamentais não seria mais que
aparente, na medida em que o texto constitucional não ampara atos
discriminatórios de qualquer natureza. Um direito individual não pode ser
utilizado como salvaguarda para conduta ilícita. O direito à livre expressão
apenas será exercido legitimamente acaso atendidos os limites que o próprio
texto constitucional lhe impõe. Para delineá-los, “há necessidade de
proceder-se a uma ponderação jurídico-constitucional, a fim de que se tutele o
prevalente”. No caso do HC 82.424, preponderariam os direitos de toda a parcela
da sociedade prejudicada com as obras publicadas pelo paciente.
Para
o ministro Gilmar Mendes, a controvérsia também girava em torno da extensão do
crime de racismo. Seria inegável o caráter racista do antissemitismo,
independentemente se adotado o critério antropológico, histórico ou biológico.
Valendo-se do princípio da proporcionalidade na composição entre direitos
fundamentais em divergência, entendeu que deveria sobressair naquele caso
concreto o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que
a discriminação racial travestida de liberdade de expressão comprometeria a
ideia de igualdade, um dos fundamentos do Estado democrático. Nesse sentido
votaram Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar Peluso.
Ao
cabo de três sessões e nove meses, o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem
no Habeas Corpus a partir do entendimento de que o antissemitismo está abarcado
pelo tipo penal do racismo, sendo, portanto, imprescritível e inafiançável.
Embora não exista uma divisão de raças humanas na biologia, ela existe nas
mentes preconceituosas. No direito, deve preponderar não os conceitos
científicos, mas a realidade social do impacto que tal preconceito causa a fim
de privilegiar o objetivo final do dispositivo constitucional.
Privilegiou-se
a própria Constituição Federal de 1988, cujo texto elegeu como objetivo da
República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça [8]. A
legislação e a jurisprudência alinham-se à adesão do Brasil às convenções
internacionais que versam sobre a matéria, a exemplo da Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Ratificada no
ano de 1969, o diploma veda e enquadra na prática de racismo qualquer ato que
induza ou incite, pelos meios de comunicação social ou por publicação de
qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia
ou procedência nacional.
Como
no julgamento de Ellwanger, onde sopesadas liberdade de expressão e dignidade
da pessoa humana, a colisão entre princípios constitucionais deverá ser
resolvida caso a caso por meio de um processo dialético de complementação e
limitação [9] – em outros termos, por meio de uma ponderação. Não foi admitido
justificar a publicação das obras que ofendessem a dignidade da sociedade
judaica na liberdade de expressão porque tal garantia não seria absoluta, não
podendo respaldar eventual manifestação que implique ilicitude. No HC nº 82.424
prevaleceu o direito da coletividade em ser respeitada como tal.
A
discussão sobre antissemitismo retornou em 2016, com a entrada em domínio
público da obra Minha Luta, de Adolf Hitler. Já há precedente do Tribunal
Constitucional em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana e da
igualdade e em repúdio à discriminação e ao preconceito. Todavia, cuida-se de
entendimento adotado em Habeas Corpus que, por mais significativo que seja, não
é dotado de eficácia vinculante e efeitos erga omnes. Caberá mais uma vez à
justiça pôr a termo um conflito entre princípios de tamanha centralidade na
ordem democrática: liberdade de expressão e dignidade.
[1]
IV - É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (...);
IX
- É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença
[2]
HC n° 82.424/RS, rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêia, DJ 19.03.2004.
[3]
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei n° 9.459,
de 15/05/97)
Pena:
reclusão de um a três anos e multa.
[4]
Art. 109 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo
o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da
pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
V
- em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não
excede a dois;
Art.
110 - A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória
regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo
anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente
[5]
Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes (…)
XLII
- a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, nos termos da lei.
[6]
Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos (..):
III
- a dignidade da pessoa humana.
[7]
Cf. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
[8]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I
- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II
- garantir o desenvolvimento nacional;
III
- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
[9]
CANARIS, Wihelm. Direitos fundamentais e direito privado. São Paulo: Almedia,
2009.
Marcus
Vinicius Furtado Coêlho é advogado, doutor pela Universidade de Salamanca
(Espanha) e ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
http://www.conjur.com.br/2017-jan-08/constituicao-liberdade-expressao-limites-dignidade-pessoa-humana
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