Capítulo 1
– o sentimento de salve o Brasil
No
Brasil real, meu amigo Vinicius, de 16 anos, criou um grupo no WhatsApp com o
título “Salvar nosso Brasil”. O histórico trabalhista Almino Afonso, no meio da
conversa deixa escapar um “precisamos salvar nosso país”. Minha tia Clélia reza
todo dia para Deus salvar o Brasil, embora não saiba exatamente como e de quem.
O jurista Celso Antônio Bandeira de Mello diz, no meio do almoço, que
precisamos salvar o Brasil. Pelo Twitter, o governador maranhense Flávio Dino
repete a mesma expressão.
Testemunhei
todos esses apelos em menos de meio dia. Em todos os pontos do país há um
sentimento difuso de que o Brasil derrete, se desmancha, em um suicídio lento e
ritual. E a angústia de querer e nada poder fazer, porque o destino do Brasil
não está nas mãos do Brasil real, mas de uma realidade virtual montada em
Brasília.
Capítulo 2
– o Brasilguai da estufa Brasília
Em
um reino distante chamado Brasilguai, nos limites entre um Brasil que já era e
simulando um Paraguai que já foi, a realidade é envolta em manchetes feéricas e
em redes sociais onde borbulham babas de ira e sangue, compondo o cenário em
que as mais altas autoridades disputam os clicks da turba e as dobras do poder.
É
o pessoal da corte, do país improdutivo que vive em uma estufa onde são
cultivadas as intrigas, os jogos de lisonja e de poder, um mundo invertebrado,
em que as carreiras são construídas por artimanhas, puxadas de tapete e de
saco, palco de cenas desse nível:
· A presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF) brada: “Onde um juiz é destratado, eu também sou” (https://goo.gl/rC9FJd).
Recebe 1.450 cliques no Facebook.
· O Procurador Geral da República adapta o
brado: “Atacar um procurador é atacar todo o Ministério Público”, e corre a se
informar sobre a quantidade de cliques que a frase irá merecer.
· O decano, que não é de ferro, aproveita e
se exibe em um self em um shopping da moda, sabendo que o discurso
anticorrupção é o creme de leite que, com sua densidade, disfarça qualquer
massa de má consistência.
· Não se sabe se o presidente do Senado
aproveitou o mote e bradou: “Quem ataca um senador, ataca o Senado”. Se não
gritou, pensou. Se pensou e não realizou, perdeu o direito aos clicks.
· E, como a realidade virtual não está
sujeita às limitações enfadonhas da realidade, o Ministro da Justiça declara seu
modesto plano de ação: erradicar toda a maconha do continente. A julgar pelos
selfies que tirou no Paraguai, desbastando uma a uma as mudas de cannabis.
Repetindo o que disse a Comissão de Ética da Presidência: "cala-te,
Magda!".
É
esse simulacro de país virtual que comanda o Brasil real, um país que poucos
anos atrás ambicionava o status de nação moderna. É lá, que se desenrola essa
ópera que não é bufa, por trágica, cujos próximos capítulos descreveremos a
seguir.
Capítulo 3
– um apanhado do momento atual
No
Brasilguai, ora são denúncias contra Michel Temer, ora loas a um simulacro de
pacote econômico, ora o Procurador Geral investe contra o presidente do Senado,
ora o Ministro do Supremo contra a Lava Jato; o PGR e o Ministro se acusam
mutuamente do objetivo comum de blindar o presidenciável tucano, enquanto
associações de juízes e de procuradores pressionam o Congresso e procuradores e
juízes cometem “estudantadas”, mostrando menos maturidade que os secundaristas
do Brasil real.
Enfim,
um retrato claro da balbúrdia institucional que se instalou no país
improdutivo, aquele que não gera riquezas, mas consome o futuro e deixou de
cumprir com sua responsabilidade constitucional.
Para
não perder o fio da narrativa, o leitor deve se fixar apenas no roteiro
principal, que consiste no desmonte do Estado. Idas e vindas são apenas
variações em torno do tema principal. Aí se dará conta de que o que era intuído
há alguns meses, hoje em dia é ação consumada e ostensiva, mostrando a
coerência da narrativa central:
· O jogo político da Lava Jato em benefício
do PSDB. Mais de dois anos de operação e nenhuma exceção sequer para confirmar
a regra.
· O desmonte do Estado.
· O desmonte de garantias individuais,
sociais e ambientais com o avanço do estado de exceção.
· A porteira aberta para os negócios do
Congresso. Deputados preparam a volta do jogo, ruralistas liquidam com regras
ambientais, o senador Romário avança uma trapaça com APAEs e Sociedades
Pestalozzi, o governo ameaça rever as reservas indígenas.
Essa
imoralidade ampla e irrestrita é aceita pelo polo condutor do golpe como uma
espécie de dano colateral inevitável para se alcançar os objetivos finais: o
desmonte total do Estado nacional, das políticas sociais e dos modelos de
atuação proativa do Estado, substituindo a ação política pelo modelo
tecnocrático-jurídico globalizante, já identificado em várias obras acadêmicas.
Antes
de avançar neste Xadrez, aliás, é útil a leitura sobre as estratégias em torno
do chamado “capitalismo de desastre”.
Trata-se da fórmula já incorporada às estratégias globais, conforme você
poderá conferir aqui (https://goo.gl/5NmavZ) e no ”Xadrez da Teoria do Choque e
do Capitalismo de Desastre” (https://goo.gl/V4XdVZ)).
A
partir daí, fica mais fácil entender a tacada final do golpe: a tentativa de
Constituinte exclusiva com a atual composição do Congresso.
Capítulo 4
– O golpe final da Constituinte
Em
um Congresso integrado por trânsfugas, fisiológicos, conservadores e
preconceituosos de toda espécie, não há maior ameaça aos setores populares e
modernizantes que o deputado carioca Miro Teixeira e sua proposta de Constituinte
(https://goo.gl/xsvtfp).
Miro
é um Cristóvão Buarque profissional. Hoje, é o principal homem da Globo no
Congresso.
Discreto,
só interfere no jogo em momentos decisivos, como foi na CPMI de Carlinhos
Cachoeira, quando a mídia, especialmente a revista Veja, entrou na linha de
fogo.
Sua
proposta de uma Constituinte com os atuais integrantes do Congresso é, de
longe, a maior ameaça aos direitos sociais desde que o golpe foi desfechado.
A
pretexto de discutir a reforma política, o fator Miro Teixeira se impõe com
essa tese esdrúxula de uma Constituinte com o Congresso atual.
O
parágrafo 2 do artigo 101 define o que não poderá ser deliberado, de tal
maneira que abre espaço para transformar o pior Congresso da história em poder
constituinte (https://goo.gl/yMNMg0). O
tal parágrafo diz que a Assembleia nacional Constituinte deliberará
“preferencialmente” sobre reforma política. Não é exclusivamente: é
preferencialmente. E veda apenas as propostas abolindo I- o Estado democrático de Direito II- a
separação dos Poderes; III- o voto direto, secreto, universal e periódico; IV-
a forma federativa de Estado V- os direitos e garantias individuais e VI- o
pluralismo político.
Ou
seja, não avançando até esse limite, tudo pode.
Tendo
a demolição do Estado de bem-estar como peça central, entram-se nas variáveis,
a principal das quais é o destino do governo Michel Temer.
Capítulo
5 – as peças do jogo principal
Como
o processo atual é essencialmente dinâmico, vamos, primeiro, a uma avaliação do
estágio atual dos principais personagens, para entender o papel de cada um no
jogo:
Núcleo duro
O
núcleo duro continua integrado pela Globo e o mercado. O Ministério Público
Federal, através do PGR, e o PSDB tornaram-se meros caudatários. O endosso da
opinião pública à Lava Jato é pontual e tem prazo de validade, como em todo
processo catártico.
A
Globo implementou um discurso único para seus comentaristas, de ataque
continuado ao sistema político e de exaltação permanente à Lava Jato. Joga com
Michel Temer, mas aguarda sua queda. Manobra com a Lava Jato para queimar Renan
Calheiros e manter Lula sob fogo cerrado, enquanto prepara o próximo tempo do
jogo.
A PGR e o Judiciário
A
cada movimento vai ficando claro que o PGR não possui dimensão política para
atuar como organizador do golpe. Teve papel decisivo no golpe, sim, conforme
antecipado pelo GGN. Mas é um mero seguidor de script desenvolvido por
instâncias profissionais.
Com
a narrativa midiática-ideológica vitoriosa, construindo a figura do inimigo
interno (PT-Lula) e apresentando a fórmula salvadora (o desmonte do Estado),
cria-se o movimento de manada e os fatos acabam se sucedendo por inércia:
Ministros do STF intimidados ou deslumbrados, procuradores e juízes de
inquéritos paralelos procurando mostrar serviço e a escalada rápida do estado
de exceção, com juízes arremetendo contra qualquer coisa que cheire esquerda.
Vide tentativa de cassar os direitos políticos do senador Lindbergh,
imediatamente após ele ter enfrentado o juiz Sérgio Moro, porque havia o
logotipo da prefeitura em um saco de leite distribuído.
O PSDB
Não
tem mais protagonismo algum. Assumiu a condição de terceirizado do mercado, e é
o que resta do quadro partidário. Por esse papel supletivo, é poupado: do lado
da mídia, registrando as menções dos delatores, mas não insistindo na
repercussão; do lado do Supremo e do PGR, postergando os resultados dos
inquéritos.
Por
exemplo, o Ministro Gilmar Mendes e o Procurador Janot, não se bicam, mas estão
na mesma missão de poupar o PSDB. Quando um dos dois atua em benefício do PSDB,
o outro se sente aliviado e aproveita para espicaçar o adversário-parceiro.
Ao
mesmo tempo em que preserva o PSDB, Janot investe pesadamente contra o
presidente do Senado Renan Calheiros e estimula perseguição implacável a Lula,
concentrando inquéritos e denúncias divulgados em momentos estratégicos, como agora,
diluindo um pouco as delações da Odebrecht.
As
forças políticas
Não
se ataca Renan por seu histórico, mas por ser o general maior da resistência do
Senado aos esbirros do MPF e do Judiciário. Na verdade, o bastão político está
entregue, hoje em dia, ao comando solitário de Renan no Senado, e à liderança
de Lula no Brasil real. O apoio de Renan à PEC
55 foi estratégico, para manter o Senado no jogo. Mas não infunde
confiança no comando do golpe, que sabe que Renan tem voo próprio.
É
por aí que se entende a sequência de ataques aos dois polos.
Michel
Temer, o breve
Um
a um o golpe vai decepando cada braço político de Temer. Eliseu Padilha e
Moreira Franco estão com os dias contados. Romero Jucá será o próximo alvo do
MPF. Aguarda-se apenas o autor da bala de prata: se as delações da Odebrecht ou
de Eduardo Cunha.
Consumada,
restarão dois destinos inglórios para Temer:
1. O impeachment através do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE).
2. A interdição, com o PSDB assumindo o
controle do governo e mantendo um presidente decorativo.
Tivesse
dimensão política mínima, se poderia esperar uma saída honrosa, tipo comandar
uma tentativa de salvação nacional através da convocação de lideranças de todos
os poderes e partidos. O momento demanda saídas assim. Mas Temer jamais deixará
de ser um mero mercador das pequenas demandas fisiológicas.
Assim,
se entrará na próxima tentativa do golpe sem ninguém que possa exercer o papel
de algodão entre cristais.
Capítulo
6 – a desestabilização econômica
Para
que a proposta da Constituinte seja aceita, e os princípios defendidos pela Globo-Miro
empurrados goela abaixo do Congresso, há a necessidade de sucessivos choques
que criem um estado de desorientação tornando os parlamentares receptivos a
propostas salvadoras de seus mandatos.
Mas
no meio do caminho tem uma baita crise econômica, trazendo ampla desorganização
econômica, social e política, podendo se desdobrar em várias alternativas.
Como
Temer está enfrentando a borrasca?
A
ofensiva neoliberal esbarrou em um problema lógico.
Precisa
contar com a desordem geral, a falta de perspectiva para apresentar as
propostas salvadoras, que consistem na redução radical do papel do Estado.
Aliás, precisa aproveitar o estado de desorientação geral para ser bem
sucedida.
No
entanto, só se conseguirá sair da crise com uma intervenção decidida do Estado,
através dos investimentos públicos e de um amplo envolvimento dos bancos
públicos comandando o processo geral de renegociação dos passivos de empresas e
pessoas físicas.
O
jogo consiste em ir até às últimas instâncias com o desmonte, através da
implementação de medidas irreversíveis. Mas como administrar a crise, sem criar
um caos de tal ordem que abra espaço para aventureiros?
O
pacote contra a crise anunciado por Michel Temer é de um ridículo, que nem a
pós-verdade da mídia conseguiu disfarçar. Fizeram a xepa, abrindo as gavetas da
Fazenda e do Planejamento e retirando de lá propostas irrelevantes.
Qual
o sentido de apresentar como grande saída contra a recessão a diferenciação de
preços para compras à vista e por cartão, ou a redução em um ponto da multa do
FGTS (https://goo.gl/PCkoL3)?
Só
a paixão repentina do Estadão por Temer para encontrar alguma eficácia nesse
pacote e tratar essa bobagem como “uma boa surpresa” (https://goo.gl/9eIklw),
algo que nem a Globo ousou endossar.
Considerações
parciais
Esses
são os dados do momento.
Por
outro lado, o agravamento da crise produzirá um sentimento cada vez maior de
urgência para a busca de saídas. Dependendo das circunstâncias, poderá levar ao
entendimento ou ao endurecimento final do regime.
O
grande problema desses personagens fakes do Brasilguai é a incapacidade total
de entender o dinamismo dos processos sociais, políticos e econômicos. Assim
como a parte mais superficial do mercado financeiro, esses personagens projetam
o futuro a partir dos dados do presente, sem nenhuma sofisticação analítica
para perceber a dinâmica dos processos.
Vamos
a alguns exercícios simples de futurologia
1. Ministério Público e Judiciário
Daqui
a alguns anos o mundo político estará pacificado. Seja qual for o partido no
poder, ou mesmo uma ditadura, a reação será o embate com o MPF e o Judiciário,
pela simples razão de que nenhum sistema político conseguirá funcionar
minimamente com a margem de arbítrio conquistada pelo MPF, Tribunal de Contas e
outras instituições do funcionalismo público. Em caso de ambiente democrático,
não haverá o embate direto, mas o estrangulamento orçamentário gradativo e as
restrições aos salários e vencimentos da categoria. Será o fim da era dos
concurseiros. Em caso de ditadura, basta bater a bota para colocar os bravos
para correr.
2. Ascensão social
O
que ocorrerá com essa multidão que ascendeu socialmente, que conquistou comida
na mesa e filhos nas universidades? Aceitará passivamente o recuo para as
profundezas da miséria? É evidente que não, o que acarretará distúrbios
populares cada vez mais intensos.
3. A Lava Jato
Na
Itália, quando a opinião pública se deu conta do estrago produzido na economia
pelas Mãos Limpas, a operação morreu. A destruição da economia formal abriu
espaço para um crescimento sem paralelo da máfia, que hoje domina perto de 30%
da economia italiana. O que ocorrerá com o aprofundamento da crise, quando cair
a ficha que não foi a corrupção, mas o álibi da corrupção fornecendo os
instrumentos para uma destruição consciente e antinacional da economia pelo
MPF?
4. Os movimentos sociais
Na
era Lula-Dilma os movimentos sociais foram institucionalizados. Passaram a
acreditar no jogo democrático, nas ações visando legalizar terras devolutas e a
pressionar por políticas públicas. O que ocorrerá com eles se passarem a ser
reprimidos pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas?
5. As Forças Armadas
No
momento, comportam-se profissionalmente. O modelo de confronto, no entanto,
demandará cada vez mais sua intervenção. Como reagirão os militares se
novamente colocados como guardiões do regime, em um jogo em que os principais
atores civis e públicos estão envolvidos em suspeitas de corrupção ou pensando
exclusivamente em seus interesses corporativistas? Continuarão aceitando as
ordens passivamente?
Enfim,
são perguntas óbvias e grandes desafios analíticos para personagens públicos
absolutamente medíocres, a pior geração de burocratas em um país em que a
burocracia pública, em outros tempos, se constituía no principal instrumento de
modernização. Apenas do papel didático da crise se poderá esperar alguma surpresa.
E temo não ser surpresa boa.
http://jornalggn.com.br/noticia/xadrez-da-tacada-final-do-golpe-da-constituinte#.WFdGr5-1KiM.twitter
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