Terra,
capital e trabalho compõem a clássica tríade dos fatores de produção que
embasam as análises e cálculos econômicos desde a Economia Política, não
havendo, portanto, atividade econômica que prescinda da combinação destes
fatores. Na atual conjuntura de mudanças que se abate sobre o Brasil e o mundo
muito tem se falado dos movimentos do capital e seus impactos sobre o trabalho.
Entretanto, a questão da terra – tanto rural quanto urbana – é pouco discutida,
apesar de ser peça-chave para a compreensão da dinâmica capitalista
contemporânea.
Além
de ser a guardiã de riquezas imateriais e tradições culturais, a terra possui
relação direta com três dimensões fundamentais da soberania nacional:
alimentar; hídrica; e energética. Todas elas encontram-se sob ameaça em função
das recentes medidas tomadas pelo governo ou de outras em discussão no
Congresso Nacional. Até o momento, o maior ataque foi a entrega do Pré-Sal. Mas
a venda do patrimônio e das riquezas nacionais segue com o projeto de liberação
das normas que versam sobre a venda de terras para estrangeiros.
A
legislação brasileira em vigor sobre este tema, a Lei 5.709/1971, impõe limites
à compra de terras por estrangeiros, inclusive para empresas brasileiras com
controle acionário estrangeiro. A Constituição de 1988 tratou da matéria – em
seu art. 190 – mas ela nunca veio a ser regulamentada, dada a complexidade do
tema e da multiplicidade de interesses em jogo.
Anos
mais tarde, em 1998, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu parecer que
reinterpretou a orientação da lei de 1971 e abriu a possibilidade de compra de
terras brasileiras por empresas nacionais com controle estrangeiro. Este
entendimento veio a ser revisto em 2010, por solicitação do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e resultou em novo parecer da AGU que
retomou as restrições da comercialização de terras para estrangeiros no país.
A
regulamentação da questão via atualização da legislação está em discussão no
Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei (PL) 2.289/2007, ao qual
encontram-se apensados outros PLs, dentre eles o PL 4.059/2012, que propõe a
liberação quase que irrestrita da aquisição de imóveis rurais a estrangeiros,
pessoas físicas ou jurídicas. O PL de 2012 foi destacado como uma das
prioridades da Frente Parlamentar Agropecuária e apresentado ao presidente
Michel Temer, ainda na condição de interino, como uma das questões em
negociação com a bancada ruralista na negociação do impeachment. Atualmente ele
encontra-se em regime de urgência para votação na Câmara dos Deputados.
O
interesse do atual governo em regulamentar e ampliar a presença de estrangeiros
nas operações de compra e venda de terras no Brasil não se vê descolado de
movimentos contemporâneos nos mercados globais de terra, os quais têm sido
chamados de land grabbing.
Devido
a conjunção das crises econômica, hídrica, climática, energética e alimentar,
desde os anos 2000 e mais intensamente após 2008, a busca por terras cresceu em
todo o mundo. Dados do Banco Mundial mostram que, antes de 2008, a
comercialização global de terras crescia em média 4 milhões de hectares por
ano. Entre 2008 e 2009, foram mais de 56 milhões de hectares agrícolas
comercializados, sendo cerca de 70% concentrados na África.
Estudos
sobre a América Latina e o Brasil apontam na mesma direção. Dados do Incra de
2008 (anteriores ao período de maior intensificação da corrida por terras)
apontam que estrangeiros detinham cerca de 34 mil imóveis rurais no país, sendo
34% detidos por pessoas jurídicas. Os 34 mil imóveis somavam à época 4.037.667
hectares de terras, sendo mais de 83% classificados como grandes propriedades
(acima de 15 módulos fiscais). Os dados são, contudo, imprecisos, em função das
dificuldades de produção e disponibilização de informações territoriais por
parte do Incra e da relação deste com os cartórios que registram as informações
de posse. Soma-se a isso toda a sorte de manobras que sempre envolvem laranjas
e grileiros.
A
expansão das fronteiras agrícolas ou a reconfiguração dos espaços rurais têm
sido marcadas pelo cultivo de commodities e pelo advento das chamadas flex
crops, plantios flexíveis, que tanto servem à alimentação ou à produção de
biocombustíveis, como é o caso da cana-de-açúcar.
A
produção de alimentos (food), fibras/ração (fiber/feed), floresta (forest) e
combustível (fuel) – os 4 Fs em inglês – sintetizam o caráter da agricultura de
exportação, diretamente associada ao capital internacional e à corrida mundial
por terras.
Além
da produção primária, o mercado de terras torna-se rentável pelo
desenvolvimento de outras partes da cadeia produtiva das commodities e atrai
empresas de maquinário agrícola, pesticidas, infraestrutura em geral,
empreiteiras e construtoras de estradas e hidrovias.
Acrescenta-se
a estas dimensões produtivas, o aspecto da especulação, propriamente
financeiro, que hoje é componente fundamental do setor agrícola.
Tradicionalmente
tida como um ativo pouco líquido, bancos, fundos de pensão e outros agentes
financeiros têm tido na terra fontes rentáveis para seus investimentos. Outros
atores e interesses que têm tido protagonismo nas transações comerciais de
terra no Brasil incluem capitais do próprio setor do agronegócio; capitais de
setores sinérgicos e convergentes no agronegócio; capitais não tradicionais no
agronegócio como empresas de petroquímica, automobilística, logística e
construção; capital imobiliário em resposta à valorização das terras; Estados
ricos em capital, mas pobres em recursos naturais; fundos de investimento;
investimentos em serviços ambientais e empresas de mineração e prospecção de
petróleo, conforme mapeamento de WILKINSON, REYDON e Di SABBATO, 2012.
A
abertura de nosso mercado de terras a estrangeiros, pessoas jurídicas e até
mesmo Estados nacionais, têm consequências drásticas para o país. O ataque à
soberania é somente um dos aspectos. Ressalta-se, ainda, os potenciais impactos
desta abertura sobre a dinâmica de preços das terras do país.
E
ainda as pressões sobre a agricultura familiar e a reforma agrária, indígenas,
quilombolas e outros segmentos de povos e comunidades tradicionais, com
reflexos diretos sobre a produção de alimentos saudáveis e os direitos das
populações do campo. Por fim, destaca-se a reprodução de um dos maiores
mecanismos de perpetuação da desigualdade no Brasil, a concentração da terra,
que é também concentração de riquezas e poder.
Nota
- WILKINSON, John,
REYDON, Bastiaan e Di SABBATO, Alberto. Concentration and foreign ownership of
land in Brazil in the context of global land grabbing. Canadian Journal of
Development Studies/Revue canadienne d’études du développement. Vol. 33, nº. 4,
2012, p. 417-438.
https://desabafopais.blogspot.com.br/2016/12/a-venda-de-terras-ao-capital-estrangeiro.html
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