A
marcha acelerada da insensatez avança sobre terra arrasada, a prepotência
escala e a Justiça politiza-se com ardor e desfaçatez.
E
me vem à mente um largo período da história italiana do século passado. A
Itália é Estado nacional há menos de meio século e em 1918 acaba de sair de uma
guerra, a primeira mundial, que matou 600 mil cidadãos ainda incertos quanto à
sua nacionalidade.
Um
ex-socialista, cabo da infantaria durante o conflito, funda um jornal em Milão
e inventa o fascismo, movimento destinado a se tornar partido com grande
rapidez, ao explorar, sobretudo, recalques e ambições pequeno-burguesas. À
sombra de uma ideologia aparentemente nova, de fato vetusta por ser própria das
almas complexadas, forma-se aos poucos a Marcha sobre Roma, que levaria
Mussolini ao poder.
Dino
Risi, um dos grandes cineastas do neorrealismo, realizou um filme extraordinário
intitulado, justamente, La Marcia su Roma, interpretado por Vittorio Gassman no
papel de um pretenso espertalhão, malogrado no seu oportunismo, e Ugo Tognazzi,
campônio bronco, embora capaz de instantes de lucidez. Ambos representantes de
uma humanidade provinciana e ignorante, pronta a se agregar à Marcha na busca
de uma espécie de revanche, a ocasião de ouro da afirmação.
Não
faltará, ao longo da rota a partir dos mais diversos recantos na direção da
capital, a passagem pela casa de campo de ricos senhores, os quais, em relação
à Marcha, mantêm uma posição cautelosa sem deixar de ficar clara sua adesão, se
conveniente. Saio do cinema e entro na história.
A
Marcha alcança as portas de Roma e os generais cercam o rei, querem barrar a
entrada da turba. “Basta um canhonaço para botá-los em fuga”, afirma o general
Facta, comandante do exército. “Deixe-os entrar”, diz o soberano. E este, daí
em diante, não seria o único pecado de Vitor Emanuel III.
A
malta desfilou pelas ruas da Cidade Eterna, e na frente vinham Mussolini e seus
três lugares-tenentes, os quadrunviri, a incluir o chefe. Trilussa, poeta
romano, escrevia fábulas morais em dialeto, muitas delas traduzidas para o
português com extrema felicidade por Paulo Duarte, que tinha Trilussa como um La
Fontaine moderno. De fato, vercejava a respeito de animais que agem como o
bicho-homem. No caso, entretanto, falou do Mussolini, e o viu de fraque,
polainas e as meias furadas.
O
rei não hesitou em nomeá-lo primeiro-ministro e o escolhido assumiu com a
maioria parlamentar ao jurar sobre a Constituição que rasgaria depois de dois
anos, em 1924. Antes ordenara o assassínio de Matteotti, líder socialista e seu
principal opositor. Em seguida, fechou o Parlamento, fundou a ditadura do
partido único, o Fascista, e passou a se chamar Duce, o dux da antiga Roma.
Nos
seus discursos, referia-se a si próprio na terceira pessoa, mais ou menos como
Pelé, impôs o uso da camisa preta, a preferida de Sergio Moro, ao menos aos
sábados, censurou a imprensa e obrigou os militantes do partido a vestirem
uniforme de feitio discutível, de vago gosto circense, em proveito das
gargalhadas dos lordes londrinos.
No
poder por 23 anos, absoluto por 21, a se incluir o estertor da República de
Salò, Mussolini foi fuzilado em meados de 1945 por guerrilheiros comunistas
quando fugia a caminho da Suíça em companhia da amante.
Os
cadáveres de ambos, juntamente com mais 11 de chefões fascistas, acabaram
pendurados de cabeça para baixo em uma bomba de gasolina de uma praça milanesa.
Por que me ocorre relembrar esse passado?
Porque
a tibieza de Vitor Emanuel III entregou a Itália a uma ditadura longeva e
amiúde celerada, capaz de aliar-se a Hitler, a introduzir as leis raciais,
empregar gás na guerra colonial da Etiópia, prender em campos de concentração
os opositores que não conseguiram se asilar no exterior.
O
golpe em andamento no Brasil de 2016 tem suas peculiaridades, adequadas a um
país de 500 anos que padeceu três séculos e meio de escravidão e no qual a
casa-grande e a senzala continuam de pé. Vale acentuar que o fascismo era
nacionalista, enquanto o governo imposto pelo golpe é francamente entreguista.
De
todo modo há similitudes. Em primeiro lugar, a tibieza, que assim chamo para
não recorrer a palavras mais fortes. Faltou quem se dispusesse a convocar a sua
artilharia. Por que não o fez? Em nome de quais conceitos e princípios? Em nome
de um bom comportamento que os inimigos repudiam?
Insisto
na minha convicção de que Dilma Rousseff, no lance final do impeachment, ao
falar em sua defesa no Congresso que a desrespeitava, e com ela seus eleitores,
em lugar de expor o óbvio deveria manifestar seu desprezo pelos golpistas e
passar a ler, a bem do povo brasileiro, a ficha criminal de cada um dos seus
acusadores.
Lula,
então. No momento busca contato esclarecedor junto às populações nordestinas.
Entendo que teria de zarpar muito antes, começo do ano passado, desde o momento
em que a estratégia golpista estava perfeitamente desenhada e definido seu
objetivo final: a destruição do Partido dos Trabalhadores e de seu líder.
Tratava-se
de deter a marcha da nossa burguesia, mínima de tão pequena do ponto de vista
moral e intelectual, dos oportunistas e dos beócios. Não houve quem o fizesse.
Creio que a artilharia de Lula tenha muito mais poder de fogo do que ele
próprio imagina.
Vivemos
agora o marasmo que talvez pudesse ter sido evitado. Vivemos a ditadura da
casa-grande, certa da sua hegemonia absoluta, e por ora satisfeita com o
serviço prestado por uma quadrilha no comando do País à deriva. A maioria dos
brasileiros é a vítima ignara de tanto descalabro. Impotentes os cidadãos em
condições de se aterem aos ditames da razão.
Sofremos
uma espécie de neofascismo, sem dux e sem outro projeto senão aquele de
assegurar a supremacia incontestável de quem de fato manda há 500 anos. Neste
barco reacionário faltam timoneiro e uma tripulação capazes de escapar ao
naufrágio. Mas não basta para alimentar esperanças democráticas.
Como
observa Fábio Konder Comparato, entrevistado nesta edição, a crise econômica
recrudesce e o desastre da marcha dos insensatos precipita com ela. A razão, no
entanto, não avaliza o “quanto pior, melhor”. E não adianta, está claro,
confiar na compreensão do mundo.
Sabe-se
perfeitamente nas grandes capitais o que acontece no Brasil de hoje, e um
jornal alemão chega a recomendar aos seus leitores que deixem de assistir
seriados policiais dos EUA para acompanhar, com diversão bem maior, o
desenrolar do golpe brasileiro.
O
mundo, quando muito, nos considera exóticos e peculiares, primitivos, e ali
alguns poderosos se agradam com as benesses ofertadas aos seus bolsos pelos
astronômicos juros aqui praticados. É a farra prometida ao capital estrangeiro
e aos rentistas nativos, fabricantes de dinheiro em espécie.
Os
ativistas do neoliberalismo se regozijam com a perspectiva, e nem se fale de
Tio Sam, muito mais presente por trás do golpe do que se supõe. Envolvido até a
cartola listrada.
Além
de tudo, os nossos graúdos gostam de ser súditos do império. Onde assenta um
resquício de esperança democrática? Haveria de ser a Justiça. Pois no Brasil
fascistoide a Justiça simplesmente não existe.
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