Imaginem
a cena: navegadores astecas chegam à Espanha, matam milhares de pessoas,
sequestram e assassinam o rei, roubam todos os artefatos em ouro e prata e
derretem tudo, e estupram as princesas, com as quais têm filhos. Como eles
seriam chamados? Certamente “bárbaros”, “monstros”, “assassinos”. Pois foi
exatamente isso que os espanhóis fizeram no México e no Peru em nome de Deus e
da coroa, mas são chamados “conquistadores”, “descobridores”, “colonizadores” e
até “heróis”.
A
história da América é também uma história dos eufemismos, de como as palavras
escolhidas para definir o que de fato aconteceu após a chegada dos europeus
foram importantes para forjar uma versão oficial, mais “nobre”, de uma matança.
Pinçados a dedo, estes vocábulos são a prova viva de como a história é narrada
sob a ótica dos vencedores: a língua foi utilizada como instrumento de poder
para subjugar todo um continente.
Hernan
Cortés (1485-1547), o “conquistador da América”, protagonizou um banho de
sangue no México, mas é tido como “herói” na Espanha, onde se tornou até efígie
de cédula na época das pesetas. Era, na verdade, um saqueador que roubou todo o
ouro dos astecas, uma civilização evoluída que conhecia inclusive a escrita.
Quando entrou em Tenochtitlán, a cidade sagrada dos astecas, o primeiro que fez
foi acorrentar os pés do imperador Moctezuma, o que lhe causou “não pouco
espanto”, nas palavras do próprio Cortés.
Moctezuma
acreditava que a chegada dos espanhóis era a concretização das profecias sobre
o retorno do deus Quetzalcóatl, e não opôs resistência. Passados alguns meses,
os chefes astecas foram convencidos a fazer um grande desfile com todo o povo
ricamente paramentado, como era de seu costume fazer e como se estivessem a
sós, sem visitantes. Foram então chacinados pelos “descobridores”.
“Começaram
a cortar sem nenhuma piedade, naquela pobre gente, cabeças, pernas e braços, e
a estripar, sem temor a Deus, uns partidos pela cabeça, outros cortados ao
meio, outros atravessados pelas costas; uns caíam logo mortos, outros fugiam
arrastando as tripas até cair. (…) E não contentes com isso os espanhóis foram
atrás dos que subiram ao templo e dos que se esconderam entre os mortos,
matando quantos podiam estar à mão. O pátio ficou com grande lodo de intestinos
e sangue que era coisa espantosa e de grande lástima ver tratar assim a flor da
nobreza mexicana que ali faleceu quase toda”, narra um cronista da época, Juan
de Tovar, no Códice Ramirez.
Como
se chama isso? “Conquista” ou “genocídio”? Morto Moctezuma a pedradas pelos
seus próprios súditos ou a punhaladas pelos invasores (as versões variam), os
espanhóis são derrotados pelos astecas em seguida. Mas Cortés e seus homens se
organizam para voltar à carga. Cortam a água potável que chegava a Tenochtitlán
por um inovador aqueduto e também a comida. Famintos e sedentos, os mexicas
acabam derrotados em nova chacina e o último senhor asteca, Cuauhtémoc, é
torturado e depois enforcado. Calcula-se que pelo menos 100 mil índios morreram
durante a “conquista”; do lado inimigo, entre 50 e 100 espanhóis apenas. Um
massacre.
Com
Francisco Pizarro (1476-1541) no Peru não foi diferente. Chegando a Cajamarca,
logrou capturar o imperador Atahualpa após este se negar a reconhecer a Bíblia
(!). O inca propôs então encher de ouro e de prata o quarto onde estava preso
duas vezes em troca de sua liberdade. Pizarro aceitou e recebeu o resgate (84
toneladas de ouro e 164 de prata), mas, como qualquer sequestrador sem palavra,
ordenou a execução de Atahualpa, estrangulado. Os tesouros roubados pelos
espanhóis do Peru foram ainda mais valiosos do que os saqueados por Cortés no
México.
O
mais impressionante, para mim, foi descobrir que tanto Pizarro quanto Cortés
tiveram a desfaçatez de, ainda por cima, se unirem e terem filhos com as princesas
dos impérios que destruíram. Os únicos filhos conhecidos de Pizarro, que chegou
com 57 anos ao Peru, nasceram de duas princesas incas: a primeira, Quispe Sisa,
filha do imperador Huayna Capac, e a segunda, Cuxirimay, viúva do próprio
Atahualpa. Cortés engravidou três filhas de Moctezuma. Uma delas, estuprada
pelo espanhol, rejeitou a criança que nasceria, Leonor Cortés de Moctezuma. Um
prato cheio para Freud…
Que
palavras, portanto, saem na real dessa história? “Tortura”, “assassinato”,
“sequestro”, “roubo”, “estupro”, “chacina”. Nenhuma delas gloriosa. De todos os
cronistas da “descoberta” da América, o único que foi honesto em nomear o que
houve por seu verdadeiro nome foi o frei Bartolomeu de las Casas, que sempre
falou em “tragédia”, “destruição” e “história sangrenta” em suas obras e jamais
as beneficiou com qualquer adjetivo louvável.
Para
o linguista Marcos Bagno, professor de Línguas Estrangeiras e Tradução da
Universidade de Brasília, o melhor termo para definir a chegada dos europeus a
nosso continente é “invasão”. Eu conversei com ele sobre o tema.
Socialista Morena – Falar em “colonização”, “conquista”
ou “descobrimento” não é uma forma de edulcorar o que foi feito na América
pelos europeus?
Marcos Bagno – Sem dúvida. O discurso da História
oficial é o discurso do vencedor. Por exemplo, quando estudamos a História do
Brasil, falamos das “invasões” holandesas e francesas, mas nunca da “invasão”
portuguesa. O termo “colonização” é o mais sincero, porque significa exatamente
instalar-se nas terras dos outros, povoá-la e subjugar os outros, os donos da
terra.
SM – Se você tivesse que escolher
palavras para definir a chegada dos europeus à América, quais escolheria?
MB – Eu sempre me refiro à chegada dos
europeus no continente americano como “invasão”. O termo “descobrimento” é
absurdo, porque sugere que até então aquelas terras eram “ocultas” ou
“desconhecidas”. Repito: a narrativa é sempre a do vencedor. Os seres humanos
que aqui viviam anteriormente são considerados como de segunda categoria.
Somente com a chegada dos europeus é que começou uma verdadeira “civilização”
digna desse nome. Todo o passado dos povos americanos ancestrais é apagado, sua
história é riscada, assim como foram riscados da vida milhões de indivíduos,
massacrados no grande genocídio que foi a “conquista da América”.
SM – Há um movimento na África do Sul
atualmente de “descolonização”, ou seja, questionar personagens tidos como
“heróis”, mas que eram todo o contrário, assim como ocorre com os bandeirantes
aqui. Seria também possível descolonizar a linguagem?
MB – Existem diversas áreas dos estudos
da linguagem que se dedicam precisamente a questionar e a criticar o discurso
que impõe a ideologia dominante como a única possível. A análise do discurso, a
sociologia da linguagem, a linguística aplicada crítica, por exemplo, se
esforçam em demonstrar que não existe linguagem neutra, que todo e qualquer uso
da língua implica uma visão de mundo. Descolonizar a linguagem é possível,
tanto quanto desmasculinizar a linguagem.
SM – Como, em sua opinião, o poder se
utiliza da língua para dominar?
MB – Historicamente, o poder
simplesmente se valeu da repressão pura e simples, do genocídio, para impor sua
língua e, com ela, suas crenças e seus valores. As “conquistas” dos romanos,
por exemplo, apagaram da História centenas de povos que viviam na Europa
ocidental e dos quais hoje só temos vagas referências. E as línguas desses
povos também desapareceram para sempre, muitas delas sem deixar nenhum
vestígio. No período moderno, na chamada expansão marítima, as línguas dos
europeus foram impostas aos povos africanos, americanos e asiáticos submetidos
ao controle das potências coloniais. Hoje em dia, o predomínio quase exclusivo
do inglês como língua internacional reflete o poderio
econômico-político-militar-ideológico dos Estados Unidos. No interior de cada
país, de cada sociedade, há também uma nítida divisão social por meio da
linguagem: o estabelecimento de uma “norma-padrão”, inspirado nos usos das
elites e da literatura consagrada, é um modo de separar os que “falam bem” dos
que “falam mal” ou que simplesmente “não podem falar”. A linguagem como
instrumento de poder é um fenômeno tão antigo quanto a espécie humana.
SM – Todo este pensamento “dominante” a
partir do idioma está impregnado nas escolas e universidades. É possível mudar
isso?
MB – Muito dificilmente essa situação se
transforma. Só mesmo quando há alguma revolução social, alguma perturbação
radical da ordem estabelecida, é que os conceitos de “certo” e “errado” se
alteram. Pierre Bourdieu diz que só é possível haver uma “subversão herética”,
isto é, uma derrubada da doxa vigente e uma substituição de uma “língua
legítima” por outra quando há também uma transformação radical na sociedade. De
todo modo, nas escolas e universidades é possível questionar o discurso
dominante e propor pelo menos uma crítica dele.
SM – Em que setores da sociedade também
se nota o uso da língua como instrumento de poder?
MB – Em toda a sociedade, o tempo todo.
Nas relações mais íntimas, por exemplo, entre o poder masculino e o não-poder
feminino, a linguagem é instrumentalizada para definir os papéis e as
hierarquias. Assim também nas relações entre as etnias, as classes sociais, as
faixas etárias etc. A sociedade é hierarquizada e não se pode separar linguagem
de sociedade.
***
O
mais lamentável dessa história toda é quando a gente se dá conta de quanto
conhecimento fomos privados por conta da devastação proporcionada em nosso
continente pelos “conquistadores”… Menos mal que no México, país orgulhoso de
suas raízes indígenas, não há um só monumento a Cortés, ao contrário do Peru:
na praça principal de Lima há uma estátua de Francisco Pizarro e seus restos
mortais estão depositados na catedral da capital peruana. Igualzinho ao que nós
fazemos com os bandeirantes. A propósito, o adjetivo para definir os
bandeirantes é sanguinários, não “heróicos”.
Por Cynara
Menezes. Blog Socialista Morena
http://www.socialistamorena.com.br/a-lingua-como-instrumento-de-poder/
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