Marcado
para segunda-feira, o julgamento de Eduardo Cunha marca um episódio que exige
mais do que um minuto de reflexão.
Ninguém
tem o direito de questionar a punição de Cunha, com base em provas
indiscutíveis, sustentadas por várias testemunhas e documentos, inclusive
internacionais.
A
questão é outra. A contrapartida para a investigação de Cunha foi o golpe
parlamentar que derrubou Dilma, um golpe à margem da lei – sem crime de
responsabilidade – que serviu como tiro de misericórdia contra um governo
acuado, sob ataque desde a posse, em minoria no Congresso, mas com a
legitimidade dos 54,5 milhões de votos recebidos em outubro de 2016.
Sem
Cunha não haveria impeachment. Sua longa sobrevivência é um insulto aos
brasileiros. Só se explica pelo papel essencial que Cunha desempenhou na votação
de abril, passo indispensável para o golpe consumado na votação da semana
passada.
Vamos
olhar os fatos com a frieza necessária e avaliar a troca. Estamos falando de
mudanças negativas que, mesmo que possam vir a ser revertidas mais tarde, por
outro governo, terão um impacto profundo sobre várias gerações. O país perdeu
uma presidente que, com todos os erros que podem ser apontados – e não são
poucos – não pretendia entregar o pré Sal, nem enfraquecer o Minha Casa Minha
Vida, nem quebrar os programas sociais para abrir espaço ao setor privado.
Tampouco cogitava aprovar uma lei de teto de gastos que cria uma ditadura do
capital financeiro sobre a economia até 2037 – quando a maioria dos personagens
centrais da nossa vida pública de hoje já terá deixado o mundo dos vivos.
Manteve uma política externa que buscava a soberania, o fortalecimento dos
BRICS e do Mercosul, em vez de abaixar a cabeça para o grande irmão do Norte.
Dilma
chegou a cogitar uma reforma da Previdência, proposta errada, que escrevi neste
espaço que era comparável a um suicídio político. Mas suspendeu o processo
quando ficou claro que não teria apoio dos sindicatos. Também abandonou o
debate sobre leis trabalhistas pela mesma razão.
A
conexão entre o golpe contra Dilma e a investigação sobre Cunha é um desses
flagrantes que lembram os circuitos internos de TV que mostram o assalto a um
estabelecimento comercial, em todas as etapas, desde a chegada dos criminosos
para arrombar a porta até o momento de embarque da mercadoria roubada. É sintomático
que, apesar de tantas evidências, se faça o possível para esconder a ligação
entre as coisas. O que se pretende é apagar responsabilidades solidárias na
articulação que trabalhou para derrubar a presidente de qualquer maneira.
Fica
difícil dizer que uma articulação produzida em nome da moralidade foi fruto da
iniciativa de um político que tantos colegas definem como gangster – e nenhum
se atreve a corrigir essa definição. Embora já não houvesse a menor dúvida
sobre as provas existentes contra ele na Lava Jato, Cunha foi mantido em seu
posto enquanto podia providenciar os serviços necessitários para afastar Dilma.
Depois que entregou mercadoria exigida pelos adversários que articulavam o
golpe o STF autorizou que fosse aberto um processo contra ele.
Em
maio, quando era Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo entrou com um
mandado de segurança por “desvio de poder” contra Cunha. A tese, difícil de
negar, é que usou de suas atribuições para atender a um interesse particular,
sem ligação com interesse público. Você pode apontar um elemento subjetivo
nessa avaliação.
O
problema é que a cronologia dos fatos trabalha a favor do mandato e não contra.
Todas as denúncias contra haviam sido rejeitadas até o momento em que o PT
anunciou que iria votar contra ele no Conselho de Ética, formando uma maioria
contra o presidente da Câmara.
Teori
Zavaski rejeitou o pedido em 24 horas, mas colocou o tema para debate em
plenário. Na segunda-feira passada, o PGR Rodrigo Janot recusou as alegações de
Cardozo.
Pelo
momento da decisão – três meses depois da chegada do mandato ao STF, cinco dias
depois que a própria Dilma foi afastada e Temer tomou posse – era difícil
imaginar que se tomasse outra medida, que seria equivalente a fazer a roda de
acontecimentos tão graves mudar de direção, mesmo que fosse a opção correta. Na
segunda feira, três dias atrás, teria sido necessário confrontar – fora de hora
-- tudo e todos na articulação que derrubou Dilma, alegando que o processo
deveria ter sido interrompido no nascedouro. Lembrar que o criminoso era Cunha,
não Dilma. Mas não deixa de ser curioso registrar os argumentos de Janot.
Escrevendo
sobre um pedido que envolvia a fase inicial do impeachment, ele usa argumentos
próprios da fase final, após o voto de 61 a 20. Diz que é “improvável falar em
direito líquido e certo à nulificação de atos que [...] sucederam-se dentro dos
parâmetros da legalidade, com a participação colegiada de diversos outros
agentes, até atingimento do quorum plenário qualificado que endossou o julgamento
da denúncia pelo Senado Federal". Janot também desqualifica as acusações
contra Cunha alegando que “são basicamente reportagens jornalísticas correntes,
incapazes de demonstrar como o antagonismo político e o interesse da autoridade
coatora[...] foram determinantes para a obtenção do sim da Câmara como
requisito para o prosseguimento do processo”.
Embora
um mandato de segurança seja um instrumento que deve falar por si, não deixa de
ser curioso registrar que o PGR descarta uma denúncia com a alegação de que
suas acusações “são basicamente reportagens jornalísticas correntes”. Se havia
indício de crime, como se verificou até nos depoimentos ao Senado onde o mesmo
Cardozo denunciou uma conspiração para prejudicar Dilma no Tribunal de Contas
da União, o mais razoável era mandar que os fatos fossem investigados – no
tempo devido, de preferência -- para impedir que o fato fosse consumado.
O
debate sobre o impeachment irá prosseguir no STF e outros tribunais, a partir
de recursos novos preparados pela defesa de Dilma.
Os
jornais anunciam que em seu julgamento, nesta segunda-feira, Cunha deve ser
condenado. A verdade é que ele tem muito favores a cobrar, ainda. Mesmo porque
“Temer é Cunha”, como disse Romero Jucá, revelando a conexão entre o suiço e o
impeachment.
Apesar
disso, tenho certeza de que muitas pessoas irão festejar a provável condenação
de Cunha. Serão estimuladas a isso pela TV Globo e quem mais tiver interesse em
usar a punição de um condenado por provas infinitas para justificar o golpe
contra uma presidente sem prova alguma, apenas circo.
Ainda
que seja necessário festejar uma condenação por corrupção a partir de provas
que ninguém foi capaz de desmentir, o retrospecto é alto demais. Mostra que
Dilma foi derrubada por um mecanismo corrupto – num espetáculo de roteiro
definido e pretextos risíveis. Demonstra que a luta contra a corrupção atacou,
como prioridade, a democracia.
De
minha parte, recomendo um sucesso da juventude que lutava contra a ditadura e
ouvir Raul Seixas em Ouro de Tolo. Naquele país de 1973, tortura e execuções no
auge, a alta classe média sentia-se feliz com carro do ano e apartamento novo.
Olhando-se no espelho o poeta – a letra é de Paulo Coelho -- diz que deveria
sentir-se “alegre e feliz por morar em Ipanema depois de passar fome por dois
anos”. Revela que se sente um “grandessíssimo idiota” e diz que é preciso
duvidar daquela felicidade ilusória, produto de um pensamento único:
“Eu
é que não me sento no trono de um apartamento
A
boca escancara cheia de dentes, esperando a morte chegar”.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/09/cunha-e-troca-de-dilma-por-temer.html?spref=tw
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