A
demolição do Estado que abriga os interesses da população é a nova locomotiva
do Brasil em marcha à ré.
Estão
se fechando, mais uma vez, as portas do país ao povo brasileiro.
É
disso que nos falam os anúncios que fazem as bolsas subir e os editoriais
baixarem o tom.
Falam
de cruzar ferrolhos e trancas, erguer tapumes, barreiras, falam de cortes,
sacrifícios e retrocessos; falam em adiar, entregar e de chamar o ‘Choque’.
Aos
que povoam as bordas não será suficiente conter o curso.
Será
necessário recuar, adverte-se.
Não
há como manter o mínimo disponível, esse que carece de tão mais.
Não
há, justifica-se.
Por
vinte anos não haverá.
Faltarão
novos pratos à fome, novos leitos aos doentes, novas escolas às crianças, novos
amparos aos idosos, nova esperança aos jovens.
É
tudo o que a aliança da escória com a mídia e o dinheiro tem a propor para o
futuro da oitava maior economia da terra, segundo maior exportador de alimentos
do planeta, maior planta industrial do Ocidente em desenvolvimento.
O
vento frio de agosto fustiga o Brasil, de novo, em uma esquina histórica.
A
exemplo daquela enfrentada por Getúlio Vargas, há sessenta e dois anos, a dobra
seca cobra um esforço hercúleo de superação e reconstrução.
A
tarefa da resistência democrática só terá êxito engatada na repactuação de um
novo projeto de desenvolvimento.
Um
ciclo se esgotou; outro precisa ser erguido.
É
a hora das matilhas: foi assim em 32, em 54, em 64, em 88, em 2002...
A
gravidade desta transição se expressa na ruptura institucional liderada por interesses
que deixaram de lado o pejo e a focinheira para impor reformas que alteram o
pacto da sociedade, sem consulta-la.
Se
o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro mais forte.
A
usurpação regressiva avança a contrapelo dos ares do mundo.
A
supremacia global do neoliberalismo estrebucha.
As
notícias chegam à revelia do filtro midiático.
Dão
conta de um esgotamento imerso em capacidade excedente, comércio internacional
anêmico, ressurgências xenófobas, cinturões de ferrugem e legiões de
descartados que já flertam com salvadores da pátria pura.
Trump
pode perder, mas o trumpismo sobreviverá, sibila o establishment
norte-americano.
Estados
aparvalhados e uma epidemia de juros
negativos denunciam a eutanásia, não do rentista, mas do seu arcabouço.
Sobra
dinheiro especulativo no mundo: há US$ 13 trilhões enjaulados em juros
negativos.
A
busca de pastos frescos pode inundar o Brasil
--e não há nada mais perigoso do que isso na vida de uma nação, dizia
Celso Furtado.
Promover
a combustão do PT e da CLT , e permitir
que o câmbio dispare o tiro de misericórdia na indústria nacional, e dobre o
fastígio brasileiro em Miami, disso se
alimenta a fogueira na qual o
anacronismo pretende defumar o país para encaixotá-lo no esquife neoliberal.
Cinquenta
e quatro milhões e quinhentos mil votos da Presidenta Dilma ardem nas labaredas
de extinção de direitos e privatização de riquezas nacionais, imolados para que
os patos gordos da Fiesp continuem a deslizar em lagos e contas suíças, a salvo
de uma justiça tributária que sustente o investimento público e induza a
produção privada.
Lula,
Dilma e o PT , a exemplo de Getúlio em 54, subestimaram a necessidade de se
ancorar a luta pelo desenvolvimento em uma organização popular da envergadura
do estirão que interliga a CLT à Petrobrás, ao BNDES, à Eletrobrás, ao salário
mínimo, ao Fome Zero, ao Bolsa Família, aos PACs, ao Prouni, à soberania no
pré-sal, ao conteúdo nacional, ao Mercosul, ao banco dos BRICS, à valorização
real de 70% do salário mínimo...
A
resposta foi o cerco asfixiante das elites.
Do
Catete, Vargas só não saiu deposto porque decidiu entrar para a história
conduzindo a alça do próprio caixão. E ali perpetua uma influência ainda
inexcedível no imaginário popular.
Torniquete
de interesses semelhantes espremeu o ciclo Lula desde do seu início, em 3 de
janeiro de 2003, quando anunciou o programa Fome Zero.
A
simples menção ao termo maldito foi recebida com a sublevação da elite que não
queria se ver num espelho composto de 56 milhões de pobres (33,6% da população
então, conforme o Ipea), sendo 24,7 milhões de indigentes e mais de 30 milhões
de famintos e subnutridos.
A
segunda volta no torniquete veio em 2009, com a regulação soberana das maiores
reservas de petróleo descobertas no século XXI.
O
pre-sal foi corretamente entendido e direcionado pelo governo como o derradeiro
impulso industrializante do país, capaz de faze-lo crescer com empregos de
qualidade, produtividade e renda para financiar a universalização da cidadania
brasileira.
O
cerco se estreitaria de forma asfixiante em 2012, já no primeiro mandato da
Presidenta Dilma Rousseff.
A
senha da vez foi a tentativa de derrubar
spreads e juros, com a indução dos bancos estatais, e taxar operações para
impedir que o pernoite do dinheiro barato tomado lá fora, rendesse lucros
obscenos aos párias daqui e de fora.
A
busca de indulgencias no seu segundo mandato, com a deflagração de um ajuste
fiscal desastroso, longe de aplacar aguçou a crise: abriu de vez o flanco ao
assalto das matilhas até chegarmos neste agosto de 2016.
Reverter
as expectativas de longo prazo dos detentores da riqueza, reconduzir o dinheiro
aos trilhos da produção e do emprego não é tarefa técnica.
Desenvolvimento
é transformação, é superar velhas estruturas e criar outras novas, uma
audaciosa operação de economia política que não prospera sem um sujeito social
que a conduza.
O
enredo exige o discernimento engajado de amplas camadas para negociar os
conflitos e repactuações do caminho.
Nos
governos Lula e Dilma, 30 milhões de brasileiros saíram de pobreza extrema,
outros tantos ascenderam na pirâmide de renda.
Formam
hoje a maioria da sociedade.
Mas
ainda não o sujeito da própria história.
Hoje,
como ontem, o cacho de forças contrariadas pela vitória esmagadora de Getúlio
em 1950 --as de Lula em 2002 e 2006, e
as de Dilma, em 2010 e 2014-- preservou
intacta a supremacia de sua voz junto à opinião pública.
A
rigor, em todo esse período, a ubiquidade do jogral da elite só foi afrontado
por um veículo diário de marcada presença nacional: o jornal Última Hora, no
segundo governo Vargas, cuja tiragem chegou a 800 mil exemplares (a Folha,
hoje, não vende a metade disso).
A
solitária trincheira não existe mais.
Mas o cerco persiste ao Catete.
A
qualquer Catete que dentro tenha um representante do povo disposto a assumir a
tarefa que o mais mítico de todos eles deixou inconclusa.
Porém
agendada.
O
estampido e a carta testamento de 24 de agosto de 1954 ainda hoje ecoam a
esperança em um Brasil desenvolvido, soberano, justo e democrático que o país
nunca foi.
Mas
que poderá ser.
A
evocação desse repto varguista causa calafrios na alma dos golpistas de todos
os tempos – os de ontem e de agora.
A
cada estirão de conquistas populares o rebote conservador cuida de preveni-lo,
dobrando a aposta nas muralhas institucionais para fustigar os intrusos de uma
sociedade pensada para 30% da população.
Quando
os negros conquistaram a liberdade, o senhorio os expulsou para a miserável
existência periférica, apartada da riqueza fundiária, mantida intocada.
Quando
Vargas ameaçou fundir direitos trabalhistas a um projeto soberano de
desenvolvimento, o assalto que o levou à morte operou obstinadamente por uma
década até atingir seu intento no golpe de 1964.
A
democracia, e com ela o povo, uma geração de lideranças e conquistas foram
postos na ilegalidade, esmagados e banidos por mais de duas décadas.
Com
Lula e Dilma o armistício durou enquanto o crescimento permitiu conciliar a
política de expansão de consumo e crédito, com forte geração de empregos e
combate às desigualdade, com os interesses cristalizados.
Quando
o lubrificante fiscal minguou, a fricção progrediu rapidamente em conflito
aberto.
Esse
que catalisa novos e velhos adversários e recupera a bandeira sempre desfrutável da luta contra
a corrupção, vendida como requisito para outras reformas que na verdade se quer protelar.
O país real não cabe numa equação fiscal que
destina 8% do PIB ao pagamento de juros aos rentistas --e enfrenta a sublevação da Fiesp a uma
tributação justa e progressiva da riqueza.
A
‘purga’ emerge como fatalidade no monólogo de uma mídia que interdita o debate
de uma transição para a qual não existem respostas prontas.
Transição
de desenvolvimento é uma operação essencialmente política. Irrealizável , numa
chave popular, sem democracia ativa e Estado indutor.
A
motivação verdadeira do golpe em curso é justamente impedir que essa travessia
se dê no campo aberto da democracia, do voto e da rua.
A
opção é devolver a pasta de dente ao tubo,
reverter avanços sociais de dimensões épicas -- a exemplo da erradicação
da insegurança alimentar, que caiu de 10% da população para 1%, a da miséria,
que recuou para 2,5% e a do consumo de massa, que ganhou escala de um mercado
para caber no G-20.
É
preciso desmontar esse trunfo condicionador do desenvolvimento.
A
demolição do Estado que abriga os interesses do povo é a nova locomotiva de um
Brasil em marcha à ré.
A
mutação se completa transformando direitos em serviços vendidos a ‘preços
populares’, como quer o lobista da medicina privada lotado no ministério da
Saúde.
Tudo
o que não for mercado é corporativismo e gastança.
São
suspeitos todos os laços que podem induzir a um projeto compartilhado de nação.
Não
faltam colunistas a entoar a Marselhesa à universidade paga -- ‘os mais rico
devem pagar pelos mais pobres’.
Não
ocorre aos robespierres do cinismo cobrar impostos dos ricos para injetar
recursos a todos os serviços essenciais que só o Estado tem condições de
prover.
A
exemplo de outras vezes em que ferrolhos e trancas foram mobilizados, será
preciso colocar o pé na porta e forçar a dobradiça.
A
hora, porém, não é de heróis.
A
resposta ao golpe de agosto de 2016 deve ser buscada na superação do flanco que
se tornou ostensivo.
O
Brasil precisa do engajamento organizado do seu povo.
Mais
que a carta de 24 de agosto de 54, é
preciso ouvir o recado de Vargas aos
trabalhadores reunidos no estádio do Vasco da Gama, no Rio, no 1º de maio daquele ano.
O
povo brasileiro precisa assumir o comando do seu destino -- foi o que disse, em
outras palavras, um presidente em cerimônia de adeus.
Era
assim, também, que Celso Furtado se referia a um projeto de desenvolvimento
soberano e democrático.
E
é em torno desse repto colossal que a resistência ao golpe terá que cerrar
fileiras agora.
Vença
ou perca a votação do impeachment no Senado.
Chegou
a hora de se colocar o pé na porta e de uma vez por todas entronizar o país que
patina na soleira, do lado de fora do Brasil.
Foi
essa a evocação de Vargas, no discurso ao lado de Jango, três meses e vinte e
quatro dias antes de atirar contra o próprio peito para, quem sabe, dar tempo
ao povo de cumprir a predestinação abrigada em suas palavras.
Hoje,
como ontem, elas mantêm sua lancinante atualidade:
"A
minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda
não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos
e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades (...) Como
cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao
vosso sufrágio a força decisória do número. Constituí a maioria. Hoje estais
com o governo. Amanhã sereis o governo’ (Vargas, 1º de maio de 1954)
http://cartamaior.com.br/?/Editorial/Estao-se-fechando-mais-uma-vez-as-portas-do-pais-ao-povo-brasileiro/36612
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