O
advogado José Roberto Batochio, que se juntou à defesa do ex-presidente Lula,
afirma, em entrevista ao portal Conjur, que o Ministério Público inverteu a
lógica das investigações criminais neste caso: primeiro definiu Lula como
culpado, para depois buscar fatos que o incriminassem; “É uma perseguição com
conotação política, na qual não se investiga determinado ato atribuído ao Lula.
O que se investiga é a pessoa dele, procurando atos para incriminá-lo. Isto não
é legítimo”, avalia
No
Direito Penal e Processual Penal, parte-se da investigação de um ato criminoso
para punir o autor. Contudo, essa ordem de apuração foi invertida com relação
ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na operação “lava jato”. No caso, a
força-tarefa elegeu o petista como alvo, e busca a todo custo encontrar fatos
que o incriminem. Isso é o que afirma o criminalista José Roberto Batochio,
sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados, que, junto com Roberto
Teixeira e Cristiano Zanin Martins, comanda a defesa do líder do PT.
“É
uma perseguição com conotação política, na qual não se investiga determinado
ato atribuído ao Lula. O que se investiga é a pessoa dele, procurando atos para
incriminá-lo. Isto não é legítimo”, avalia, destacando que nenhum moralista
resiste a uma devassa feita em sua vida privada.
A
chance de combater essa distorção do sistema penal foi o que motivou Batochio a
se juntar a Teixeira e Zanin Martins. O que mais chamou a atenção dele até
agora foi o fato de o caso estar sendo conduzido pelo juiz Sergio Moro, titular
da 13ª Vara Federal de Curitiba, e não em São Paulo.
“Guarujá
é estância balneária paulista e não se confunde com sua congênere Guaratuba, do
litoral do Paraná. O mesmo se diga de Atibaia, onde se situa o imóvel rural em
causa, que não pode ser tomada por Atalaia, cidade do interior paranaense”,
conta, mencionado os locais onde os investigadores suspeitam que teriam
ocorridos crimes de lavagem de dinheiro oriundo de corrupção na Petrobras e
ocultação de patrimônio.
De
acordo com o advogado, está claro que existe um “sentimento de adversidade” dos
procuradores da República, policiais federais e do juiz Sergio Moro com relação
ao ex-presidente. E isso, a seu ver, mostra que os objetivos da “lava jato” são
tirar o PT do poder — algo que está bem próximo de ser atingido — e tornar Lula
inelegível no próximo pleito presidencial, em 2018.
Porém,
essas ilegalidades da “lava jato” vêm sendo referendadas pelos tribunais
superiores porque os magistrados “estão ouvindo a voz das ruas”, analisa o
criminalista. Por isso, não restou outra opção à defesa de Lula a não
serquestionar a falta de imparcialidade de Moro no Conselho de Direitos Humanos
da ONU.
Um
exemplo da gana juiz em punir o líder do PT está no aval que deu ao pedido do
MPF de grampear o celular de Roberto Teixeira e o telefone central de seu
escritório, o Teixeira, Martins e Advogados. “É absolutamente reprovável,
inaceitável e inadmissível a interceptação das conversas entre cliente e sua
defesa técnica. Isso não existe nem no USA Freedom Act”, criticou, mencionando
a lei norte-americana que legitima o atropelo de garantias individuais no
combate ao terrorismo.
Batochio
foi presidente do Conselho Federal e da Seccional paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil. StartFragmentFoi ele, aliás, o responsável pelo Estatuto
da Advocacia (Lei 8.906/1994), que assegurou diversas prerrogativas da
profissãoEndFragment. O criminalista demonstra algum pessimismo com o clima
punitivista que está em voga no Brasil. Em entrevista à ConJur, ele atacou a
glorificação de magistrados como Sergio Moro e Joaquim Barbosa, ministro
aposentado do Supremo Tribunal Federal, lamentou a disseminação da “pandemia”
da delação premiada e disse ser cansativo, mas necessário, lutar contra a maré
em defesa das garantias individuais.
Leia a
entrevista:
ConJur — Como o senhor
entrou na defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
José
Roberto Batochio – Sem ultrapassar os limites do que me é permitido pela ética
profissional revelar, uma vez que se trata de relação advogado/constituinte,
posso dizer que foi uma decisão pessoal do presidente Lula, a quem, aliás,
nunca se poderá negar o fato de haver sido o governante que promoveu a maior
inclusão social que nossa história registra em todos os tempos. Resgatou-se da
subnutrição toda uma geração de brasileiros da base da pirâmide. São neurônios
que trarão, no futuro, medalhas de ouro, prata e bronze, nas ciências, artes,
esportes etc. Constitui para mim uma honra desempenhar esse patrocínio.
Certo
dia, telefonou-me o colega que já vinha coordenando a defesa técnica do
ex-presidente e me informou dessa intenção de Lula e indagou-me se aceitaria a
tarefa. Aceitei.
Claro
que já tinha amplo conhecimento de que o ex-presidente e sua família estavam —
e estão — a sofrer, por motivação política, uma devassa sem precedentes, na
qual se inverte a equação do devido processo legal: as autoridades não
investigam um dado fato concreto, revestido de suposta ilicitude, para
responsabilizar seus autores como seria correto. Mas o MP inverte o que diz a
lei e escolhe um acusado para, depois, procurar os fatos. Devassam as pessoas
do ex-presidente e de seus familiares, a buscar, nesse intento e a partir de um
garimpo microscópico, qualquer fato ilícito que possa servir de argumento para
uma condenação criminal e sua consequente inelegibilidade.
Em
suma, aqui não se investiga um fato penalmente relevante, certo e determinado,
para se responsabilizar seus autores, como preconiza a lei, mas se investigam
biografias selecionadas com o escopo de se tentar encontrar qualquer episódio
incriminador… E, nesse propósito, nem mesmo as elementares regras
procedimentais de fixação de competência do juízo são respeitadas,
violentando-se, sem cerimônias, o princípio do juiz natural, garantido na
Constituição da República e inserido no conjunto de franquias que compõem o due
process of law.
ConJur – O senhor diz
que nas investigações sobre o ex-presidente Lula, houve uma inversão de
caminhos: em vez de pegarem o ato e levarem para a pessoa, pegaram a pessoa e
procuram o ato. Alguma pessoa resiste a essa revista íntima?
José
Roberto Batochio – Neste caso elegeu-se aprioristicamente um culpado, a pessoa
que se quer – por que se quer – incriminar. Dado o fato de que nenhuma conduta
delituosa que possa ser atribuída à sua pessoa foi encontrada, deliberou-se
submeter toda sua vida a um scanner investigatório, a uma ultrassonografia
contrastada para, nessa rigorosíssima exploração, se tentar deparar com algum
achado de relevância jurídico-penal. Nada feito! Nenhum ilícito se encontrou e nada se
provou. E atente para o fato de que
dessablitzkrieg que se assestou contra a
vida de Lula (contra quem nada de ilícito se comprovou) certamente não escapariam
muitos Catões da nossa República que, com cinismo e consciência hipotecada, se
travestem de acusadores moralistas…
Como
nunca houve o crime pelo qual se ansiava, resta agora aos Javerts a “bala de
prata”, é dizer, o escambo com delatores de plantão para, em derradeira e
desesperada tentativa, se fabricar algo incriminador. A proposta que se faz é
generosa e atraente: uma estória que incrimine o ex-presidente em troca de
liberdade e deliciosa fruição de parte do butim saqueado… Quem vai querer?
Restam poucos dias…
ConJur — A questão da
competência territorial é parte disso?
José
Roberto Batochio — É, sem dúvida alguma. A questão da deliberada inobservância
da competência territorial com o objetivo de se escolher um determinado e
rigoroso juiz (em princípio incompetente e suspeito) para julgar a causa do
ex-presidente é tão óbvia quão inaceitável.
Como
de comum conhecimento, os órgãos da jurisdição que se acham investidos de
competência em todo território nacional são apenas os Tribunais Superiores
(STF, STJ, TST etc.), mas, mesmo assim, não de competência originária na maior parte
dos casos e não de forma ilimitada, em qualquer matéria (ao TST, por exemplo,
está afeta a competência para julgar apenas conflitos laborais). Deixando-se ao
largo o caso dos tribunais de Justiça e regionais federais em sentido amplo, os
juízes de primeiro grau somente podem decidir dentro dos limites territoriais
de suas comarcas ou subseções judiciárias, isto segundo critérios
aprioristicamente estabelecidos nas leis do processo e de organização
judiciária.
Ora,
como regra geral o juiz criminal competente para conhecer e julgar determinado
fato apontado como delituoso é aquele que exerce jurisdição no local em que ele
ocorreu e não outro, remoto e com artificial “competência” para julgar até
mesmo assunto verificado em outra Unidade da Federação. Assim se passa, por
igual, na jurisdição civil, em que o réu deve ser demandado, em regra, no foro
de seu domicílio.
Há,
claro, exceções a essa regra, mas são realmente excepcionais situações de
prorrogação, as quais, todavia, não se fazem presentes nos casos que envolvem
imputações relativas ao apartamento “tríplex”, ao “sítio de Atibaia” e às
palestras contratadas a partir da sede do Instituto Lula, todos situados dentro
do estado de São Paulo (e não do Paraná).
O
juiz competente para julgar o caso ocorrido dentro dos limites territoriais de
sua jurisdição é denominado “juiz natural”, prévia, impessoal e abstratamente
determinado pelas leis e que se contrapõe ao “juiz de exceção”, aquele
escolhido a dedo para julgar uma causa específica ou pessoa determinada,
segundo os interesses ou as circunstâncias da ocasião…
Já
vai longe o tempo dos “tribunais de exceção”, de que foi triste exemplo o
“Tribunal de Segurança” do Estado Novo, ou o escandaloso desvio de competências
para afastar o juiz natural e substituí-lo por “julgadores especiais”, como
aconteceu com civis “inimigos do regime”, por prática de crimes “contra a
segurança nacional”, pelas Auditorias de Guerra, no período da ditadura militar
instaurada em 1964.
Se
é certo que o réu não pode escolher o juiz que deva julgá-lo, mais certo ainda
é que o juiz não pode jamais escolher o réu que queira julgar.Pelo menos no
Estado Democrático de Direito.
No
caso em apreço, temos o juízo da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, estado
do Paraná, região meridional do país, a pretender julgar fatos (envolvendo o
apartamento “tríplex”, o sítio e remuneração de palestras) supostamente
ocorridos no estado de São Paulo, mais precisamente nas comarcas de Guarujá,
Atibaia e capital de São Paulo, respectivamente. Isso mesmo sem existir
qualquer conexão ou elo com o tema “petrolão” (Petrobras), cuja cognição se
acha submetida àquele juízo paranaense. Como classificar tal hipertrofia
jurisdicional, anômala e sem causa legal, senão como afronta ao princípio
constitucional do juiz natural? Afinal, Guarujá é estância balneária paulista e
não se confunde com sua congênere Guaratuba, do litoral do Paraná. O mesmo se
diga de Atibaia, onde se situa o imóvel rural em causa, que não pode ser tomada
por Atalaia, cidade do interior paranaense…
Sem
quebra de respeito às autoridades que já se pronunciaram em sentido contrário,
essa inaceitável acromegalia funcional do juízo da 13ª Vara Federal do Paraná
configura escancarada afronta aos princípios constitucionais fundamentais,
garantidores das liberdades, que compõem o plexo normativo estruturante do
devido processo legal.
ConJur — Mas vocês
entraram com pedido de exceção de incompetência…
José
Roberto Batochio – De fato, opusemos a pertinente Exceção de Incompetência
objetivando fosse declinada a jurisdição para os juízos naturais, que são os
que abrangem os territórios jurisdicionais de Guarujá, Atibaia e São Paulo,
para os três temas em controvérsia e que tratam do “tríplex”, do sítio e da
remuneração de palestras à LILS, respectivamente. E ponha-se logo em destaque
que aforamos a exceptio declinatoria fori antes mesmo de instaurada eventual
ação penal já que, se o juiz impugnado é incompetente para a ação penal (que é
o principal), também fica impedido para decidir sobre medidas cautelares —
profundamente invasivas — que lhe são correlativas (que são o seu acessório
instrumental), vedada a decretação de prisões, de buscas, de quebras de sigilos
etc., que alcançam a privacidade e o status libertatis et dignitatis das
pessoas investigadas no feito que ele, ao cabo, não poderá julgar…
Para
impugnar essa nossa pretensão de remessa das investigações ao seu juiz natural,
os doutos e cultos procuradores da República paranaenses oficiantes naqueles
autos verteram argumentos que se esparramaram por nada menos que 70 laudas, nas
quais insistem na competência urbi et orbi da 13ª Vara Federal local,
argumentando com uma suposta e cerebrina conexão que existiria entre os três
feitos citados e os relativos ao assunto Petrobras que ali tramitam. Nada mais
equivocado. Não faz qualquer sentido se afirmar que todas as receitas auferidas
(recebimentos pecuniários) pelas empreiteiras (Odebrecht, OAS, Andrade
Gutierrez, Engevix, Camargo Correa etc.) tenham tido uma única e exclusiva
origem: Petrobras! Ora, são
conglomerados industriais de enorme envergadura, alguns deles multinacionais
com presença em 27 países, nas Américas, Europa, Ásia. Como então se construir
a estapafúrdia teoria de que todos os recursos financeiros dessas empreiteiras
só tenham advindo de uma única fonte, qual seja a petroleira brasileira? Pois
bem, nessa ordem de ideias quem quer que tenha recebido (que aqui não é
efetivamente o caso), ou seja acusado de haver recebido qualquer tipo de
contribuição eleitoral, remuneração, pagamento, salário ou valor de tais
construtoras, passaria a ser,
obrigatoriamente, beneficiário da alegada fraude contra a Petrobras… Logo,
co-autor ou co-partícipe de toda a suposta fraude… Isso é simplesmente
surrealista, ridículo. Tomemos o exemplo Odebrecht: do global de todas suas
receitas, o recebido por força de negócios com a Petrobras soma inexpressivos
quatro ou cinco (4% ou 5%) por cento do faturamento… E os demais 95% dessa receita, não se
destinaram a nada? Não serviram para pagar ou remunerar nada? Deste porcentual
de 95% nada foi destinado a lícitas contribuições eleitorais? A conta não
fecha… A aritmética está a desmistificar essa construção primária (refiro-me ao
argumento de que todo dinheiro das empreiteiras se resumia a pagamentos da
Petrobras) da conexão artificialmente fabricada para sustentar uma competência
que jamais existiu. Por isso que foram necessárias 70 páginas. Dir-se-ia:
direito curto, páginas longas…
ConJur — Nesse sentido,
os tribunais superiores estão se omitindo em relação ao fato de a vara de
Sergio Moro abarcar todos os casos?
José
Roberto Batochio – Certo é que poderiam — especialmente o STF — ter determinado
a remessa dos autos que tratam destes assuntos ao juízo
natural, quando dos desmembramentos determinados, mas a Corte Suprema se
limitou a ordenar a sua baixa “ao primeiro grau” porquanto inexistente
investigado com foro especial por prerrogativa de função. Não o fizeram
aludidos tribunais, contudo, deixando de restabelecer, concedidas as
necessárias vênias, a ordem constitucional violada, no que toca à observância
do devido processo legal, especificamente à franquia do juiz natural. Daí o
acionamento de órgãos internacionais de tutela de direitos civis e políticos e
de direitos humanos para restauração dos direitos violados.
Comenta-se
muito no meio jurídico que, de tempos a esta parte e em certas circunstâncias,
certos setores da Corte Suprema têm estado muito mais atentos à “voz das ruas”
que ao sentido estrito das normas reitoras da Lei Fundamental, que, aliás, é a
justa medida de todas as coisas. Não quero crer que assim esteja a acontecer.
Entendo que a única voz que o Judiciário deva ouvir, para todas as decisões,
seja a voz da Constituição da República Federativa do Brasil e a do comando das
leis que integram o ordenamento jurídico pátrio. Aliás, é de seu dever.
“Anseio
das ruas”, “vox populi”, “opinião publicada”, “soerguimento da turba multa”,
“histeria na rede social”, “concerto de acusadores e de suas associações de
classe com setores da mídia”, nada disso
pode transpor o limiar sagrado das cortes judiciárias e adentrar o templo de
Têmis. Cruzado esse Rubicão e a Justiça terá sido definitivamente expulsa,
pelas portas dos fundos… Nossos juízes são — e devem ser — infensos a qualquer
espécie de pressão ou ameaças de retaliações públicas através dos meios de comunicação
de massa (estas muito comuns quando ousam a coragem de, cumprindo a
Constituição, mandar libertar ou absolver acusados), pois que como assoalhava
Sobral Pinto em relação à advocacia (advocacia não é profissão de covardes), se
pode afirmar que julgar não é para impressionáveis ou temerosos.
Sobre
julgamentos ao influxo de paixões populares, a Historia é pródiga em tragédias,
em iniquidades, em horrores e barbáries. Definitivamente, a paixão das ruas não
se compatibiliza com a sobranceria e com a serenidade que devem presidir os
julgamentos civilizados, em que têm ingresso proibido a perseguição, o ódio, o
fundamentalismo, o messianismo e a “declaração de combate e guerra” ao que quer
que seja. Neles só cabem sobriedade, equilíbrio e imparcialidade e, quando não
redundar em injustiça, um pouco de humanismo e compaixão é sempre bem vindo…
Em
resumo, o que se busca nesta investigação não são privilégios e imunidades,
senão julgamento legal, justo, imparcial, afastado das paixões e preconceitos.
É pedir muito?
ConJur — Qual é o efeito
prático esperado dessa ida à ONU? O que o senhor acha que irá acontecer?
José
Roberto Batochio — A despeito de tudo que se concretizou em matéria de
agressões ao devido processo legal e violência contra o direito de liberdade do
ex-presidente da República (foi, grampeado, teve sua intimidade exposta pela
divulgação de diálogos íntimos, devassado em seus documentos e registros,
impedido de assumir cargo de ministro para o qual foi legalmente nomeado,
sofreu busca e apreensão em domicílios familiares e foi, por ordem de juízo
incompetente, conduzido à força às dependências externas da Polícia Federal
para depor), as cortes de Justiça brasileiras têm tolerado que esse estado de
ilegalidade perdure, prolongando-se no
tempo. Um magistrado apontado como suspeito e manifestamente incompetente
continua a dirigir, digamos assim, as investigações e a decretar medidas
ilegítimas que alcançam, de modo abissal, seus direitos básicos, fundamentais.
Sendo o Brasil signatário de tratados internacionais através dos quais se
obrigou a coibir práticas atentatórias aos direitos civis e políticos, bem como
violações aos direitos humanos, Diplomas estes que foram devidamente aprovados
pelo Congresso Nacional e passaram a integrar nosso ordenamento jurídico, é
lícito a qualquer do povo recorrer a esses órgãos internacionais, na busca de
providências que exortem o retorno à legalidade o país signatário que permitiu
tais ilegalidades em seu território. O Estado brasileiro está a ser notificado
para prestar informações sobre a denúncia de tais violações. Com estes
informes, o reclamo que tramita na ONU será instruído e, se aceito, será
julgado para o efeito de se declararem existentes (ou não) as violações
denunciadas, com as consequências censórias decorrentes. É bom registrar, com a
ênfase necessária, que tal pedido de providências não implica qualquer desdouro
ou desgaste à imagem das autoridades e do país; trata-se de um instrumento
jurídico disponível e de utilização mui frequente em democracias amadurecidas
de todos os Continentes, como, por exemplo, as da Europa Central e Ibérica, que
já tiveram países advertidos e foram chamados a fazer cumprir o compromisso de
respeito a esses direitos. Aguardemos.
ConJur — O senhor
considera a condução coercitiva uma espécie de detenção, não é?
José
Roberto Batochio – Sim, uma forma de privação de liberdade, de cerceamento do
direito de ir e vir, com brevíssima duração. Categorizemos o fenômeno para
deixar muito claro que no nosso sistema legal, em que não há prisão perpétua, o
gênero privação de liberdade por ordem de autoridade competente se compõe de
várias espécies: a definitiva decorrente de sentença condenatória passada em
julgado (cumprimento da pena), cuja duração vem declarada na sentença e no
respectivo título executório; as processuais (provisórias) como a decorrente do
flagrante delito; a preventiva, de duração não fixada mas que pode se estender
por meses; a temporária, que tem breve duração mas é passível de prorrogação; e
uma modalidade de supressão do direito de locomoção sui generis, de brevíssima duração, que foi
apelidada de “condução coercitiva”. Trata-se, sim, de medida de coerção física
sem previsão legal e que suprime a liberdade, logo, é detenção. Para os que
insistem em negar que esta modalidade de constrição corpórea priva de liberdade
o sujeito passivo ou “alvo”, gostaria de lembrar a verve ilustrativa de Leonel
Brizola, quando esgrimia com sofistas políticos que pretendiam negar-lhe as
mais claras evidências. Dizia então o brasileiríssimo e nacionalista
ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro: “se tem boca de jacaré,
dentes de jacaré, olhos de jacaré, couro de jacaré, patas de jacaré, rabo de
jacaré, vive nos rios e lagos ficando apenas com os olhos emersos e devora
peixes menores, só pode ser jacaré! Dê-lhe o nome que quiser, mas será sempre
jacaré!”…
Atenção,
porém; ao contrário das demais e anteriormente mencionadas, essa modalidade de
custódia não tem previsão no nosso ordenamento jurídico (a condução coercitiva
tratada no artigo 260 do CPP é outro instituto e pressupõe a recalcitrância
daquele que já foi anteriormente intimado para praticar determinado ato
processual), mas decorre de “legislação pretoriana”, é dizer, cuida-se de obra
exuberante de alguns membros do Poder Judiciário que se julgam com competência
para alterar a ordem jurídica, “legislando” sobre Processo Penal, que (ainda) é
tarefa do Congresso Nacional… Tempos
estranhos. Antes, na ditadura, eram os autoritários de uniforme que sepultavam
as garantias e liberdades insculpidas nas leis, para o que editavam os
famigerados atos institucionais, agora…
ConJur — No Brasil,
temos uma situação em que o principal líder popular está acossado, assim como o
presidente de um dos principais bancos do principal do país, porque um
criminoso citou o nome dele ao telefone. A operação “lava jato” é um projeto de
poder de seus protagonistas?
José
Roberto Batochio – Oportuna a indagação. A mim me parece temerário arriscar um
prognóstico assertivo, lançado não sobre dados empíricos, mas tão somente na
análise exploratória do subjetivismo dos personagens, à vista de seus atos e de
suas manifestações. Não me sinto seguro e habilitado a tamanha perigosa
especulação. Neste caso, a assertividade poderia representar temeridade. Abordando
o assunto apenas pela rama em caráter hipotético, o que se pode extrair é que
as aparências sugerem mais um deslumbramento de onipotência, um paroxístico
exercício de poder, um messianismo, um rigorismo de inspiração doutrinária
exótica (bom dia, Tio Sam!), em que não se detectam quaisquer compromissos ou
preocupações com os consectários macroeconômicos, laborais e sociais do
terremoto avassalador que engolfou gigantescas empresas brasileiras e derreteu
centenas de milhares postos de trabalho. Pode ser aquela visão do mundo que só
considera o que se situa aquém das cancelas, além, é claro, a própria imagem
pública. Pode-se cogitar, também, de mimetismo em relação à rica, estranha e
violenta sociedade americana…
Observe-se
que o exercício do poder incontido se auto-alimenta e, aquecido pela chama da
vaidade pessoal, tende ao infinito. Certa ocasião, o notório ex-delegado de
Polícia Federal, Protógenes Queiroz, afirmou que se deu conta do ilimitado
espectro da potencialidade de suas então funções quando teve a percepção de
que, com os instrumentos legais que aparelham a atividade investigatória e
persecutória no Brasil, “poderia prender até o presidente da República”. Tempos
passados desde essa manifestação, e nos deparamos hoje com anelos justiceiros
que acham que, em represália a decisões garantistas que lhes desagradam, podem
acuar moral e injustmente até ministro do Supremo Tribunal Federal…
Intolerável!
ConJur — A delação
premiada pode ser um instrumento de defesa?
José
Roberto Batochio – Conceitual e abstratamente, sim. Mas não na pulsante
realidade da defesa concreta e efetiva, inserida na ampla órbita traçada pela
Constituição da República. Ordinariamente, a delação premiada tem como
pressuposto básico a renúncia de direitos, mecanismos defensivos e garantias
essenciais (alguns dos quais, aliás, inabdicáveis), tais como o direito de
permanecer em silêncio (revogando-se aí o constitucional privilege against self
incrimination), o direito ao duplo grau de jurisdição, o direito de recorrer ou
de impetrar habeas corpus etc. Ora, como se poderia entender a abolição
casuística de todos os instrumentos legais de autodefesa e de defesa técnica e,
mesmo assim, se aceitar que essa supressão da defesa constitui um meio de
defesa? Trata-se de oxímoro.
ConJur — O que o senhor
acha das chamadas dez medidas contra a corrupção alardeadas pelo Ministério
Público Federal?
José
Roberto Batochio – Ao discurso do combate à criminalidade que a todos aflige —
que, se levado a efeito dentro de regras civilizadas e democráticas, garantidos
os direitos fundamentais do acusado, mereceria
apoio – o que se pretende é eliminar franquias irrenunciáveis, direitos
básicos dos cidadãos. Há propostas surpreendentes, para se dizer o menos, nessa
iniciativa de alteração legislativa de origem popular (o MPF fez colher as
assinaturas necessárias em todo país).
Iniciemos
pela mais gritante impropriedade, qual seja a convalidação da prova ilícita,
desde que produzida ou coletada de boa fé. O quer isso exatamente significar,
do ponto de vista da técnica legislativa, quando o que se lê do inciso LVI do
artigo 5º da Constituição da República é que “são inadmissíveis, no processo,
as provas obtidas por meios ilícitos”?
Pretende-se
revogar essa cláusula nuclear, pétrea? Será que a sensação de onipotência faz
crer superioridade até em relação à Lei das Leis?
Já
pelo prisma da realidade factual, o que precisamente significaria a aludida
“boa fé” do instrutor que recolheu ou produziu a prova “fora da lei”? O
torturador (e tomemos a tortura para obter confissão como exemplo extremo) dirá
que submeteu a afogamento o investigado confitente “por engano”, ou porque
estava a pretender “treiná-lo para provas de natação nas Olimpíadas do Rio de
Janeiro”? Ou que o “pau de arara” foi equivocadamente tomado por “barra fixa”
para exercitar o infeliz? Ou, ainda, o grampo telefônico autorizado era de um
terminal e acabou se escutando outro, “por engano” e aí se colheu a prova
inicialmente viciada que se converteu em legítima? Estamos a falar da tortura
física, mas que se dirá da psicológica ou “branca” em que se impõe o sofrimento
apenas com a utilização do dramático sistema carcerário do país para se
alcançar o resultado desejado?
Francamente…
Os
testes de integridade em candidatos ao exercício de funções públicas, o
planogoebbeliano de propaganda com estímulo à delação de colegas e usuários de
serviços, sob anonimato, soam déjà vu quando se revisita a história neste
conturbado século XX…
A
criminalização da fortuna a pretexto do combate ao enriquecimento ilícito de
quem exerce função pública (como fica aí o industrial que se elegeu Senador? E
o servidor público que herdou bens familiares geradores de renda?) Quais rendas
ou vencimentos? Os provenientes da remuneração pela função ou os de sua
atividade industrial? Qual o parâmetro da renda a ser cotejada com o
patrimônio? Pode ser o início de uma escalada que terminará, no futuro próximo,
com a criminalização de patrimônios granjeados por qualquer meio, seja ele qual
for…
Que
se dizer da supressão de diversos recursos da defesa ao argumento da celeridade
processual? Só faltou mesmo a proposta de suspensão ou extinção dohabeas
corpus, mas isto foi truculência do regime autocrático do passado, cujo ideário
parece estar a ser exumado. A prescrição da pretensão punitiva estatal também é
alvo de ataque na proposta. Como não é possível simplesmente extingui-la (a
prescrição), tenta-se sua desnutrição. Além dessas, se acrescem outras
propostas de medidas inaceitáveis e – muitas delas – inconstitucionais, tudo
coroado pela introdução de uma nova modalidade de prisão processual – mais uma
! – extraordinária e manejável para o fim de se localizar e reaver o produto
econômico da infração, e, assim, evitar que possa o investigado, entre outros
dispêndios, “financiar sua defesa”… Uma pérola!
ConJur — Sustenta-se que
só pode ser considerado culpado aquele que foi condenado por sentença
transitada em julgado. Mas como isso pode prevalecer se o Supremo mudou de
entendimento e permitiu a execução da pena antes do trânsito em julgado?
José
Roberto Batochio – O princípio da não culpabilidade (ou da presunção de
inocência) está expresso no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da
República, em que se lê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória. Acha-se no Título dos Direitos e
Garantias Individuais, cujo Capítulo I enuncia direitos que consubstanciam
preceitos imutáveis, mesmo pelo constituinte derivado e por meio de proposta de
emenda constitucional. Em suma, cláusula pétrea. Tudo muito claro e, como
enuncia a regra básica da hermenêutica, in claris cessat interpretatio. Sem
condenação criminal passada em julgado, portanto, nada de culpado, mas sim uma
pessoa constitucionalmente presumida inocente.
Parece-me
ao largo de qualquer questionamento o fato de que, se a Lei Máxima considera
inocente aquele contra quem não há sentença penal passada em julgado,
inconstitucional e inaceitável se mostra remetê-lo ao cárcere – presumido
inocente que é –, tenha embora decisão condenatória de segundo grau lavrada em
seu desfavor. É que, em tais circunstâncias, não está formado o titulo
executório da reprimenda. Tudo muito claro.
Ora,
ou se observa e se faz cumprir o preceito contido em seu corpo permanente como
imutável, ou se está a conspirar, abertamente, contra a Constituição a pretexto
de interpretá-la. É literalmente inacreditável que se possa, em nome de não sei
quais conveniências ou ruídos sociais, subtrair eficácia a preceito da Lei
Maior.
Tenho
e sempre tive o maior respeito pelos Poderes constituídos e, sobretudo, pelo
Poder Judiciário do meu país, em cujo vértice se acha o Supremo Tribunal
Federal. Deste, a missão precípua é a guarda e o zelo pela observância da
Constituição. Essas instituições sustentam o Estado Democrático de Direito que
conseguimos construir.
Não
posso aceitar, todavia, que a Constituição da República Federativa do Brasil
possa ser interpretada contra sua própria essência. Nem mesmo pelo STF ou por
quem quer que seja. Não há “ativismo”, “protagonismo” ou “pretorianismo” que
possa se invocar para justificar a perpetração desse grave ato de infidelidade
à ordem constitucional.
É
preciso se ter em mente que a Constituição é o que ela é, como expressão da
soberania de um povo, manifestada por seus legítimos representantes em
assembleia nacional constituinte, e não aquilo que os pretórios quiserem
arbitrariamente que ela seja, máxime contra sua letra e seus enunciados.
Já
se disse e já se escreveu no ambiente de determinada Corte que “a Constituição
é aquilo que nós dissermos que ela é”. Sofisma!
Quintessência da pretensão. A Carta Política não é um corpo sem alma, um
zumbi (hoje se dizwalking dead, não é mesmo? risos…) normativo, vagando à
procura de alma que gravite na órbita das percepções dos tribunais. A Carta é a
opção axiológica proclamada pelo povo.
Eis
porque soa incompreensível que a Corte Suprema possa, negando a Constituição,
mandar cumprir pena um presumido inocente e contra quem não há condenação penal
transitada em julgado. Não há argumentos que possam embaçar essa gritante
violação.
Nos
últimos tempos temos visto decisões da Excelsa Corte que, máxima vênia
concedida, mais que se afastarem do comando constitucional, com ele se mostram
em manifesta fricção.
À
vista do que se contém no artigo 2º da Constituição da República, no sentido de
que os poderes são independentes e harmônicos entre si, fica difícil entender
como o STF possa proferir decisões invasivas das competências reservadas ao
Legislativo e ao Executivo. Lembremo-nos de que, por decisão cautelar
monocrática, o Supremo sobrestou a posse de um ministro de Estado legitimamente
nomeado pela Chefe do Poder Executivo da União, no lídimo exercício de ato de
sua estrita e exclusiva competência…
Em
outra decisão recente, “decretou” a “prisão em flagrante” (e expediu mandado de
captura) de um Senador da República, em pleno exercício do mandato, impondo-lhe
prisão processual, quando o parágrafo 2º do artigo 53 da Carta dispõe que, após
a diplomação, o membro do Congresso Nacional não pode ser preso, salvo em
flagrante delito (que no caso, nunca houve) por prática de crime inafiançável
(que também não era o caso)…
Pior
de tudo é que o Senado Federal, intimidado e acuado pela opinião publicada, não
repeliu essa medida de força, que afeta suas mais básicas e elementares
prerrogativas institucionais de independência e autonomia. É de se lamentar.
Há
pouco, órgão fracionário da Excelsa Corte recebeu denúncia oferecida
peloParquet e fez instaurar ação penal contra excêntrico parlamentar da Câmara
Baixa, por crime de linguagem, ou, pelo menos, em razão de sua manifestação
verbal no recinto do Parlamento. O conteúdo da manifestação parece, de fato,
imprópria, inadequada e até execrável, mas, a despeito disso, achava-se o
deputado sob o pálio da imunidade parlamentar – modalidade liberdade de
expressão – nos exatos termos do que dispõe o artigo 53 da Constituição da
República. Ali se lê que o congressista é inviolável, civil e penalmente, por
quaisquer de suas opiniões palavras e votos. Fala-se aqui do princípio, não do
mérito do pronunciamento. É como sentenciou François Marie Arouet, o Voltaire,
“posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas hei de defender até
à morte o direito que tendes de dizê-las”.
A
liberdade de palavra – freedom of speach – é da essência do Poder Legislativo e
fundamental para sua missão institucional, não importa quão contundente,
inadequada e até estapafúrdia seja a locução proferida. Cabe à própria Casa a
que pertence o congressista adotar providências
disciplinares cabíveis, que podem chegar até à cassação do mandato, em
caso de abuso de prerrogativas. Assunto
Interna corporis, portanto.
Recorde-se,
ainda, decisão que determinou o afastamento de um parlamentar da presidência da
Casa a que pertence, e, de quebra, suspendeu o exercício do mandato que lhe foi
conferido nas urnas pelo povo, através do voto secreto, universal e direto… Não
discuto o mérito dos atos dos personagens, mas os princípios da independência e
autonomia, assegurados no comando constitucional. Será que, nesta hipótese, teria entendido a
Corte Excelsa que o artigo 319, VI, do Código do Processo Penal, nova redação,
se sobrepõe à norma constitucional que estabelece a independência dos Poderes?
Se
considerarmos o texto da Lex Legum e decisões como as que acabei de trazer, nos
daremos conta de que a República está a viver uma espécie de esquizofrenia, com
sinais trocados, que nos coloca bem longe do paradigma a que se referiu, com
franca admiração, Alexis de Tocqueville
quando discorreu sobre a democracia na América.
É
sempre bom rememorar e não faz mal repetir: não nos regemos pelo sistema da
common law e, por isso e sem qualquer concessão ao positivismo ortodoxo, a
referência que se impõe é a da norma constitucional, medida de todas as coisas.
Sua usual substituição pela autorreferência, é pecado funcional que compromete
o sistema e conspira contra a República.
Por Márcio
Chaer, Marcos de Vasconcellos e Sérgio Rodas, no portal Conjur
http://www.ceilandiaemalerta.com.br/batochio-mp-definiu-lula-como-culpado-para-depois-buscar-os-fatos/
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