Diego
Montón, da Via campesina, explica importância da Declaração dos Direitos
Camponeses para toda sociedade
O
governo boliviano apresentou à Organização das Nações Unidas (ONU) uma proposta
de Declaração de Direitos dos Camponeses em 2012. A ideia, construída durante
quase uma década, partiu de movimentos camponeses de todo mundo vinculados à
Via Campesina.
Em
entrevista ao Brasil de Fato, Diego Montón, integrante do Movimento Nacional
Campesino y Indígena da Argentina, membro da secretaria operativa da
Coordenação Latino-americana das Organizações do Campo Cloc e representante da
América Latina no coletivo internacional da Via Campesina que discute a
Declaração dos Direitos Camponeses, explica que o avanço das companhias
transnacionais gerou uma série de novas violações de direitos humanos, exigindo
que as organizações camponesas buscassem uma proteção internacional ao seu modo
de vida e trabalho.
Segundo
Montón, o debate não interessa só aos camponeses, mas à toda sociedade, já que
a agricultura camponesa "garante o direito à alimentação da classe
trabalhadora". "Não pode haver democracia sem o direito à alimentação
garantido", afirma.
Confira
a entrevista completa abaixo:
Brasil
de Fato - Como surgiu a ideia de uma declaração de direitos humanos específica
para camponeses?
Diego
Montón - Em primeiro lugar, o que
avaliamos é que, com toda ofensiva das corporações transnacionais, foram
surgindo novas formas de violação de direitos, que, quando se discutiram os direitos
humanos, não havia a percepção de que poderiam ocorrer. Por exemplo, o tema das
sementes. Há 50 anos não se poderia imaginar que se poderia privar de um
agricultor o direito à semente, mas estamos em um contexto no qual as empresas
estão avançando com normas internacionais que permitem a apropriação da
propriedade intelectual, através de patentes, das sementes e, desta forma,
espoliando direitos históricos dos camponeses. Assim como esse existem muitos
outros direitos que devem ser ratificados pelo sistema internacional de
proteção aos direitos humanos.
Estamos
em uma situação na qual, além da luta cotidiana que se dá nos territórios -
pela terra, pela água, pela produção -, as empresas também estão armando uma
estrutura internacional de tratados e convenções comerciais que são os seus
direitos, blindam as companhias.
Para
a Via Campesina é estratégico desenvolver uma legislação internacional que
consolide os direitos dos camponeses e que coloque obrigações e limites às
corporações.
Além
disso, a própria discussão em torno da Declaração ajuda no debate sobre o papel
do campesinato nesta etapa da História da humanidade, como sujeitos econômicos,
culturais e sociais fundamentais para se sair da crise estrutural do
capitalismo em que estamos. Há essas duas dimensões.
Qual
a relação da proposta com as bandeiras da Via Campesina?
A
Via Campesina defende que a agricultura camponesa pode alimentar a humanidade
e, se pensamos na questão do aquecimento global, esfria o planeta. Esses
debates se condensam na discussão em torno da Declaração. Além disso, há uma
ofensiva que estamos vivendo na América Latina, África e Ásia, uma situação de
perseguição e criminalização das lideranças camponesas. Acreditamos que essa
discussão no Conselho de Direitos Humanos da ONU gera melhores condições para a
luta e para parar essa situação.
Quando
surgiu essa ideia?
Este
processo se inicia com inquietações da Via Campesina nos anos 2000. A partir
daí, em uma Conferência Internacional da Via em 2003 começou a discussão nos
quatro continentes sobre quais deveriam ser os elementos que deveriam constar
em uma Carta de Direitos Camponeses. Em 2008, em outra Conferência
Internacional, se aprovou a Carta de Direitos dos Camponeses e Camponesas que
contemplava uma visão de novos direitos e direitos coletivos.
Em
2012, com Evo Morales como presidente da Bolívia, conseguimos que o governo
boliviano fosse o responsável por apresentar a proposta no Conselho de Direitos
Humanos da ONU. Aí se inicia o processo formal com um comitê de especialistas
que vai traduzir a Carta de Direitos da Via para uma linguagem mais formal.
Formou-se, então, um grupo de trabalho composto por Bolívia, África do Sul e
Filipinas, como primeiros promotores desse processo.
Quais
outros eixos a proposta de Declaração toca?
Há
um desenvolvimento do que poderia ser a reforma agrária e a soberania alimentar
a partir de direitos específicos: ao uso coletivo e comunitário da terra, à
biodiversidade, à água - para consumo e irrigação -, à produção e a um
rendimento mínimo que permita uma vida digna, à comercialização dos produtos a
preço justo. Há um capítulo sobre o direito das camponesas, que aponta para a
questão da igualdade de gênero, e há também uma compilação de direitos já
reconhecidos, por exemplo: à saúde, enfrentando o tema dos agrotóxicos e a
responsabilidade do Estado em relação a isso, à educação adequada à cultura.
Como
a garantia de direitos a camponeses e camponesas afetaria a vida das pessoas
nas cidades?
Diante
de alguns problemas que são fatores fundamentais da crise - como a fome, a
questão do abastecimento de alimentos saudáveis a preço justo nos mercados
locais -, esta Declaração pode gerar um impulso à agricultura camponesa, que
garante o direito à alimentação da classe trabalhadora, que, nos parece, é a
coluna vertebral de uma democracia real. Não pode haver democracia sem o
direito à alimentação garantido. O outro elemento é que a agricultura
industrial é a principal fonte de emissões de gases que intensificam o
aquecimento global, ante a qual nós propomos a agroecologia, que quase não tem
emissões, ou seja, mitiga a crise climática. São alguns dos elementos de uma
proposta que beneficia o conjunto da sociedade. Organizações de pastores,
pescadores, trabalhadores estão se somando ao apoio a esta Declaração.
A
proposta enfrentou resistências na ONU?
Sim,
principalmente os países do Norte: os Estados Unidos foram o principal país a
resistir. A União Europeia, a princípio, teve uma posição contrária monolítica,
que logo foi se dividindo. Foram os dois blocos que se opuseram por três
elementos principais: primeiro, negam a identidade camponesa, para eles não há
campesinato como uma classe global; segundo, dizem que não é necessário falar
de novos direitos, direitos humanos seriam só os que se consagraram
anteriormente; e, terceiro, se opõe à concepção de direitos coletivos. Nós
tivemos uma batalha cultural muito grande, eles entendem direitos de forma
individual.
Há
expectativas de aprovação da Declaração em breve?
Temos
expectativas, porque, apesar da vulnerabilidade do sistema ONU e as mudanças na
correlação de forças naquele espaço, entre os países da América Latina,
africanos havia um grande apoio, e um número importante de países asiáticos
também. Dentro da União Europeia começaram a ocorrer dissidências. Acreditamos
que se alcançarmos a pressão necessária nesta etapa, com mobilização e lutas
nos países, há possibilidade do processo avançar. Um momento chave será maio de
2017, no qual o grupo de trabalho exporá as últimas consideração a respeito da
Declaração e, talvez, em setembro do próximo ano a proposta vá a votação no
Conselho de Direitos Humanos. Passando essa etapa, iria à Assembleia Geral da
ONU, onde a questão seria decidida.
Por Rafael
Tatemoto
Do Brasil
de Fato
Edição:
Simone Freire
http://www.mst.org.br/2016/08/20/agricultura-camponesa-nao-ha-democracia-sem-direito-a-alimentacao.html
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