Em
entrevista ao portal Sul 21, o advogado Marcelo Lavenère, ex-presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil, lembrou que "há poucos dias, [o juiz
Sérgio] Moro declarou que a prova ilícita, porém colhida de boa fé, poderia ser
usada nos processos penais"; "Esse não é um pensamento do século
passado ou do século 19, é um pensamento medieval", opinou
A
Operação Lava Jato, conduzida pelo juiz Sérgio Moro, vem cometendo abusos que
são incompatíveis com o estado democrático de direito e só são compatíveis com
a tirania e com o governo de um estado de exceção. A advertência é do advogado
Marcelo Lavenère, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, que esteve em
Porto Alegre na última quinta-feira (18) para partir de um ato em defesa da
Constituição e do estado democrático de direito. Em entrevista ao Sul21,
Lavenère denuncia a prática de abusos como julgamentos sumários, grampos e
escutas colocados em celas da Polícia Federal, em escritórios de advogados, o
uso da prisão preventiva como uma forma de coerção, conduções coercitivas
feitas de forma absolutamente irregular.
Na
opinião do ex-presidente da OAB, a conduta de Sérgio Moro está na contramão do
moderno direito penal, que é um direito garantista. “Há poucos dias, ele
declarou que a prova ilícita, porém colhida de boa fé, poderia ser usada nos
processos penais. Essa declaração não é do século 21, nem do século 20 ou do
século 19, mas sim dos tempos do início do processo penal, dos juízos sumários,
das ordálias, de um pensamento medieval”, critica.
Sul21:
O senhor veio a Porto Alegre participar de um ato de resistência
constitucional. Em que medida, na sua avaliação, a Constituição de 1988 está
ameaçada?
Marcelo
Lavenère: A nossa Constituição está sofrendo um golpe muito sério, uma violação
em uma parte muito sensível do nosso estado de direito constitucional. Em seus
artigos iniciais, a Constituição afirma a soberania do voto popular. Nas
repúblicas modernas, não se escolhe governantes pelo poder divino, pelo poder
de um rei ou de um partido, mas sim por meio de eleições livres e universais,
ou seja, pela soberania do voto popular. Esse processo de impeachment é a
máscara de um golpe parlamentar e midiático que fere profundamente a
Constituição. Nós não vivemos em uma república parlamentarista, onde seria
possível o que está sendo feito agora. Mas em uma república presidencialista,
como é a nossa, a retirada de um mandato recebido por um mandatário, seja ele
presidente da República, governador ou prefeito, só pode ocorrer por meio de
novas eleições. Esse impeachment é uma fraude e uma farsa que viola um dos
pilares mais importantes que é o princípio do voto e da escolha dos governantes
pela soberania popular.
Sul21:
Essa violação da Constituição está reverberando em outras áreas e instâncias do
sistema de justiça no Brasil?
Marcelo
Lavenère: Como estamos vivendo um período de muita dificuldade no que diz
respeito às garantias constitucionais, uma vez que nem a garantia do voto está
sendo respeitada, estamos assistindo também a uma midiatização dos
procedimentos do Judiciário. Muitos juízes importantes, de várias instâncias,
atendem mais aos holofotes do que ao Código Penal e às garantias da
Constituição. A prisão preventiva usada abusivamente, os grampos em conversas
de autoridades e advogados, as escutas telefônicas, o uso da delação como forma
seletiva de se obterem depoimentos contra determinadas pessoas, o vazamento de
informações também de forma seletiva e oportunista, tudo isso forma uma teia que
afeta o devido processo legal.
Os
advogados sempre defenderam a necessidade de se apurar delitos que são
cometidos. Não somos favoráveis à impunidade, mas também não somos favoráveis a
processos injustos e seletivos, como ocorre hoje com a Operação Lava Jato, uma
investigação legítima na sua origem, mas que se perverteu e se transformou em
algo contrário ao estado democrático de direitos. Alguns procedimentos do
Ministério Público Federal e de setores do Judiciário, juntamente com certas
condutas da Polícia Federal, nos autorizam a dizer que, neste momento, estamos
entrando em um estado de exceção, um estado onde não prevalece a Justiça, a
legalidade, a democracia, mas sim a tirania, a opinião majoritária, o
julgamento sumário e a midiatização dos processos judiciais.
Sul21:
Neste contexto, como avalia a posição que o STF vem adotando?
Marcelo
Lavenère: O Supremo Tribunal Federal tem mostrado uma extrema dificuldade em
enfrentar os temas que têm sido levados ao seu conhecimento. Essa dificuldade
começou com o mensalão, onde assistimos a uma cobertura da imprensa semelhante
aquela das Olimpíadas. Ligávamos a televisão e durante toda a tarde e parte da
noite os canais estavam transmitindo o julgamento da ação penal apelidada de
mensalão. Indiscutivelmente, não é bom para o Poder Judiciário essa exposição
aos holofotes midiáticos. Não é bom que os magistrados estejam quase todos os
dias sendo entrevistados por jornais, rádios e televisões. Em muitos casos
também, vemos magistrados sendo homenageados como o magistrado do ano, o juiz
de ouro, o juiz pop star como é o caso do juiz Sérgio Moro que preside a Lava
Jato.
Essa
permeabilidade à mídia de um poder que devia ser austero, discreto e reservado
como o Judiciário, compromete muito a rigidez e o equilíbrio da Justiça, que é
simbolizada por uma deusa que tem os olhos vendados e uma balança na mão. Os
olhos vendados, para não fazer acepção de pessoas, e uma balança na mão para
não ter pesos e critérios de ponderação diferentes.
Sul21:
O senhor fez referência à excessos e abusos que estariam sendo cometidos por
setores do Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. Na
sua opinião, há uma ação articulada entre esses setores com um objetivo
definido?
Marcelo
Lavenère: Não sei até que ponto pode-se dizer que há uma articulação, mas que
há uma unidade de ação, isso sem dúvida nenhuma existe. Quando vemos aqueles
promotores que fazem parte da força tarefa da Lava Jato, sejam da República de
Curitiba, sejam do Ministério Público do Estado de São Paulo, irem para a
televisão promover um espetáculo midiático para a publicização de suas
atividades, isso mostra que esses setores estão muito bem organizados. Eles se
articulam muito bem também com a Polícia Federal que avisa para os grandes
meios de comunicação do nosso país quando vão fazer uma diligência, uma prisão
ou uma operação de busca e apreensão.
Essa
unidade de ação entre determinados setores da Polícia Federal, do Ministério
Público e do Poder Judiciário pode não ser uma articulação orgânica, mas há uma
preocupação ideológica que permeia todos eles, uma influência ideológica que
perverte o processo penal, usando-o seletivamente para fins políticos. E o fim
político para o qual esse aparelho de repressão está sendo usado hoje é a
destruição do PT, do governo de Dilma Rousseff, do prestígio do ex-presidente
Lula e todo o projeto de inclusão social que, bem ou mal, com acertos e
defeitos, tem sido colocado em prática no país nos últimos treze anos.
Sul21:
Tivemos, recentemente, a prisão de dirigentes e militantes do MST em Goiás, que
foram acusados de integrar uma “organização criminosa”, no caso, o próprio
movimento. Além disso, estamos vendo ações de repressão violenta por parte de
polícias militares contra movimentos de luta por moradia e manifestações
estudantis. Parece que, junto com o processo de violação da Constituição, vem
também um aumento da repressão. Qual é, na sua avaliação, a capacidade de
resistência social a esse processo de criminalização?
Marcelo
Lavenère: Isso é uma consequência dessa faceta autoritária assumida por
determinados da nossa “democracia”. A criminalização dos movimentos sociais,
que você menciona, é uma coisa extremamente grave. O Poder Judiciário do Estado
de Goiás está considerando que o MST é uma organização criminosa semelhante a
uma organização terrorista ou de narcotraficantes, ou de milícias que cometem
assassinatos a soldo. Podemos concordar com o MST ou não, mas é um movimento
político que tem mais de 30 anos de atuação no país. Qualificar esse movimento
como uma organização criminosa é uma preocupação muito grande. Seguindo essa
lógica, daqui a pouco os estudantes, a UNE, a CUT, a CTB e as demais centrais
sindicais também serão enquadradas nesta categoria.
O
mesmo acontecerá com qualquer pessoa que não esteja rezando pela cartilha do
pensamento único que a grande mídia tanto fortalece. Um pensamento que promove
a intolerância, o ódio, a discriminação, que não atinge só os movimentos
sociais, mas também movimentos LGBT, manifestações religiosas de matriz
africana, entre outros grupos. Tudo isso representa um endurecimento muito
grande. O Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional estão discutindo a
redução da maioridade penal. O STF já autorizou a quebra do sigilo bancário das
pessoas sem ordem judicial. Qualquer fiscal de renda do município, do Estado ou
da União pode entrar na conta bancária do cidadão e quebrar o seu sigilo sem
ordem judicial. Tudo isso representa um grave retrocesso do Direito Penal, um
retrocesso do sistema de repressão que vai na contramão da tendência
internacional, que é de tornar mais humano o processo penal e a aplicação da
pena. É lamentável esse retrocesso que estamos vendo na área do processo penal
e da repressão à criminalidade.
Sul21:
A OAB, principal entidade dos advogados brasileiros, vem apoiando o processo de
derrubada da presidenta Dilma Rousseff, repetindo o que fez em 1964, quando
apoiou o golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart. Como vê
essa posição da OAB?
Marcelo Lavenère: A OAB se colocou do lado do
mal na história. Não está no lado do bem. Como fez em 64. Logo depois de 64,
quando começou a tortura e veio o AI-5, a OAB refletiu melhor e se posicionou
de maneira muito firme contra a tortura e os excessos da ditadura militar. E
foi um gaúcho, Raymundo Faoro, presidente da OAB, que foi o grande interlocutor
da redemocratização. A OAB teve um papel muito importante neste processo.
Lamentavelmente,
agora, vemos o Conselho Federal da OAB e também as seccionais dos estados se
deixarem influenciar por essa propaganda falsa e mentirosa da grande mídia
afirmando que a luta contra a corrupção justifica o impeachment da presidenta
Dilma. Esse é um discurso falacioso e agora está se provando exatamente o
contrário. Dilma está sendo retirada para se proteger a corrupção, para
interromper a Lava Jato. A maioria das pessoas que integra o governo interino
de Temer está sendo investigada em algum escândalo de corrupção. O pretexto da
corrupção para defender o impeachment, portanto, é mentiroso e falacioso.
O
mesmo se pode dizer do discurso que procura justificar o afastamento da
presidenta Dilma por sua impopularidade. O interino Temer, com todo o apoio da
mídia, não tem apoio popular algum registrando baixíssimos índices de aprovação
em apenas dois meses. A OAB entrou de forma totalmente equivocada nesta onda do
pensamento único, de achar que a usurpação do mandato de Dilma se justifica
para corrigir coisas erradas que o PT teria feito e para corrigir a impunidade.
Como isso não é verdadeiro, a OAB há de refletir, há de fazer uma autocrítica
e, no mais breve espaço de tempo possível, voltar atrás e dizer que se
equivocou neste processo do impeachment, que representa um golpe
político-midiático, ao qual a entidade não pode servir como instrumento.
Sul21:
Em que medida posições como a do juiz Sérgio Moro, que defende uma espécie de
relaxamento do cumprimento de normas legais em nome do combate à corrupção,
representam uma tendência no mundo do Direito, hoje?
Marcelo
Lavenère: O juiz Sérgio Moro está na contramão do pensamento internacional a
respeito do direito penal. Há poucos dias, ele declarou que a prova ilícita,
porém colhida de boa fé, poderia ser usada nos processos penais. Essa
declaração não é do século 21, nem do século 20 ou do século 19, mas sim dos
tempos do início do processo penal, dos juízos sumários, das ordálias, de um
pensamento medieval [N.R. tipo de prova judiciária usada para determinar a
culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza
e cujo resultado é interpretado como um juízo divino. Também conhecida como
juízo de Deus. Vários papas produziram bulas papais contra a ordália, e
Henrique III proibiu a ordália no terceiro ano do seu reinado, em 1219]. O que
o processo civilizatório construiu é o respeito pela apuração da verdade, pela
independência do juiz, pelo equilíbrio da justiça.
O
comportamento do juiz Sérgio Moro está na contramão do moderno direito penal,
que é um direito penal garantista. É um direito que apura, pune e combate a
corrupção, assegurando aos que são investigados as garantias que a Constituição
assegura. Julgamentos sumários, grampos e escutas colocados em celas da Polícia
Federal, em escritórios de advogados, o uso da prisão preventiva como uma forma
de coerção, conduções coercitivas feitas de forma absolutamente irregular como
a que foi feita com o ex-presidente Lula, tudo isso mostra os abusos que a
Operação Lava Jato vem cometendo e que são incompatíveis com o estado
democrático de direito. Esses abusos só são compatíveis com a tirania e com o
governo de um estado de exceção.
Sul21:
Caso o Senado confirme o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o que pode
acontecer na vida social do país, na sua opinião?
Marcelo
Lavenère: Não vejo de modo tranquilo o futuro do país na hipótese, provável, de
aprovação do impeachment. As políticas do governo interino, que não será mais
interino se o golpe for consumado, são completamente impopulares e contrárias
ao interesse da população, que servem somente a uma filosofia econômica de
beneficiar as elites, de privilegiar aqueles que são os mais abastados na
economia nacional. Elas suprimem programas sociais, diminuem as verbas para a
educação e para a saúde, são políticas extremamente contrárias ao interesse
popular.
Quando
a população começar a perceber isso, ela vai reagir. A população que procura o
SUS, a educação pública, a previdência social, programas como o Minha Casa,
Minha Vida ou o Bolsa Família, será a mais afetada por essas políticas. Esse
povo vai reagir e irá para as ruas. Prevejo uma situação de muitos conflitos e
turbulência, caso o golpe se confirme. A chamada Ponte para o Futuro, do PMDB,
é, na verdade, uma ponte para o abismo, que compromete o processo civilizatório
e o próprio futuro do nosso país, pois atinge não somente o povo, mas também a
soberania nacional. Um dos maiores cientistas brasileiros, o almirante Othon
Luiz Pinheiro da Silva, foi preso sob a acusação de que teria cometido
determinados delitos que até agora não foram comprovados. O nosso pré-sal, que
está sendo explorado pela Petrobras, passará a ser explorado pela Chevron, pela
Exxon e outras empresas internacionais. O governo Michel Temer tem um programa
que pretende vender todas as nossas riquezas e os nossos ativos na bacia das
almas. Se ele levar essas políticas até ao fim estará cometendo um crime de
lesa pátria e deverá ser julgado por isso.
http://www.brasil247.com/pt/247/rs247/251023/%E2%80%98Abusos-da-Lava-Jato-s%C3%B3-s%C3%A3o-compat%C3%ADveis-com-a-tirania-e-o-estado-de-exce%C3%A7%C3%A3o%E2%80%99.htm

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