Quando
a cláusula geral de “comunhão plena de vida”, como norma-principio, remete as
relações conjugais a seus valores éticos e afetivos (artigo 1.511 do Código
Civil), sob o pressuposto lógico de o casamento estabelecê-la, com base na
igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges, não há confundir a comunhão em
ordem constituída como fato e valor de fenômeno familiar, com a da disciplina
patrimonial dos bens do casal.
Os
regimes de bens contemplam o casal apenas formado por unidades econômicas
próprias, onde as suas especificidades determinantes não influem ou demarcam
aquela outra comunhão, a da plenitude de vida em comum, como cláusula diretiva
existencial.
Em
outras palavras: enquanto a cláusula de comunhão de vida representa um conceito
ético e operativo, contribuindo para o aperfeiçoamento das relações familiares,
a tanto que a impossibilidade da comunhão será causa motivadora para a
dissolução do vínculo conjugal (art. 1.573, CC), retenha-se, antes de mais, que
os nubentes, no processo de habilitação ao casamento, poderão optar, para
efeito de comunhão ou não dos bens entre os cônjuges, por qualquer dos regimes
que o Código Civil regula (art. 1640, parágrafo único, CC), fazendo-se o pacto
antenupcial por escritura pública, nas opções diferenciadas ao do regime básico
de comunhão parcial, previsto pelo art. 1.640, CC.
A
questão ganha agora maior relevo jurídico a saber de três premissas de base:
(i)
Os nubentes referidos pelo artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, com a
redação dada pela Lei n 12.344/2010, ou seja, as pessoas maiores de 70 anos,
obrigam-se ao regime de separação legal de bens.
(ii)
O mencionado regime tem o seu conteúdo interpretado desde a Súmula 377 do
Supremo Tribunal Federal (de 1964), até a jurisprudência mais recente, no
sentido de “no regime de separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos
onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum” (STJ
– 3ª Turma, AgRg no AREsp. nº 650.390-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j.
em 27.10.2015, DJe de 03.11.2015); importando concluir, portanto, apresentar-se
esse regime equipotente ao próprio regime de comunhão parcial de bens (artigo
1.658 do Código Civil).
(iii)
Recente Provimento 08/2016, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de
30.05.2016 (DJe. de 01.06.2016, pp. 68-69), de nossa autoria, enquanto
corregedor-geral de Justiça estadual, dispõe sobre o afastamento da reportada
Súmula 377 do STF, quando se determina: a) “no regime de separação legal ou
obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil,
deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de
afastamento da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio
de pacto antenupcial” e; b) “o oficial do registro esclarecerá sobre os exatos
limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde
comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento”
(Artigo 1º).
É
que, iniludivelmente, o regime patrimonial da separação obrigatória de bens
imposto aos nubentes de maior faixa etária, por expressa disposição do
legislador, não inibe ou afasta o interesse dos consortes pelos bens adquiridos
onerosamente ao longo do casamento sob o regime de separação legal; razão pela
qual, obrigados a este regime, cumpre-lhes, assim querendo, certificar, por
convenção de interesse mútuo, sobre a hipótese de “separação absoluta” dos bens
futuros, que se contém no regime de separação convencional de bens.
Anote-se
que, quando preferido este regime, através de pacto antenupcial, o casamento
não repercute na esfera patrimonial dos consortes, implicando dizer que os
cônjuges preservam o domínio e a administração de seus bens presentes e
futuros, como também, diferentemente do art. 276 do Código Civil/1916,
“estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração
exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar
de ônus real” (artigo 1.687 do Código Civil/2002).
Em
tais latitudes, como se observa, o regime de separação convencional e
voluntária, apresenta uma separação absoluta ou total de bens, o que não é
alcançada, expressamente, pelos que são submetidos ao regime de separação legal
ou obrigatória. No caso, estes últimos nubentes estariam desprovidos da
capacidade de convencionar pela separação plena e absoluta, aparentemente
reservada aos nubentes com idade inferior aos setenta anos.
Eis
então que surge o problema:
(i)
septuagenários que casam sob o regime impositivo da separação obrigatória,
supõem sempre que esse regime em razão da faixa etária superior tem a sua
extensão também destinada aos bens futuros, grassando diversas controvérsias
diante da aplicação da Súmula 377 do STF que os mantém, nesse ponto, sob um
regime similar ao da comunhão parcial. É uma lógica de fórmula individualista,
onde a cada um pertence o que é seu, com o isolamento total do patrimônio de
ambos os cônjuges, sintetizado pela suposta decorrência da imposição legal da
separação dos bens, o que, a rigor, não ganha conformidade diante da reportada
súmula.
(ii)
O entendimento pretoriano, a seu turno, busca relativizar a separação absoluta,
admitindo que os bens futuros se comuniquem, dentro da constância do casamento,
em prol das finalidades da união pelo casamento e em prestigio da presunção do
esforço comum ali dispendido.
O
tema ganhou nova atualidade com artigo de Zeno Veloso “Casal quer afastar a
Súmula 377”, publicado em maio passado, no jornal O Liberal, de Belém do Pará,
onde o consagrado civilista coloca, a estilete, a questão:
“Há
cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é
viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e
procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de
habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação
convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu
nome, tantos dos que já tenha adquirido antes, como dos que vier a adquirir, a
qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo,
comunicação de bens com o outro cônjuge.
Mas
o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de
70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de
bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil (...).
(...)
João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis,
frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando
compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos,
que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se
comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da Súmula 377/STF.
No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida
Súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens.
Foi,
então, que me procuraram, pedindo meu parecer. Querem lavrar uma escritura –
pacto antenupcial, mencionando que vão casar-se, e o casamento seguirá o regime
obrigatório da separação de bens, por força do art. 1.641, inciso II, do Código
Civil. Até aí, nada de novo: só estão repetindo o que a lei já diz. Todavia,
não querem que, em nenhuma hipótese, haja comunicação de bens, mantendo-se a
separação de bens de forma absoluta, em todos e quaisquer casos, sem limitação
ou ressalva alguma, excluindo, portanto, expressamente, a aplicação da Súmula
377 do STF. Já dei ao casal a minha opinião: não acho que o enunciado da Súmula
seja matéria de ordem pública, represente direito indisponível, e tenha de ser
seguida a qualquer custo, irremediavelmente”.
E
arremata, indagando:
“Mas
há um grupo de jovens e competentes professores brasileiros, que integram a Confraria
de Civilistas Contemporâneos, formada por mais de 30 mestres (Tartuce, Mário
Delgado, Simão, Toscano, Catalan, Pablo Malheiros, Stolze, para citar alguns),
a quem peço um parecer sobre o tema acima exposto. Afinal, podem ou não os
nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por
escritura pública, a incidência da Súmula 377?
Pois
bem. A doutrina publicada a seguir, na primazia de artigo de Flávio Tartuce
(25.05.16), tem oferecido uma resposta positiva. E, decisivamente, o Provimento
08/2016, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco, de 30 de maio de 2016,
soma-se a esse entendimento, cumprindo o papel proativo de orientação, a dizer
mais que a própria Súmula 377 não implica efeito legislador, a tanto possa obstar
convenção em contrário.
O
instrumento normativo veiculado pela CGJ-PE, tem seus fundamentos
(“considerandos”) bem pontuados, a exemplo:
(i)
que “é possível, por convenção dos nubentes e em escritura pública, o
afastamento da aplicação da Súmula 377 do STF, “por não ser o seu conteúdo de
ordem pública mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos” (ZENO
VELOSO)”;
(ii)
que, “enquanto a imposição do regime de separação obrigatória de bens, para os
nubentes maiores de setenta anos, é norma de ordem pública (artigo 1.641, II,
do Código Civil), não podendo ser afastada por pacto antenupcial que
contravenha a disposição de lei (art. 1.655 do Código Civil); poderão eles,
todavia, por convenção, ampliar os efeitos do referido regime de separação obrigatória,
“passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, onde nada se comunica”
(JOSÉ FERNANDO SIMÃO)”;
(iii)
que “podem os nubentes, atingidos pelo artigo 1.641, inciso II do Código Civil,
afastar por escritura pública, a incidência da Súmula 377 do STF, estipulando
nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo 1.639, caput, do Código Civil,
quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes aprouver (MÁRIO LUIZ DELGADO)”;
e
(iv)
que “o afastamento da Súmula 377 do STF, constitui um correto exercício de
autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz
mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato
público, no caso de um pacto antenupcial (artigo 1.653 do Código Civil)”,
conforme a melhor doutrina pontificada por FLÁVIO TARTUCE.
Finalmente
um provimento que, em prestígio da doutrina e dos melhores doutrinadores, a
tanto fazendo-lhes menções nominais, torna-se editado para melhor servir como
instrumento efetivo e eficiente a esse tema de tamanha relevância jurídica,
cooperando para a melhor compreensão dos nubentes, a uma livre escolha, com a
opção pela separação total dos bens, mediante o afastamento da Súmula por pacto
antenupcial. No ponto, bem de ver que é dever do oficial do registro esclarecer
os nubentes sobre os diversos regimes de bens (artigo 1.58 do Código Civil).
No
mais, o normativo também deixa evidenciado, no atinente ao regime de bens, o
entendimento prevalecente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido
de que o regime aplicável à união estável entre septuagenários é o da separação
obrigatória (REsp. 646.259-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão). E em ser assim,
dispõe o Provimento que “observar-se-á o regime da separação obrigatória de
bens somente nas hipóteses em que na data do termo inicial da existência da
união estável, um ou ambos os conviventes contavam com mais de setenta anos,
constando, caso haja interesse, o afastamento da incidência da Súmula 377 do
STF. (Artigo 2º)”.
Realmente.
"(...) a não extensão do regime da separação obrigatória de bens, (..), à
união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o
que, certamente, discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico
nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação da união estável em
casamento, e não o contrário" (STJ – REsp 1.090.722).
Com
efeito, o estatuto patrimonial dos cônjuges deve atender ao que eles,
livremente, possam estipular quanto aos seus bens e no caso das uniões
septuagenárias, mesmo com as limitações impostas, cumpre-lhes estabelecer os
exatos limites (irrestritos ou não) da separação dos bens.
Afinal,
uma instituição familiar enquanto arrimada na comunhão plena de vida, cuja
existência substancial constitui, a toda evidência, o dever-ser do direito de
família, independe dos reflexos da atipicidade ou tipicidade dos regimes de
bens.
Comunhão
perfeita e plena de vida, por integração de afetos, destinada a formar a
comunidade do casal, independe, por óbvio, da comunhão perfeita ou imperfeita
dos bens. Convincentemente, as uniões septuagenárias instigam e reclamam essa
premissa.
Na
melhor expressão de Carbonnier, “para os espíritos avançados, a separação de
bens; para aqueles que tem predisposições matemáticas, o regime de participação
nos adquiridos; para os sentimentais, a cláusula de mão comum...(...)”.
Por Jones
Figueirêdo Alves
http://www.conjur.com.br/2016-jun-26/processo-familiar-unioes-septuagenarias-separacao-bens-pacto-antenupcial
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