Uma
vez desmascarados podemos ver agora as faces horrendas dos homens públicos que
arquitetaram e produziram o golpe patriarcal e ultraliberal contra a primeira
mulher, democraticamente, eleita presidenta do Brasil.
Articuladores
ocultos, traidores, homens violentos e gananciosos visam destruir as políticas
sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminar os direitos trabalhistas que
asseguram cidadania a milhões de mulheres e homens, privatizar os bens públicos
e comuns para autofavorecimento com fins de enriquecimento de seus patrimônios
formados, em grande medida, pelo desvio do dinheiro público e, finalmente, mas
não menos grave, cumprir os desígnios do sistema financeiro e entregar a riqueza
do país aos capitalistas do Norte, que não cessaram, jamais, de extorquir os
países do Sul.
A
cena de posse do presidente interino e ilegítimo, cercado dos seus ministros,
também ilegítimos, é memorável como demonstração do que significa, no concreto
real, o conceito de patriarcado: um sistema de poder dos homens. A ausência
absoluta de mulheres na formação do gabinete do governo interino é, em si, um
indicador da ordem conservadora que naquele momento toma conta do poder
político no país. Os arranjos posteriores de inclusão irrisória de mulheres não
servem para superar em nada o significado da cena original. Ao contrário, as
mulheres que se dispuseram a compor essa farsa só contribuem para sustentar o
poder que lhes oprime.
É
importante ressaltar que, desde a campanha eleitoral em 2014, as expressões
misóginas já se mostravam como uma arma de confronto das forças políticas
conservadoras. Após a vitória nas urnas da presidenta eleita Dilma Rousseff
essas forças, inconformadas com a derrota e desrespeitando as regras do
processo democrático eleitoral, intensificaram os ataques e utilizaram de
maneira recorrente todas as formas de preconceitos contra as mulheres na
política como um mecanismo de desqualificação pessoal e do poder de uma mulher
como presidenta da República.
Patriarcado
Muitas
vezes encontramos em textos e discursos correntes a crítica ao uso do conceito
de patriarcado na contemporaneidade. Ora, os conceitos servem justamente para
explicar e interpretar a realidade social. Como podemos prescindir desse
conceito quando o poder patriarcal se apresenta com toda a sua força? O
patriarcado em coexistência com o capitalismo e o racismo deve ser analisado a
partir de cada contexto social e histórico. Para Delphy (2004), o termo
patriarcado é muito antigo, mas “na nova acepção feminista, o patriarcado
designa uma formação social na qual os homens detêm o poder, ou ainda, mais
simplesmente: o poder dos homens” (Delphy, 2004, p. 154).
Para
Saffioti (2004), o sistema patriarcal é histórico e, portanto, pode-se
estabelecer uma periodização. Podemos, dessa forma, analisar como se expressam
as relações sociais de sexo/gênero em cada período histórico e em um
determinado contexto social a partir das contradições que se apresentam na
realidade social.
O
patriarcado, como um sistema de poder dos homens, usou, desde a origem do
processo de colonização no Brasil, a força e a violência contra as mulheres
como mecanismo para sua reprodução. Nesse sentido, desenvolveu um sistema
econômico baseado na divisão social, racial e sexual do trabalho. A conformação
dessa divisão sexual do trabalho, elemento central das relações sociais de
sexo/gênero, é inextricável do processo histórico na formação da sociedade
capitalista e, nesse processo, são consubstanciais as relações sociais de
classe e de raça. Desde esse período, a relação público/privado foi baseada nos
princípios patriarcais dos senhores brancos, que não só sobrepunham os
interesses privados sobre os interesses públicos como também designavam espaços
diferenciados para homens e mulheres. As mulheres, confinadas à esfera privada,
estavam ainda divididas e confrontadas pelas contradições das relações sociais
de raça que configuravam e permanecem conformando as desigualdades entre
mulheres brancas e mulheres negras. A relação entre exploração sexual das
mulheres e o exercício do poder foi desde a origem da colonização um mecanismo
da violência patriarcal extremamente utilizado. O estupro das mulheres, e
sobretudo das mulheres negras, foi uma prática colonial dos senhores brancos,
uma arma de dominação do colonizador.
As
estruturas da nossa sociedade, marcadas por profundas desigualdades sociais,
estão construídas a partir de um ideário positivista que justificou, através de
argumentos naturalizadores da vida social, as formas de violência exercidas sobre
as mulheres e a população negra. A construção da pobreza é um componente dos
modelos de desenvolvimento econômico que se sucederam ao longo da história. É
justamente contra as possibilidades de avançar na superação dessa exploração e
de prosseguir nas conquistas de direitos, para uma vida social com igualdade e
justiça social, que são produzidos pelas forças conservadoras os golpes de
Estado, os processos de repressão política e outros arbítrios que vigoraram no
passado e continuam sendo utilizados no presente, como o que está ocorrendo
nesta atual conjuntura.
O
patriarcado que se instituiu no Brasil, como parte de um sistema de dominação
no período colonial, passou, evidentemente, por grandes transformações. Isso,
no entanto, não significa que seja um tipo de poder historicamente superado.
“Necessitamos teorias que possam analisar o funcionamento do patriarcado em
todas as suas manifestações – ideológicas, institucionais, organizativas,
subjetivas – explicando não somente a continuidade, mas também as mudanças no
tempo” (Scott, 1989).
Desvendar
a existência desse sistema de dominação e fazer conhecer os mecanismos de sua
reprodução, a partir das suas expressões e dos mecanismos instituídos a cada
momento histórico, é uma contribuição fundamental do feminismo para uma análise
em profundidade da realidade social brasileira. Lutar para a superação desse
sistema é uma contribuição fundamental do movimento feminista para a
democratização da vida social.
O contexto
atual
A
violência contra as mulheres no Brasil é de alta intensidade e se constitui
como uma das questões mais emblemáticas da persistência do poder patriarcal no
país. No plano simbólico a violência sexista é utilizada como um elemento de
desqualificação política e como ameaça para todas as mulheres. Mesmo quando se
dirige a uma mulher específica ou a mulheres que exercem cargos de poder, essa
violência simbólica, necessariamente, atinge todas as mulheres. No plano
político, a violência sexista tem sido utilizada, permanentemente, como uma
arma contra a presidenta eleita Dilma Rousseff, mostrando, dessa forma, que o
machismo é um elemento central para uma forma de disputa política baseada na
truculência e na ausência de princípios éticos.
A
divisão sexual do trabalho que faz das mulheres as responsáveis principais pelo
trabalho doméstico mesmo que elas se constituam como uma força de trabalho
fundamental na esfera do trabalho produtivo e um mecanismo central da
exploração das mulheres nesse sistema. No mercado de trabalho as mulheres são
maioria nos espaços de trabalho precário, com a prevalência das mulheres
negras. Na esfera pública, são minoria absoluta em qualquer espaço de
representação política e de tomada de decisão. Os setores conservadores e
fundamentalistas impõem um poder sobre o Estado que fere os princípios
democráticos da laicidade, impedindo a plenitude do acesso e da vivência das
mulheres aos direitos reprodutivos e sexuais. Ameaças constantes ao que já foi
alcançado pelas mulheres no campo desses direitos e a criminalização do aborto
denotam o quanto ainda é contundente o exercício de controle patriarcal sobre o
corpo e a sexualidade das mulheres.
A
prática do estupro, essa violência bárbara contra as mulheres, persiste
dramaticamente nos dias atuais. De outro lado, a violência sexual e a
mercantilização do corpo das mulheres é um conteúdo comum e corrente das redes
privadas de rádio e televisão, por meio de publicidades, novelas, noticiários,
programas humorísticos e outros.
A
relação entre patriarcado e ultraliberalismo econômico se mostra vigorosa no
contexto atual. Acrescente-se a essa relação o fundamentalismo religioso, e
teremos a conformação do caráter das forças políticas que engendram a crise
política, que por sua vez afeta negativamente a economia do país, e que
desrespeitam e já desestruturam nesse breve tempo de governo interino a
cidadania da maioria da população brasileira.
Na
sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, na qual foi aprovada
a abertura do processo de golpe, chamado de impeachment, da presidenta eleita
Dilma Rousseff, o espetáculo político, que poderia ser chamado de patético não
fosse trágico, foi amplamente divulgado pela mídia, nacional e internacional.
As redes privadas de televisão do país, que tanto investiram e continuam
investindo para que aconteça a ruptura da legalidade democrática, obviamente
para favorecê-las como corporações, dedicaram todo seu potencial para alienar e
mascarar o significado do que estava de fato acontecendo. Mas a situação se
mostrou tão grotesca que todos os truques utilizados, para produzir os enganos,
se mostraram inúteis. No primeiro momento veio a perplexidade e, em seguida, a
indignação, a crítica e o repúdio apareceram por toda parte, no país e no
exterior, nas ruas, nos campos, nas redes sociais, em todas as formas de
expressão e em todas as dimensões.
Os
protagonistas golpistas dessa votação espetaculosa, que estarreceu o mundo,
desprovidos das “virtudes” públicas, justificaram seus votos evocando motivos e
homenagens privadas, sobretudo familiares e religiosas. Naquele momento, a
captura do espaço público pelas motivações privadas se materializa, a olhos
vistos, a tal ponto que um parlamentar, alheio às regras mínimas das normas da
Câmara Federal na qual ele exerce um mandato popular que não é o primeiro,
levou seu próprio filho ao plenário e tentou transferir para ele a declaração
do seu voto. Evidências materiais e simbólicas dos mecanismos de reprodução do
sistema patriarcal, abertas à observação fenomenológica, em pleno
acontecimento, as manifestações machistas, violentas e zombeteiras, dirigidas à
presidenta, aconteceram durante todo o processo de votação e evidenciavam como
são misóginos aqueles homens que se dizem representantes do povo. Povo este, no
nosso país, formado em sua maioria por mulheres. No momento em que
protagonizavam aqueles atos de violência política, contra uma mulher, que é a
presidenta eleita do país, estavam exercendo essa violência contra todas as
mulheres brasileiras.
A
conquista primordial do movimento feminista foi a própria formação desse
movimento que instituiu as mulheres como sujeito da história. O acesso à esfera
pública como um direito das mulheres significou a ruptura com um tipo de
privação que não só as impedia de exercer sua cidadania como sujeito político,
mas também as tornava ainda mais vulneráveis à violência sexual e doméstica.
Podemos ainda afirmar que a ruptura com o isolamento que esse confinamento
assegurava também significa um questionamento e uma fissura da ordem liberal
burguesa que se assenta na dicotomia entre as esferas públicas e privadas.
Mulheres
organizadas em luta contra o golpe
A
luta das mulheres por igualdade no Brasil vem desde os tempos coloniais. O
direito ao trabalho com direitos, à educação e ao voto são conquistas marcantes
dessa trajetória. No plano legal, as conquistas do movimento feminista
contemporâneo configuram uma nova etapa histórica no processo de transformação
das relações sociais de sexo. A Constituição Brasileira de 1988 é um marco,
pois afirma, como um de seus princípios, que homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações. Além de garantir no seu texto uma série de outros
direitos fundamentais para as mulheres.
É
importante ressaltar que, nos últimos anos, o movimento feminista brasileiro
tem levado uma luta permanente em prol da reforma do sistema político, em cuja
pauta figura a defesa da paridade entre homens e mulheres como uma dimensão
necessária e democratizante desse sistema. A defesa da paridade implica, entre
outras questões, a superação do caráter hierárquico dos partidos políticos e da
mercantilização dos processos eleitorais.
Neste
momento, em que os movimentos sociais, do campo e da cidade se mobilizam,
resistem e lutam contra o golpe, o movimento feminista e de mulheres tem se
mostrado como um sujeito político fundamental na luta pela democracia. De todos
os espaços do país surgem protestos que se expandiram pelo exterior.
O
movimento feminista mostra sua criatividade e sua contundência nas ruas e nas
redes sociais. Mostra sua força e sua capacidade de resistência e mobilização
radicais em defesa do mandato da primeira mulher presidenta da República do
Brasil, e da legalidade democrática. É um confronto contra o patriarcado,
aberto e explícito que não admite camuflagens. Contra os machistas e
neoliberais e contra tudo que eles representam. Esse confronto para o movimento
feminista é incontornável, o qual guarda em si uma luta do presente, reaver o
mandato da presidenta eleita com a afirmação de uma agenda de reformas e de
implantação de políticas públicas voltadas para superação das desigualdades e
garantias de bem-estar da população, e uma luta que aponta para o futuro, para
avançar no processo democrático, nos direitos sociais, econômicos, políticos,
culturais e ambientais como caminhos para construção da igualdade, da justiça
social e para a emancipação das mulheres.
Referências
DELPHY,
Christine. Patriarcat (Théories du). In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE
DOARÉ, Hélène et al. Dictionnaire Critique du Féminisme, p.141-146. Paris:
Presses Universitaires de France, 2000.
SAFFIOTI,
Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Editora Perseu
Abramo, 2004.
SCOTT,
Joan W. Gênero: uma Categoria Útil para Análise Histórica. Recife: SOS Corpo,
1989.
*
Maria Betânia Ávila é doutora em Sociologia, pesquisadora do SOS Corpo
Instituto Feminista para a Democracia e militante feminista da Articulação de
Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Mercosur.
Revista
Teoria e Debate:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/06/um-golpe-patriarcal-no-brasil.html
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