Depois
de fracassar na montagem da fantasia de um governo envolvido num comportamento
ético com alguma diferença notável em relação aos antecessores, o último conto
da Carochinha que acompanhou a ascensão de Michel Temer ao Planalto reside na
promessa de recuperação econômica.
Está
difícil. Num país onde as instituições se embaralharam, a economia e a justiça
só podem andar no mesmo compasso. É o que revela reportagem de Fernando
Scheller e Monica Scaramuzzo, publicada pelo Estado de S. Paulo (19/6/2016), que
aponta os números das 32 grandes empresas investigadas diretamente pela Lava
Jato e pela Operação Zelotes e revela um estado de calamidade previsível mas
ainda mais grave do que se poderia imaginar.
Com
receita combinada de R$ 760 bilhões, patrimônio que equivale a 14% do PIB, elas
têm um poder de impacto indireto muito maior sobre a economia, "de
proporções incomensuráveis," nas palavras do economista José Roberto
Monteiro de Barros. Com poucas exceções, estes foram os grupos privados que, ao
lado do setor público, alavancaram o crescimento do país em anos recentes.
Numa
combinação de fatores perversos que se alimentam mutuamente, num ciclo vicioso
que explica uma recessão sem paralelo, o desemprego em ritmo de galope, a perda
de renda e a falta de perspectivas reais para uma retomada, "muitas
companhias, sobretudo fornecedoras da Petrobras, quebraram ou estão em
recuperação judicial. Grandes grupos estão vendendo ativos e com dificuldade de
financiar suas dívidas. Cerca de 1 milhão de trabalhadores foram demitidos ao
longo dos últimos doze meses", resumem os jornalistas, citando estimativas
da Força Sindical. Nem é surpreendente que, nesse ambiente, a distancia entre a
renda de ricos e pobres, que havia caído por mais de uma década, esteja se ampliando,
como demonstra estudo do professor Rodolfo Hoffman, da USP, que aponta para um
crescimento de 3% a partir de 2015.
Como
se o passado não fosse suficiente, o presente não tem oferecido palavras úteis
para o futuro. A única divergência real entre aliados que constituem o governo
interino consiste em definir qual deve ser a extensão do projeto de austeridade
que se pretende implantar como eixo da política economica do país pelos
próximos vinte anos. A ideia não é crescimento. É arrocho. Esta é a grande novidade.
Embora
se trata de um governo de caráter temporário, não se fala agora de um ajuste
temporário, que pode ou não fazer parte da cartilha econômica de muitos
governos, inclusive de histórico progressista – como ocorreu com Lula no início
do primeiro mandato, com Dilma no segundo.
No
Brasil de 2016 corre-se o risco de aprovar uma emenda constitucional que irá
orientar a questão básica de toda política econômica – o gasto público, matéria
prima original para um país crescer, retroceder ou ficar estagnado – através de
um projeto que Henrique Meirelles quer aprovar para durar pelos próximos vinte
anos.
Para
entender um pouco a proposta, é preciso comparar com os velhos programas
decenais da antiga União Soviética stalinista. A diferença é que agora se
pretende desregulamentar o Estado, estimular desindustrialização e a abertura
absoluta ao capital externo. A finalidade não é construir uma potência
econômica autônoma e fechada, nos moldes do socialismo num só país, nem criar
regras favoráveis aos trabalhadores e aos mais pobres, mas atrair investimentos
externos pela construção de um paraíso dominado pela lógica do mercado
financeiro, inteiramente aberta aos grandes grupos estrangeiros, sem o menor
sinal, nem simbólico, para expressar algum desejo de soberania nacional – como
se viu no projeto de abertura das empresas aéreas.
Isso
quer dizer que, por vinte anos consecutivos, o país estará submetido à uma
mesma política econômica, sujeita a acertos e ajustes no detalhe, apenas. Como
estamos falando de emenda constitucional, e não de lei ordinária, é bom
recordar que as futuras gerações terão dificuldades imensas, quem sabe
intransponíveis, para alterar a orientação ficar aprovada. Isso porque o rito
para derrubar uma cláusula constitucional envolve a construção de maiorias
sólidas, nas duas casas, em diversas votações, para poder efetivar-se.
Basta
imaginar a dificuldade de aprovar, em situações normais, qualquer medida de
caráter progressista pelo Congresso, em matéria que sempre vai envolver grandes
interesses econômicos, para se calcular o tamanho da guerra a ser travada,
neste caso.
Há
outro aspecto. Após a aprovação de uma emenda constitucional, mesmo a troca de
governo através de eleições presidenciais será insuficiente para produzir
efeitos práticos sobre a vida da maioria da população. É que o raio de ação dos
novos governantes já estará pré-definido pelos novos parâmetros
constitucionais. A existência de uma legislação semelhante - que limita o
endividamento do governo norte-americano - tem permitido ao Partido Republicano
enfraquecer e mesmo anular iniciativas progressistas que chegam ao Congresso
dos Estados Unidos. O exemplo mais recente é o programa de saúde pública, drama
que acompanha a população norte-americana há duas décadas.
Aquilo
que foi perdido nas urnas presidenciais, pela vontade da maioria, pode ser
recuperado pelos conservadores atrás das regras de controle de gastos do
Legislativo - e nada sai do lugar. Com o mesmo controle de ferro, o Banco
Central Europeu tornou-se uma instituição capturada pelo mercado financeiro,
subordinando os grandes controles da economia a sua lógica. Acima de qualquer
outro fator, este elemento explica o prolongado marasmo europeu após o colapso
de 2008-2009, raiz da instabilidade permanente da União Européia, consagragada
agora pela plebiscito dos britânicos a favor a separação.
No
caso brasileiro, a emenda constitucional pretende garantir, de saída, a
exclusão de todas as políticas expansionistas, presentes na segunda fase do
governo Lula e o primeiro mandato de Dilma. Nem na ditadura militar - regime
que se prolongou por 21 anos - o país foi submetido a linha dura da
austeridade, como se pretende agora. O regime foi contracionista com Roberto
Campos e Mario Henrique Simonsen, mas assumiu uma postura oposta nos anos de
Delfim, quando a política econômica se alterou e o país encarou as mais altas
taxas de crescimento de sua história.
Responsável
técnico-político pelo colapso da economia européia após a crise de 2008-2009, o
economista Jean Louis Trichet despediu-se da presidência do Banco Central
Europeu cobrando congratulações pela decisão de jamais reduzir os juros para
estimular o crescimento. Embora o Velho Mundo mTrichet achava que havia feito o
principal – impedir o retorno da inflação, em qualquer nível.
Embora
as ambições presidenciais de Henrique Meirelles sejam um dado conhecido, a
verdade é sua emenda é a prova de eleitores. Mesmo que nunca seja eleito para
ocupar o Planalto, o ministro da Fazenda de Michel Temer terá uma influência
considerável, e até decisiva, no destino de todos os governos eleitos em 2018,
2022, 2026, 2030 e 2034. Se aprovada, a emenda constitucional entraria em vigor
em 2017 para permanecer até 2037.
Após
os primeiros dez anos - prazo equivalente a 2,5 mandatos presidenciais pelas
regras de hoje – será possível fazer uma revisão das metas estabelecidas, quem
sabe amenizando ou agravando as restrições para gastos públicos, por mais dois
mandatos e meio. No total, temos um programa para cinco mandatos presidenciais
consecutivos. Constitui amarga ironia no currículo de um grupo político que
passou as últimas eleições resmungando sobre a "alternância de
poder."
Numa
conjuntura em que o sistema político encontra-se em posição de desmanche, na
qual o Congresso encontra-se dominado por uma maioria de aventureiros, pretende-se
aprovar uma medida de efeitos profundos, duradouros -- e nocivos, do ponto de
vista da maioria da população. A ideia é criar uma realidade permanente, acima
do poder de decisão de governos a serem eleitos. Acima, portanto, da soberania
que autoriza o eleitorado a trocar de governo, e de orientação econômica, de
quatro em quatro quatro anos.Você pode até achar que a austeridade é o valor
número 1 de qualquer governo. Um ponto de honra num país de botocudos
gastadores e pouco civilizados. Ou pode acreditar que, em várias conjunturas, o
investimento público elevado contribui para atender a necessidade de criar
estímulos para um crescimento necessário para gerar emprego e ampliar o
bem-estar da população, ainda mais num país com as características do Brasil.
Em
qualquer caso, estamos falando de opções políticas, típicas de uma democracia
verdadeira, que permite a todo cidadão dizer em urna sua visão sobre o país que
deseja construir. A criação de uma emenda constitucional que é, na verdade, uma
plataforma sintética de uma política econômica específica, é uma forma de
tolher e condicionar essa discussão, estabelecendo limites prévios a decisão do
eleitor. O propósito é travar a democracia. Uma forma de ditadura econômica,
ainda que muitas pessoas tenham problemas apenas com a palavra, em vez de
ficarem incomodados com a própria coisa que ela designa.
A
chance da emenda ser aprovada neste Congresso, infelizmente, é real. O
enfraquecimento da bancada progressista da Câmara e do Senado abre espaço para
um atividade de rolo compressor. A crise econômica, cada vez mais profunda, sem
perspectivas, estimular ideias demagógicas e soluções simplórias, que se
tornaram mais complicadas de debater num ambiente político onde opiniões que
questionam a visão dominante perdem espaço graças a uma política de
esvaziamento deliberado das redes sociais.
Nesta
situação, desfavorável, é preciso comprar o debate e compreender, que não está
em curso uma medida de emergência nem uma ideia conjuntural, mas uma ideia
desastrada e dificilmente remediável.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2016/06/plano-de-meirelles-e-ditadura-economica.html
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